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No meu Palato

No meu Palato

Restaurante Astória | Cegamente na escuridão

"Cozinhar é um acto de generosidade, porque cozinhamos para alguém, mesmo que seja só para nós mesmos. É generoso o acto de dar e também é generoso o acto de receber. De autoconhecimento, porque, para cozinhar, é preciso olhar para fora e para dentro - ver como está o dia, como está a pessoa, e o que é mais adequado preparar e de que forma. Existe o dia de salada de folhas frescas e existe o dia de sopa quente de raízes. De contacto com a natureza, porque os ingredientes da comida costumam ser naturais na origem, a água é natural, o fogo é natural. Por isso, seja o que for que estivermos a comer, devemos comer sem culpa, sem raiva, sem medo. A felicidade melhora a saliva, o corpo acredita que aquilo é bom. Mastigue bem, saboreie ao máximo e agradeça a sua boa sorte. Ou não é uma sorte estarmos vivos e comermos bem?! Sonia Hirsch

 

Aquando da minha visita ao InterContinental Palácio das Cardosas tive a oportunidade de conhecer o restaurante Astória. 

InterContinental Porto - Palácio das Cardosas

A sala é grande, elegante, serena e luminosa, com as mesas generosamente espaçadas para permitir momentos mais privados. Foi o primeiro jantar que tive a dois com a minha esposa, depois da nossa princesa ter nascido, essa atmosfera intimista permitiu que uma longa conversa se tornasse curta demais :-)

Apercebi-me imediatamente que é um restaurante muito bem pensado, de topo e que ambiciona ser muito mais que aquilo que já é. E o que já é, já me convenceu. O serviço é excelente, o menu interessante e as harmonizações sugeridas inteligentes e eficazes.

Restaurante Astória

 Quando nos sentamos numa das suas mesas parece que estamos num casulo com uma janela com vista para um dos locais mais agitados da cidade do Porto. A Praça da Liberdade, a Avenida dos Aliados e a Praça do General Humberto Delgado conversam todos os dias a seus pés.  Esse autentico casulo, que é o Astória, tem o poder de travar o tempo e acelerar a nostalgia, começamos a ver a vida conturbada do Porto em câmara lenta e damos graças pela sorte de estarmos vivos, será que também íamos comer bem? :-P

Restaurante Astória

 Experimentamos o menu de degustação aconselhado pela simpatiquíssima chefe de sala Marta, concebido pelo Chef Pedro Sequeira e harmonizado pelo apaixonado escanção Luís Marinho. É incrível e por vezes surpreendente, a quantidade de pessoas necessárias para que uma refeição realmente funcione, é por isso que cozinhar é sobretudo um ato de generosidade.

Começamos com uma Maionese japonesa (com maçã e aipo) e atum tártaro. Fresco e refrescante, com atum de qualidade suprema. Há momentos na cozinha em que "basta" respeitar a mestria que a mãe natureza tem, e este atum foi respeitado ao máximo. Muito mas mesmo muito saboroso. Foi acompanhado por um Espumante Soalheiro Alvarinho  2014 que emprestou os citrinos e as notas tropicais à suavidade e textura cremosa da maionese. 

Boas vindas

 Seguiu-se o Creme de cogumelos com presunto alentejano, chila fumada e azeite de tomilho. A chila fumada arrecadou (para já) o prémio surpresa do ano :-P Muito agradável e inesperada. O creme contrasta com o salgado do presunto e combina com o doce floral do vinho Ervideira Invisível 2015, um jogo de sabores muito engraçado. Tinham-me falado deste vinho uns dias antes, um vinho branco de uvas tintas, produzido a partir da lágrima de uvas finas da casta Aragonês colhidas durante a noite. Resultado? Uma maturação levada ao limite, originando aromas a pêra, manga e ameixa branca.

 Creme de cogumelos com presunto alentejano | Terrina de foie gras

 Quando no inicio li no menu, "Terrina de foie gras com brûlée de fava tonka e puré de pistacho e redução de vinagre balsâmico", confesso-vos que a minha boca salivou imediatamente. Estou a ficar  foie gras-dependente :-P Este prato é untuoso, rico, guloso. Se o pecado fosse transformado em comida, seria em algo parecido com esta criação. Todo este exagero voluptuoso é equilibrado pelo inefável e adocicado creme de fava conta. Delicioso!!!  A harmonização deixou-me (no inicio) um pouco confuso. O Luís escolheu um Niepoort Dry White Port. Acabou por funcionar muito bem. Este espírito inovador, correndo riscos, procurando o não-óbvio, faz por vezes falta aos escanções de renome. Muito bem feito e harmomizado, as nozes, as amêndoas, a óptima acidez e a doçura acabaram por afagar e polir os aprazíveis exageros do prato.

Garoupa

 Depois deste grande momento eno-gastronómico, era chegada a vez da Garoupa com mousse de couve roxa, tubérculos glaceados e molho de açafrão harmonizado com o Contacto Alvarinho 2015. A textura amanteigada e suculenta da garoupa foi tornada delicada, rica e elegante pelos apontamentos da couve, tubérculos e açafrão. O final amargo, mineral e seco do Alvarinho equilibrou todo este conjunto.

Depois ...ai depois, o grande momento da noite,  pelo menos aquele que ocorreu dentro das quatro paredes do restaurante :-P, Lombinho de javali confitado e alheira do bosque com cogumelos silvestres e molho de mirtilo.

Lombinho de javali confitado

Este prato merecia ser provado por toda a gente que respeita a comida, gastronomia e restauração. Aliás, não por aqueles que a respeitam, por aqueles que são apaixonados por ela. Arriscar e inovar, javali com alheira, misturar o clássico com o novo, pode resultar em pratos inesquecíveis como este. Jamais olvidarei o modo como o javali lutou no meu palato com o molho de mirtilos, frescura e untuosidade tudo no mesmo momento, não vos consigo dizer quem ganhou essa luta, ou melhor, até consigo, ganhei eu :-P

O Vallegre Reserva 2011 foi o meu vinho favorito deste jantar, de cor rubi muito profunda no nariz, revela esteva, violetas, mirtilos, cerejas, framboesas, especiarias e um toque de madeira fina. É musculado, denso e com muita personalidade. A acidez e taninos complementam-se dando origem a um conjunto muito elegante e equilibrado. Acompanhou na perfeição a obra prima que é este prato.

Bolo podre / Bolo de chocolate V6

 As sobremesas foram o final perfeito para esta noite, Bolo podre com neve de queijo fresco, gelado de abóbora e crocante de canela e mais tarde um Bolo de chocolate "V6" e duo de sorbets. O bolo foi baseado numa receita tradicionalmente alentejana.  O azeite, a canela, o mel e o modo como foi concebido respeitam as raízes da doçaria conventual.  É denso, delicioso e carregado de sabor.

O Bolo de chocolate "V6" deve o seu nome aos seis tipo de chocolate (anufaktura Czekolady (Polónia), Duke od Delhi (Inglaterra), Bjorn (Suécia), Mulaté (Lituânia) e dois Amma (Brasil)) usados na sua confecção. Não deve ter sido fácil conjugar e equilibrar os seis, mas o Chef conseguiu-o. Quem gosta de chocolate tem mesmo de provar este bolo. Os diferentes sabores, aromas e texturas tornam esta sobremesa quase tão surpreendente quanto saborosa e doce. Toda esta riqueza foi equilibrada e potenciada pela frescura e pouca doçura do Quinta Portal Moscatel do Douro Reserva 2004. A nobreza sensorial do V6  foi ainda enriquecido com aromas de pêra, maça madura e damasco caramelizado do vinho.

Até à próxima :-P

 Neste negócio dos restaurantes, a coisa mais difícil, quando se atinge um certo nível, é ficar actual, dia após dia. O mundo muda muito rápido ao nosso redor, e por mais difícil que seja, a chave para o sucesso é abraçar esta mudança constante e acompanhar esse dinamismo.

Há muitos momentos na vida em que não podemos ver o que nos espera ao virar da esquina, e é precisamente nessas ocasiões, quando o nosso caminho para a frente não está claro, que devemos manter corajosamente a nossa atitude irreverente,  colocando, com confiança, um pé antes do outro enquanto marchamos cegamente na escuridão. 

 A todos do restaurante Astória, nunca tenham medo de tentar algo novo, como fizeram com este menu, é esse o tempero da vossa vida.

 

 

Obrigado pelo vosso convite Andreia Martins, convidar alguém significa ocupar-se de sua felicidade durante todo o tempo em que estiver sob nosso tecto, fomos muito felizes convosco ;-)