O que me vai no palato | O meu vinho favorito? Ainda não o bebi...
“Vocês não são nada parecidas com a minha rosa! Vocês ainda não são nada - disse-lhes ele. - Ninguém vos cativou e vocês não cativaram ninguém. São como a minha raposa era, uma raposa perfeitamente igual a outras cem mil raposas. Mas eu tornei-a minha amiga e ela passou a ser única no mundo.
- Vocês são bonitas, mas vazias - insistiu o principezinho. - Não se pode morrer por vocês. Claro que, para um transeunte qualquer, a minha rosa é igual a vocês. Mas sozinha, é muito mais importante do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu pus debaixo de uma redoma. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo. Porque foi a ela que eu matei as lagartas (menos duas ou três, por causa das borboletas). Porque foi a ela que eu ouvi queixar-se, gabar-se e até, às vezes, calar-se. Porque ela é a minha rosa. Depois o principezinho voltou para o pé da raposa e despediu-se:
- Adeus...
- Adeus - despediu-se a raposa. - Agora vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...
- O essencial é invisível para os olhos - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante."
Antoine de Saint-Exupéry, em O Princepezinho
Uma lenda grega atribui a descoberta da videira a um humilde pastor. Num certo dia Staphyle, o pastor, deu por falta da sua cabra, depois de muito procurar, encontrou-a a comer uns bagos de uma planta que nunca tinha visto antes. Intrigado, colheu o fruto dessa planta e levou-a ao seu patrão Oinos que, deles extraiu um sumo, que ao contrário de todos os outros, melhorou com o tempo. Por isso, em grego, a videira designa-se por Staphyle e o vinho por Oinos.
Muitas vezes, as grandes descobertas que fazemos na nossa vida, são assim, fruto do acaso, o Barca-Velha, é um desses frutos…
Quase todos já ouvimos falar dele, mesmo aqueles que pouco conhecem sobre vinhos, quando querem usar uma metáfora para a excelência levantam o nome do Barca Velha em vão :-P
Para os apreciadores de vinho, é o topo de gama, é o epítome, o pináculo superior, o símbolo inquestionável de qualidade, o Santo Graal, é algo inatingível, muitas vezes com a triste certeza que nunca o irão provar, eu estava dentro dessa categoria, mas, como diz Saramago, por vezes tudo na vida pode mudar, e de repente, como aos momentos algumas vezes acontece, tornam-se para além de possíveis, eternos. É isso que espero encontrar ao provar pela primeira vez um Barca Velha, eternidade, história e arrepios, muitos arrepios…
Tudo aquilo que o mundo dos vinhos me faz acreditar está fundado em três pilares, unidos pela mesma cepa, Barca Velha, Fernando Nicolau de Almeida e Vale Meão.
Sei que esta minha saudade do futuro, esta ideia pré-concebida que tenho, pode morrer à luz da realidade pois apenas é baseada na sua história, nas suas lendas, no suor da sua invenção, na inovação e na grandiosa mudança de paradigma que ele promoveu. Como refere Ana Sofia Fonseca no seu livro "BARCA VELHA – Histórias de um vinho", a história deste vinho supera qualquer ficção, tem almas penadas, desencontros amorosos, fortunas, crimes de sangue, lutas de adega, encontros inesperados, e sonhos, muitos sonhos…
Conta a lenda que Fernando Nicolau de Almeida (o génio que criou o Barca Velha), contra tudo e contra todos, sonhou produzir um grande vinho de mesa do Douro (onde os Porto eram as estrelas de cartaz), capaz de ombrear lado a lado com os grandes de Borgonha ou Bordéus, sobejamente conhecidos pela sua longevidade e envelhecimento qualitativo, tudo isto, numa altura em que no nosso país, apenas interessava beber o mais possível pelo menor custo.
Neste cenário, nasce o Barca Velha em 1952, pelas mãos do enólogo da casa Ferreira, Fernando Nicolau de Almeida. Nos anos 50 (e em grande parte na década de 60) não eram conhecidas, nem estavam ao dispor, as tecnologias de ponta que vemos hoje em dia nas melhores adegas do país. Assim Fernando Nicolau de Almeida controlava a temperatura de fermentação com gelo vindo desde Gaia, e a vindima era feita de madrugada para as uvas não aquecerem.
O segredo deste vinho, para além de uma escolha criteriosa das uvas e do terroir, está nas provas periódicas após a fermentação, os vinhos são provados várias vezes durante o ano para poder decidir se será um Barca Velha ou um Reserva Ferreirinha, sim, porque os vinhos que sejam extremamente bons, mas não sejam sublimes e arrebatadores, mantêm-se Reserva Especial, não sofrendo a metamorfose para Barca Velha. Caso haja dúvida se um vinho merece ou não ser Barca Velha, não o será, é que refere nos dias de hoje, Luís Sottomayor, actual enólogo da casa Ferreirinha.
A Bíblia diz-nos que Noé teve a inspiração de plantar vinhas depois de ter consigo sobreviver ao dilúvio. Essa inspiração divina é sentida todos anos no Meão, local da nascença do Barca Velha, se em Guimarães podemos ler “Aqui Nasceu Portugal”, no Meão deveríamos poder ler “Aqui Nasceu o Barca Velha”. «É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda», disse-nos Fernando Nicolau de Almeida.
Neste vale existe aquela brisa melodiosa, aquela das vindimas, do cheiro a uva, do suor dos trabalhos no campo, rasgada pelas feridas dos socalcos talhados á mão, iluminada pela luz abençoada e nostálgica do Douro, que percorre todos os Meandros do rio e semeia saudades na nossa memória. Por isso é que Francisco José Viegas diz que o Douro, é por isso tudo, um rio habituado a ver milagres. Se não existe uma explicação racional, sociológica, histórica, económica, ele encontrou essa - que me serve perfeitamente: trata-se de um milagre.
Em 60 anos de história, só 17 colheitas excepcionais deram origem ao Barca Velha. E ao longo deste tempo só três enólogos foram responsáveis pelo vinho. Fernando Nicolau de Almeida reformou-se em 1987 (passado nove anos viria a falecer), tendo sido substituído por José Maria Soares Franco, o primeiro licenciado em Enologia a entrar na casa Ferreirinha. José Maria Soares Franco começou como ajudante de Nicolau de Almeida em 1979 e manteve-se na empresa até 2007, ano em que abdicou de um dos cargos mais sonhados, apetecidos e cobiçados do país para, juntamente com João Portugal Ramos, criar do zero um novo e inovador projecto vitivinícola no vale do Douro baptizado de Duorum. Com a sua saída, ficou ao leme da Barca Luís Sottomayor, que a tem levado a muito bons portos. Desta forma, acredito que Fernando Nicolau de Almeida foi o pai do Barca Velha, sendo José Maria Soares Franco e Luís Sottomayor os filhos desse vinho. Nicolau de Almeida criou o Barca Velha, o Barca Velha criou dois excelentes enólogos.
Durante todos estes anos o Barca Velha foi uma afronta ao país pequenino, humilde e vulgar, continua a transportar um romantismo sofrido e a ser o único DOC tinto que só chega ao mercado depois de oito anos a adquirir complexidade e sonhos, muitos sonhos em garrafa, é o mais disputado nos leilões.
Sei que muito mudou desde o primeiro Barca Velha, a adega é diferente, o método de vinificação foi melhorado, as uvas agora são da Quinta da Leda e até a madeira foi trocada, mas quero continuar a acreditar que o meu primeiro copo de Barca Velha vai carregar o suor da construção dos socalcos encosta acima, vai-se apresentar sedutor e misterioso como as caves de Gaia, vai transportar a fúria invernosa do Douro lá em baixo, vai queimar-me a mão do calor acumulado durante o Verão, vai soprar-me com a brisa das vinhas que se perdem no horizonte do Vale Meão, vai cheirar à terra mágica de onde brotam as cepas da Leda, digo mais, tenho quase a certeza, que vou ver o mosto a fervilhar no copo e ouvir o “Nicolau” segredar-me ao ouvido “Vês nunca te enganei!!!”
Como é possível termos como preferido um vinho que ainda nem o provamos?
Não tenho a certeza, mas provavelmente porque não consigo deixar de me sentir a sua raposa.
“Caríssimo pai, espero que a minha mãe esteja ao teu lado, os dois bem juntinhos aí em cima. Quanto a mim, se ainda houver lugar à vossa volta, façam-me uma reserva por favor. Mas não para já! Se tiver a sorte de os anjos me levarem para aí, posso levar comigo umas garrafitas dos inúmeros vinhos que se fazem agora e que tu não chegaste a conhecer. O pior é se tenho de ir na Ryanair. Se assim for, paciência, não posso levar nada, que carregar bagagem custa uma fortuna. Mas não te preocupes, hei-de arranjar maneira de embarcar pelo menos um Barca Velha para voltarmos a brindar juntos. Á vida, seja lá em que mundo for.”
Carta de José Nicolau de Almeida, ao seu pai, Fernando Nicolau de Almeida