"O momento das carícias voltou a entrar no quarto, pediu desculpa por ter-se demorado tanto lá fora, não encontrava o caminho, justificou-se, e, de repente, como aos momentos algumas vezes acontece, tornou-se eterno" José Saramago
7 de Maio de 2016...
Esta história, começa um pouco antes, aqui.
Ao participar na Essência do Vinho 2016, no Palácio da Bolsa do Porto, em Fevereiro passado, conheci uma pessoa que pertencia ao Clube Reserva 1500 (um clube que tem como objectivo proporcionar aos sócios a constituição de uma garrafeira composta por garrafas nacionais e estrangeiras ímpares e sobretudo permitir o acesso privilegiado às reservas da Casa Ferreirinha e Sogrape Vinhos: Barca Velha e Reserva Especial).
Como é obvio, e dada a minha atracção pelo Barca Velha, já tinha tentado entrar para este clube anteriormente, mas como como existe um número restrito de sócios (que não deve ultrapassar os 1500) e em que a entrada apenas pode ser sugerida por um associado, depois de várias tentativas, quase que desisti, quase... :-P
Aproveitei esse encontro ocasional, no Palácio da Bolsa, para falar com essa pessoa sobre a minha paixão pelo Barca Velha e pela vontade que tinha de integrar esse clube tão restrito, após uns minutos de conversa ouço um "Conheço a pessoa responsável pelo Clube Reserva 1500, posso falar com ela e sugerir a tua entrada"...
Depois de mais algumas conversas, da avaliação da minha entrada como sócio e de alguma burocracia, finalmente consegui entrar para o Clube Reserva 1500.
Passadas umas semanas recebo a primeira revista do clube em casa e reparo que em Março tinha havido uma prova vertical de Barca Velha, como o ser humano (e eu em particular) é um ser ingrato, queixei-me logo da sorte, "se tivesse entrado mais cedo"...
Entrei em contacto com a Sogrape, e informaram-me que iriam decorrer mais duas provas, uma em Lisboa e outra no Algarve, mas que ambas já estavam lotadas e que a lista de espera era enormíssima. Ficaram com o meu nome, o último da lista, não fosse um milagre acontecer...
Na quinta feira 5 de Maio recebo um telefonema a informar-me que havia uma vaga para o evento no sábado, dia 7 de Maio ... no Algarve!!!
Sendo eu do Norte, o Algarve não fica propriamente perto, mas o Barca Velha merece, e provavelmente daria para aproveitar também o bom tempo e as águas quentes do Mediterrâneo.
Estava completamente enganado, depois de confirmar na meteorologia, aproximava-se um fim de semana de dilúvio, especialmente no Algarve.
O meu primeiro Barca Velha tinha de ser assim, num dia de temporal e na outra ponta do país, não podia ser fácil...
Depois de seis horas de viagem, de partilha de sonhos, emoções e expectativas, chegamos ao Hotel, Quinta dos Poetas, nome sugestivo para o fim de semana que se avizinhava :-P
Eram perto das 16h e o jantar tinha hora marcada para as 20h30. O que fazer durante este tempo? Pensei então numa frase de Antoine de Saint-Exupéry "Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieto e agitado: descobrirei o preço da felicidade!", não sei porquê associo muitas vezes o Barca Velha a passagens do princepezinho.
Saímos da Quinta dos Poetas por volta das 20h em direcção ao Hotel Vila Monte Farm House, local onde decorreria a celebração dos 25 anos do Clube, e onde eu provaria o meu primeiro Barca Velha :-P
Após umas horas de acalmia no tempo, chegamos ao Vila Monte durante uma tempestade: chuva, trovoada e vento...
Corro então para o interior do edifício, abro a porta, e a primeira coisa que vejo são os copos já a oxigenarem, quase que os conseguia ouvir respirarem...
É neste preciso momento que caio na real, isto vai mesmo acontecer...
"Bem-vindos" ouvi depois de Manuel Guedes director executivo da Sogrape, interrompendo o meu momento de nostalgia :-P
Apresentou-me mais tarde a Luís Sottomayor, enólogo responsável pelo Barca Velha, uma pessoa bastante humilde, sem tiques de vedetismo e sempre muito preocupado com os vinhos, para que estivessem no ponto na altura em que fossem provados.
Iria ter o prazer de provar 5 safras: 1965, 1982 e 1985 (Fernando Nicolau D'Almeida), 1991 (José Maria Soares Franco) e 2000 (Luís Sottomayor).
Fui passeando pelo local do evento, mas não me conseguia afastar muito dos copos, quase que tentado a cheirar com os olhos, valeria a pena?
"Bem, vamos dar inicio á prova" disse Luís Sottomayor, "o 1965 está tão complexo que vos aconselho a começarem pelo 2000 e irem viajando até 1965". Sempre pensei que o meu primeiro Barca Velha iria ser do Sr. Fernando Nicolau D'Almeida, afinal, vai ser um "benjamim" de Luís Sottomayor.
Pego no copo, e sou imediatamente apreendido pela sua cor ruby intensa e cristalina, confesso que a mão me tremia um pouco, no entanto, respirei fundo, e num determinado momento fecho os olhos, levo o copo ao nariz e...
... de repente, como aos momentos algumas vezes acontece, tornou-se eterno... Arrepios, muitos arrepios, quase tantos como a fruta vermelha madura que encontrava (ameixa, framboesa e mirtilos), especiarias (noz moscada, tabaco canela e cravinho) e notas balsâmicas (resina, cedro e menta). A madeira é discreta e subtil, criando o vinho mais harmonioso que tinha bebido até ao momento. Parece que cada um dos aromas foi pesado para ter o tamanho ideal, que fizessem notar a sua presença mas que não abafassem os restantes.
Depois, finalmente a boca...
Opulento, com personalidade, estruturado, equilibrado e gordo. A acidez é electrizante e os taninos ainda agora começaram a "puxar" pelos aromas terciários, mas já fazem sentir a sua presença.
Sensual e delicado no início, envolve-se suavemente ao redor da boca, explodindo mais tarde num final com suculência e frescura. Passados uns minutos o sabor e a textura ainda permaneciam no meu palato.
Conseguem-se identificar perfeitamente a uva, a fermentação e a garrafa, criando um vinho grande, com final longo, complexo e equilibrado. Aliás, equilíbrio é a palavra que para mim resume este vinho.
Foi assim, o primeiro, o que viria em seguida?
1991 e José Maria Soares Franco...
Manteve-se o ruby cristalino do de 2000, mas surgiram também pinceladas alouradas nas bordas, são as rugas deste vinho...
No nariz é muito diferente do anterior e remeteu-me imediatamente para uns vinhos que tinha provado há uns anos em Bordéus, é um vinho ainda muito marcado pela uva e pela fermentação. Fruta vermelha madura, muito denso e com madeira fina. Complexa-se mais tarde com amoras, cassis, ameixas, violetas, esteva e especiarias. Tem um final de boca persistente, fino, mas ... quiçá demasiado delicado, o que lhe retira um pouco de irreverência. Após conversa com Luís Sottomayor percebi que esta é a marca de Soares Franco, a delicadeza em detrimento da voluptuosidade...
Nota principal: mais uma vez, o equilíbrio aromático, começo a conseguir perceber e distinguir o Barca Velha :-P
O meu pensamento já estava no ano seguinte...
1985...
O meu primeiro vinho de Fernando Nicolau D'Almeida e logo de um ano muito especial para mim...
Como é possível após tantos anos ainda possuir esta cor ruby?
Lembram-se do de 2000? Bem, neste 1985 os aromas terciários já cresceram e misturam-se na perfeição com os primários e secundários. É um "upgrade" que só se consegue envelhecendo a garrafa. Incrivel como ainda se conseguem saborear a fruta vermelha madura, a violeta, a esteva e as especiarias.
Se os outros eram equilibrados, este desequilibrou o meu conceito de equilíbrio, parece feito com pinças e tubos de ensaio, onde tudo é ponderado, muito, mas mesmo muito bom!!!
Bora lá recuar mais três anos...
O 1982 ainda mantém reflexos vermelhos, mas começa a ser invadido por uma tonalidade atijolada, a idade não perdoa, e no caso dos vinhos, isso até nem é mau :-P
Os frutos vermelhos maduros continuam presentes (como é possível???) e são enriquecidos com aromas balsâmicos e especiarias.
O envelhecimento em garrafa dá ares da sua graça através do couro (foi aqui a primeira vez que o senti num vinho) e algum fumo. É um vinho muito complexo, longo e ... harmonioso :-P
Um atleta de longas distâncias, espero conseguir conversar com ele mais perto da meta...
Poderá isto ficar ainda melhor?
1965...
Um hino aos aromas terciários, iodo, farmácia, cedro, verniz, floresta e caixa de tabaco, tudo isto recebido repentinamente quase como uma estalada... É impossível ficarmos-lhe indiferente...
Surgem também especiarias, notas balsâmicas e trufas. É muito complexo, e de final, que ainda hoje, um mês depois, não consigo traduzir por palavras. Há muitos vinhos que não cabem na garrafa, aquele não cabia na sala...
O carácter profundo e personalidade misteriosa pedem-nos para que nunca nos esqueçamos dele, para que tornemos todos estes arrepios em memórias e que agradeçamos aos céus por esta oportunidade. É um privilégio beber este vinho, acho que não houve nenhum provador na sala que não se tenha sentido desta forma.
As notas de prova, escritas à mão, que normalmente levam três linhas neste 1965 tornam-se livros com vários capítulos, fiquei sem vinho antes de ter ficado sem palavras, frutas, vegetação e especiarias para o descrever.
Foram precisos mais de 50 anos para que ganhasse este bouquet, já pensaram que o Sr. Fernando Nicolau D'Almeida o preparou para que atingisse esta complexidade, sabendo que dificilmente a provaria? Haverá no mundo dos vinhos algo tão altruísta?
Questionado por amigos, disse-lhes que a diferença de um grande vinho para o Barca Velha 1965, é a mesma que distancia um sumo de uva para um grande vinho, juro-vos que é verdade.
O Barca Velha 1965 não é vinho, é vida, cultura, bom gosto e história, a melhor que me contaram até hoje...
No final da prova foi tempo de falar sobre todos estes vinhos, de uma maneira que raramente a posso fazer. Enólogos, directores e apaixonados pelo Barca Velha, todos partilharam o que acabaram de sentir. Neste tipo de encontros, por vezes, encontramos uma postura orientada para o ego, mas, neste caso, a degustação foi mais sobre aprender, descobrir e trocar ideias. Muitos na sala provam Barca Velha há décadas e conhecem os vinhos muito melhor do que eu jamais irei conhecer, no entanto, ao provar com esses especialistas, saí com muito mais conhecimento do que quando cheguei. Não é isso que importa?
O evento prosseguiu mais tarde com um jantar comemorativo dos 25 anos do clube Reserva 1500, onde foram servidos o Quinta dos Carvalhais Reserva Branco 2011, o Legado Tinto 2009 (outro grande vinho!!!), o Sandeman Porto Tawny 20 anos e o Porto Ferreira Vintage 1991, como o post já vai longo, falar-vos-ei deles mais tarde...
O jantar culminou com um brinde e um agradecimento especial por parte de Manuel Guedes, por termos vindo de tão longe. Obrigado.
Eu não quero que provar Barca Velha se torne apenas mais uma prova. Eu quero que ele permaneça especial, a ser aguardado com entusiasmo, e que nunca o tome como garantido. Tem que ser um velho amigo, que em ocasiões especiais o posso visitar. Oxalá a vida nos permita envelhecer juntos.
Quero lembrar-me cada vez que prenda o meu olhar, invada o meu nariz, toque os meus lábios, surpreenda o meu palato e me preencha a alma.
Obrigado também ao Sr. Nicolau por nunca me ter enganado acerca da sua maior criação e por continuar a alimentar esta minha grande paixão. Os grandes poetas atingiram a imortalidade com as obras que nos deixaram, o Sr. atingiu-a com algo que ainda vive, envelhece e cria, dia após dia, uma nova história, que também é a sua. O seu coração ainda bate em cada garrafa de Barca Velha e é também por isso que as temos de respeitar.
O fim de semana, acabou um dia mais tarde, em grande, melhor que um Barca Velha, só uma Vida ... Nova!!!
Este foi o meu sonho, qual é o vosso?