Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso | Festival do Vinho do Douro Superior 2017
Miguel Torga imortalizou o Douro como "um excesso da natureza", e eu acho que não há melhor caracterização que essa. Um rio bravio, dos rabelos, do vinho e das vinhas, que deambula por vales apertados e protegido por socalcos suportados por muros em pedra posta, o meu rio...
Para Miguel Torga, é uma surpresa que o Douro das temperaturas elevadas, das encostas íngremes carregadas de estevas e zimbros, da chuva austera, da terra grossa e com xisto, da geada mortífera e das cheias abruptas, dê bom vinho. Mais que uma surpresa acho que é uma dádiva às gentes durienses, as protectoras desse reino maravilhoso de que vos vou falar hoje.
A visita a este grande oceano megalítico começou com uma viagem na embarcação Senhora da Veiga, uma réplica dos tradicionais barcos rabelos, que transportavam as pipas de Vinho do Porto do Alto Douro, até às caves em Vila Nova de Gaia. A sua construção teve como objectivo desenvolver a oferta turística local permitindo viajar por dois Patrimónios da Humanidade, a região vinhateira do Alto Douro e os sítios de arte rupestre do Vale do Côa.
A bordo, o enólogo Carlos Magalhães, apresentou os vinhos do projecto Palato do Côa, salientado que aquilo que a sociedade 5 Bagos pretende é fazer vinhos que eles e os seus amigos gostem de beber. Se me poder incluir nesse lote e no que a mim me diz respeito, gostei bastante de beber o Palato do Côa Códega do Larinho 2015 e o Palato do Côa Reserva 2012 :-P
Do branco destaco sobretudo a ausência de fruta, a exuberância das notas minerais, a excelente intensidade aromática, os apontamentos florais e o aroma terpénico a casca de limão. O Palato do Côa Reserva 2012 veste um violeta profundo, e tal como no branco, as sugestões florais tornam o vinho muito elegante. A estas juntam-se o cacau, os mirtilos, as amoras e a compota de ameixa. O palato do Palato (:-P) é bastante guloso, com taninos domesticados e nuances de especiarias.
Depois deste passeio fantástico, tinha chegado a altura de visitar pela primeira vez nesta edição, a Feira.
O primeiro vinho que provei foi o Dona Berta Vinha Centenária Reserva 2010. Um vinho austero que é arredondado pelas notas vegetais, minerais e sobretudo pelas cerejas, morangos, amoras e framboesas. Começa tímido mas depois cresce muito e surgem aromas como a baunilha e o sous bois. Fresco, com bom volume, equilibrado e elegante. A Feira tinha começado em grande :-P
Mais tarde, ao jantar, tive a oportunidade de conhecer a Conceito Vinhos, uma empresa familiar sediada em Cedovim, concelho de Foz Côa, que tem como enóloga responsável a Rita Marques. A marca Conceito, explicou a Rita, é usada para os vinhos que lhe "apetece fazer" e que depois tentam vender, e não fazer os vinhos de modo a que os possam vender facilmente, isso nota-se no copo. Um desses vinhos com mais ADN da produtora é o tinto Bastardo, uma casta mal amada no Douro mas com enorme potencial.
Os vinhos mais "comerciais", por asssim dizer, são vestidos com a marca Contraste. Confesso que tinha uma enorme curiosidade de conhecer o Conceito Bastardo, tenho amigos que o adoram, tenho outros que nem o podem ver, eu agora, posso finalmente dizer que faço parte do primeiro grupo :-P
Em primeiro de tudo, o Bastardo é um vinho "enganador", a cor não "bate certo" com o aroma e a boca, é um vinho pouco extraído, pálido, ruby claro, com laivos atijolados, no nariz apresenta fruta preta, bagas silvestres e especiarias. Na boca cresce muito, tem uma óptima acidez, é bastante elegante e muito requintado.
Não sei porquê mas este vinho transportou-me da casa da Rita para a Borgonha e para os Pinot Noir que lá se fazem. Para além de todas estas mais-valias, o Bastardo tem mais uma, é muito gastronómico e acompanhou na perfeição uma vitela estufada lentamente numa panela de ferro fundido, provavelmente a melhor que provei até hoje.
Outro vinho que destaco dessa noite é o Conceito Porto Branco by Barbeito lote 2. Às vezes pergunto-me a que saberia um Porto Vintage Branco, acho que a resposta tem de ser algo muito parecida a este Conceito Porto Branco. Aromas bastante intensos de frutos secos, esteva e compota de damasco. Paladar com um leve, muito leve tostado, corpo médio e adstrigente, com um final extremamente fresco e especiado. No entanto, o álcool prejudica ainda um pouco a riqueza aromática que o vinho parece ter, tem tudo para crescer em garrafa. Parabéns Rita!!!
O dia seguinte amanheceu na Quinta de Castelo Melhor onde pude conhecer um pouco melhor o projecto Duorum da João Portugal Ramos Vinhos. A conduzir a Duorum está uma pessoa que muito estimo, José Maria Soares Franco, um enólogo que já teve a seu cargo a produção do meu querido, estimado e grande amigo Barca Velha. E antes que comecem com coisas, a relação entre o apreço que tenho por este homem e o facto dele ter sido o enólogo responsável da Casa Ferrerinha ... não é pura coincidência :-P
Situada na parte mais oriental da região demarcada do Douro, mais quente e seca, esta Quinta fez com que Soares Franco regressasse às origens, voltasse à terra e conciliasse o seu saber de 30 anos com o de João Portugal Ramos na tentativa de produzirem de vinhos diferentes, únicos, marcantes, respeitadores da natureza e com um preciso controlo da maturação.
Para fazer vinhos novos é necessária ... vinha nova, daí o nascimento da Quinta de Castelo Melhor.
Entre outros, provei dois grandes vinhos de 2015, Duorum Reserva Vinhas Velhas 2015 e o Duorum O. Leucura Reserva 2015 (que ainda não foi lançado para o mercado). Ambos novos, um deles excelente, outro extraordinário.
O Vinhas Velhas no copo é muito denso e concentrado, libertando no aroma amoras, mirtilos, cassis, esteva, violeta e uma madeira de excelente qualidade. Tem uma óptima acidez, taninos austeros mas já com marcas de amadurecimento e um excelente volume. Neste 2015 acho que a madeira se sobrepõe um pouco em relação ao restante bouquet, mas isso tem única e exclusivamente a ver com a falta de rugas, que o tempo lhe trará.
Esta foi também a primeira vez que provei o O. Leucura...
É um upgrade fabuloso do Vinhas Velhas, é mais escuro, os frutos pretos maduros estão mais intensos, surgem algumas notas picantes que resultam da interacção com a barrica. É mais denso, mais concentrado, a acidez está melhor equilibrada e os taninos mostram-se mais maduros. Acho que se constrói segundo quatro eixos principais; elegância, concentração, riqueza e força. Tem um acabamento longo e duradouro. Fez "parecer banal" um dos meus vinhos favoritos, o Duorum Reserva Vinhas Velhas.
Tenho mesmo de o provar daqui a uns anos, quando estiver mais aberto, com menos vigor e com mais finesse.
Provavelmente, esta quinta, foi o sítio que mais me marcou neste fim de semana do Festival do Vinho do Douro Superior 2017, para além de uma paisagem arrebatadora que é impossível traduzir por palavras, a Quinta de Castelo Melhor tem tudo para produzir bons vinhos, nela estão plantadas apenas castas portuguesas, exibe vinha de encosta que permite obter concentração e amadurecimento e possui também vinha de cotas altas de onde se extrai a acidez. Com isto é possível fazer lotes com as mesmas castas mas de altitudes diferentes, dando origem a vinhos onde as notas dominantes são o equilíbrio e a harmonia.
Foi com pena que deixei a Quinta de Castelo Melhor e não resisti a olhar para trás, pelo vidro da janela do autocarro, dizendo-lhe um "até à próxima" :-P
Esse sentimento de "tristeza" depressa me abandonou quando cheguei à Feira e provei o Quinta do Vale Meão 2014.
Muito escuro e concentrado no copo. Aromas complexos, harmoniosos e sedutores de folha de chá preto, especiarias, madeiras exóticas e fruta preta madura. Muito redondo, levemente doce e melancolicamente longo. É também muito precoce, há que lhe dar tempo para lhe podermos retirar o que ele tem de melhor.
Enquanto passeava pela Feira com a Quinta do vale Meão no palato encontrei dois senhores que lá cresceram como enólogos, para além de bons vinhos o Meão exportou homens com honradez, respeito, ética e uma capacidade incrível para produzirem vinhos que atingem a crista do sonho.
Quase que aposto que estavam a discutir quem, entre eles, produz/produziu o melhor Barca Velha :-P
A estação seguinte desta viagem magnífica pelo Reino Maravilhoso do Douro foi o Restaurante Côa Museu onde iríamos degustar um menu harmonizado com os vinhos Colinas do Douro. Estes vinhos são produzidos entre penedos e escarpas na súbita transição do solo granítico do planalto beirão e as primeiras pregas de xisto para o rio Douro.
Os Colinas do Douro procuram promover um Douro Superior com sua elegância, frescura e mineralidade.
De todos os que tive oportunidade de experimentar gostei mais dos dois reservas de 2015, o branco e o tinto.
O Colinas do Douro Superior Branco Reserva 2015 destaca-se sobretudo pela sua mineralidade, amplitude e frescura. As castas Rabigato, Viosinho, Alvarinho e Verdelho deram origem a um lote bastante agradável, com alguma concentração e aromas a pólvora e ameixa bastante agradáveis.
O meu preferido foi no entanto o Colinas do Douro Superior Tinto Reserva 2015, ainda muito jovem, curiosamente exibe as mesmas notas de pólvora que o seu irmão branco. Revela também morangos, framboesas, baunilha, pimenta branca e noz moscada. Tem ainda algo que encontro muito nos vinhos da Quinta do Vallado e que gosto muito, a giesta. No palato é muito fresco, mineral e robusto devido aos taninos irreverentes.
No que diz respeito ao estômago, o mesmo foi afagado com cogumelos Portobello recheados com alheira (pena que o cogumelo seleccionado não tenha sido um dos deliciosos daquela região); com uma inefável posta à mirandesa com maçã ao vinho do Porto, grelos, batatas grelhadas e oregãos; e para finalizar com uma inebriante telha de amêndoa com gelado de frutos secos sob chocolate quente e fruta laminada.
Quer a carne, quer a telha estavam divinais e fizeram-me regressar no dia seguinte, com a a família e amigos, mesmo quando o restaurante estava fechado :-P
Este restaurante oferece uma vista deslumbrante, de dia e à noite, sendo o próprio edifício digno de contemplação prolongada. O menu é vasto e representa bem a região onde está inserido. Como já se fazia tarde, era a altura de regressar à caminha :-P
É sempre assim, como tudo o que é bom passa rápido, tinha chegado o último dia do Festival do Vinho do Douro Superior 2017.
Partimos em direcção ao Poço do Canto, na Mêda para tomar contacto, pela primeira vez, com os vinhos produzidos pela Lucinda Todo Bom. E que primeira vez, foi lá, que conheci, para mim, o melhor vinho da edição deste ano do Festival.
Mas já vos falo dele...
Reza a lenda que em tempos passados o deus romano Baco passou por aquelas terras. Depois de uma grande viagem, cansado e extenuado não teve outro remédio que não descansar um pouco no Poço do Canto. Passados uns minutos encontrou uma família duriense que ao ver tão inusitado pranto ofereceu água ao tão poderoso deus. Sendo ele o deus do vinho, só por extrema necessidade a bebeu, sem no entanto reclamar : “Um dia ainda hão-de saber o que é vinho”. Foi por este gesto abnegado da família que Baco mandou plantar vinha nas terras áridas e rudes do Poço de Canto, daí que os melhores vinhos deste produtor, trajem no rótulo Quinta dos Romanos.
A enologia está entregue a Mateus Nicolau de Almeida (foi um privilégio conhecê-lo), neto do Sr. Fernando Nicolau de Almeida, que procura promover a excelência nos vinhos que produz recorrendo a métodos tradicionais. Desses vinhos excelentes vou destacar dois. O primeiro o Fonte Cordeiro 2003. Um entrada de gama da casa que o produz mas que foi capaz de aguentar 14 anos em garrafa. Produzido num ano bastante quente manteve a frescura, ganhou um ligeiro químico e escondeu um pouco a fruta. Gostei sobretudo do iodo, do carácter vegetal e do fumo, que a mim me surpreendeu.
E agora, a maior surpresa de todas, o Quinta dos Romanos Reserva 2007, que vinho!!!
Tenho a certeza que foi por causa de vinhos como este que o deus Baco mandou plantar vinhas no Poço do Canto.
Ostenta uma bonita cor ruby com uma auréola violeta. No nariz mostra framboesas, morangos e apontamentos a esteva e giesta (TOP!!! :-p). Mais suaves mas bem presentes surgem ainda brisas de chocolate e madeira de excelente qualidade. No palato é um vinho muito fresco, elegante, fino, com taninos redondos mas aguerridos.
É um vinho que não cansa devido à sua espectacular e irrepreensível acidez. O final de boca é longo, persistente, harmonioso, complexo e muito sedutor. Há alguém lá em Cima muito contente que o Mateus tenha conseguido fazer um vinho destes, parabéns!!!
Foi o parceiro ideal para o cabrito preparado com orégãos e carinho pela dona Lucinda, obrigado por isso.
Depois deste mega momento, que é a descoberta de um grande vinho, dirigi-me pela última vez à Feira do Festival do Vinho do Douro Superior 2017, desta vez na companhia da família e amigos. Aproveitei a ocasião para regar mais um pouco a semente vínica que espero ter plantado no coração da minha princesa. O interesse pelos Tawnys velhos mostra que a minha outra princesa também tem regado, regularmente, a mesma semente :-P
Foi um grande festival, carregado com com pessoas extraordinárias que cantam, dançam e trabalham o vinho do Douro. São as mesmas pessoas do trabalho nas margens do rio de oiro, lá em baixo, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca. Depois erguem-se os muros do milagre. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.
Por vezes, ando "meio aflito" com a citação com que inicio estas publicações, mas até nisso o Douro foi generoso comigo, enquanto me despeço da Feira encontro este rótulo, basicamente é isto...
Miguel Torga diz que as pessoas que ficam naquele Reino Maravilhoso, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. Descanso? Esse, apenas o vão ter na eternidade, mas se na eternidade não houverem socalcos nem vinhedos para contemplar, tenho a certeza que as gentes durienses não têm pressa de lá chegar.
Tenho mais uma vez de agradecer a todas as pessoas que se cruzaram comigo durante este fim de semana, principalmente à Joana Pratas por me convidar a trepar e atingir a crista do sonho, permitindo-me contemplar este Reino Maravilhoso.
Até à próxima :-P