Adegga WineMarket Porto 2017 | Quatro pecados capitais em forma de vinho
"Há expressões da actividade humana – seja na arte, na literatura ou música – que achamos que são perfeitas. E depois há aquelas que são inesquecíveis. E estas são as que, podendo não ser perfeitas, mostram um carácter e uma personalidade tão vincada que sabemos logo que são inconfundíveis e inimitáveis."
Manuel Guedes, Revista Reserva 1500
Aromas de madeira húmida, cogumelos, pimenta e couro levam a um palato encantado com sabores de sous bois e iodo ... parece-vos delicioso? E se ainda juntarmos aromas de gasolina, cera de vela, aipo e rochas esmagadas, farmácia e essência de limão??? Vinhos velhos não são para todos. Se gostam continuem a ler, se não gostam leiam da mesma :-P
Parece incrível, mas já passou um ano desde o Adegga WineMarket Porto 2016. E se no ano passado consideramos este o melhor evento vínico, este ano foi absolutamente arrebatador!!! Já dizia Aristótles «Somos o que repetidamente fazemos. A excelência, portanto, não é um feito, mas um hábito»." Acho que estas palavras encaixam como uma luva nos Adegga WineMarkets.
O evento decorreu no Porto Palácio Congress Hotel & Spa, num dia mais solarengo que na edição anterior e numa sala mais funcional. Este foi o primeiro evento vínico da Bia (que já conta mais de 4 meses) e não tivemos qualquer tipo de problema com o acesso do carrinho da bebé.
A sala que inicialmente parecia enorme depressa se "encolheu" com a quantidade de enófilos a que ela acorreram.
Começando pelos brancos, gostei muito do equilíbrio e elegância do Flor de S. José Reserva 2013; da manga, toranja e pêssego do Esporão Reserva 2013 (este é sem dúvida dos meus brancos favoritos, ano ... após ano), da toranja e figos (???) do Duas Quintas Reserva 2015 e adorei o Quinta dos Carvalhais Especial (lote de 2004, 2005 e 2006 ). No nariz mostrou-se firme com notas de carvalho fumado, cogumelos, rochas esmagadas, pólvora, pêra, espargos e mel. Na boca é bastante cremoso, fresco e ... austero. Podiam fazer-se mais brancos assim. É requintado no final e com um volume que nos enche a boca.
Nos tintos vou destacar três. A tosta e notas mentoladas do Quinta do Pôpa Homenagem 2011, os aromas balsâmicos especiarias do Quinta dos Murças Reserva 2011 (2011 é mesmo um ano enorme no Douro) e tudo no Chryseia 2014.
No nariz mostra ameixas e groselhas maduras escondidas no seu manto violeta. As bagas pretas picantes são equilibradas moderadamente por um pouco de frescura e pelos taninos, discretos, mas presentes. Após as notas ricas de cereja, surgem as especiarias no palato oferecendo uma complexidade e harmonia bastante agradável. É intenso, muito concentrado e sobretudo equilibrado. Entrou na lista de favoritos :-P Este vinho está à procura de um pouco mais de finesse para complementar a grande fruta irrepreensível, tem tudo para a encontrar após alguns anos na garrafeira.
Depois subimos (em direcção ao céu) para a sala Premium com os seus vinhos velhos. A verdade é que o vinho velho mostra-nos alguns sabores estranhos, a magia não vem apenas da unicidade daqueles sabores e texturas inusitadas, que não podem ser duplicados em nenhuma outra bebida, mas também da história que foi engarrafada e que com cuidado foi "atesourada" ao longo do tempo. O Adegga WineMarket permite-nos entrar nesse mundo encantado dos vinhos carregados de aromas, rugas e memórias.
Antes de vos falar desses autênticos fosseis vínicos vou destacar um espumante. A garrafa e a caixa são lindíssimas, mas o que mais me encantou foi o seu interior. Excelente corpo, mousse muito fina e com sabores delicados a biscoito e pão. O palato é complexo, intenso e cheio de sabores de noz torrada, chá e caramelo seguido de um acabamento bastante longo. É assim o Ravasqueira Grande Reserva 2012, dos melhores espumantes portugueses que provei até hoje.
Depois seguiram-se os pedaços de história materializados em garrafas de vinho.
Nos tintos destaco os dois Sagrado Vinhas Velhas em double magnum (2009 e 2008), o de 2009 com as suas notas licoradas e o 2008 com a sua delicadeza impressionante. Gostei também muito do fumo apaixonante do Três Bagos Grande Escolha Estágio Prolongado tinto 2005, a elegância do Triunvirato nº4 e a herança que o Grantom Reserva 2001 deixou. O Granton foi uma das mais famosas marcas de vinho de Portugal, que desapareceu há quase 15 anos. Este 2001, com 18 meses em carvalho Português, é um vinho poderoso em ameixas, amoras e cassis, baunilha, gasolina, cera de vela, couro, farmácia, iodo e um delicioso chocolate.
Depois um "exagero", os Porto que o Adegga apresenta ano após ano... São vinhos que mereciam que ficássemos lá uma semana e não apenas uma tarde.
Há qualquer coisa nestes vinhos que está carregado de romance, descoberta e aventura. São esses os sentimentos que os Porto antigos me despertam. Acho que a história por trás de cada vinho é quase tão incrível como os vinhos em si, quase... :-P São tantos e tão bons que é injusto deixar alguns de fora. O critério que tive foi falar-vos apenas daqueles que ainda me lembro de cada aroma que me deram. A resina, anis e mel do Dalva Branco 1963 (o melhor Porto branco que provei até hoje); as nozes, pimenta, canela e café do Poças 1967, o cravo e avelã do Burmester 1952 e a complexidade aromática do Niepoort 1957 com essência de limão, tosta, caramelo, nozes, amendoim e o agradável "vinagrinho" que lhe dá requinte.
Ainda assim, o Real Companhia Velha Carvalhas 1927 ainda hoje não me deixou. Sei que não é consensual, mas os seus aromas aveludados levaram-me numa viagem infinita, com notas de madeiras nobres, verniz e fumo bem evidentes, acompanhados por brisas mais ténues de fruto seco torrado, cera de vela e café. No palato aparecem também a ameixa madura, a folha de figo seca e ainda alguma baunilha. Toda a experiência de prova é muito delicada, sedutora e elegante. O final de boca termina ... ou melhor, não chega a terminar. Foi para mim uma experiência inesquecível, tão concentrado que parecia um rebuçado de história que não se dissolvia na memória. Foi o vinho do Porto mais antigo que provei até hoje, e também o mais excêntrico e denso.
As surpresas deste ano na sala Premium foram o Moscatel e Madeiras antigos. O Blandy's Terrantez 1976 parecia uma salada de aromas com marmelos, figos, tâmaras, madeira húmida, canela, verniz e café torrado, muito bom!!! O seu conterrâneo , o Bual 1967, carregava aromas complexos de nozes, frutas cristalizadas e baunilha potenciados pelas notas balsâmicas.
Se me perguntarem a que sabem vinhos com mais de cem anos, eu agora, graças ao Quinta do Piloto Colecção da familia Moscatel roxo, finalmente posso esclarecer-vos. Uma resposta seria - tipo de um monte de coisas misturadas, por exemplo, mel, meloa, alperce, tangerina, alguns frutos secos, café, cidra, gengibre, avelãs e damascos torrados. Outra resposta igualmente correta - como nada mais que eu já tenha provado.
O que verdadeiramente me surpreendeu, para além da sua densidade, foram a sua complexidade aromática e sabor, aliados à sua extraordinária frescura que equilibra a doçura natural e concentração que o vinho carrega. Top!!!
Para último, de volta aos tintos e ao meu vinho favorito da tarde. Se o Porto colheita 1927 não era consensual, este muito menos :-P Apaixonei-me mais uma vez pelo Legado, desta vez o 2012, talvez o ano tenha ajudado a esta atracção imensurável... Este vinho carrega quatro pecados capitais (obrigado Costa :-P), avareza, luxuria, gula e soberba. A citação com que iniciei este texto continua dizendo que se tão nobre distinção se pudesse aplicar aos vinhos, o Legado 2012 faria parte do segundo grupo, ao grupo dos imperfeitos mas inesquecíveis, acho que lhe falta um pouco de austeridade, mas, no entanto, mostra um carácter e uma personalidade tão vincada que sabemos logo que são inconfundíveis e inimitáveis. Porque perfeito só mesmo esta imperfeição magistral. É sublime porque esta imperfeição combina com as suas mais valias, faz ter sentido até o que não se explica. Acho que o Legado 2012 é mesmo assim, não se explica, sente-se. Tem aromas avarentos de fruta vermelha bastante madura como os mirtilos, amoras e ameixa , surgem também notas a violetas, esteva e a uma madeira luxuosa muito bem integrada, que não prejudica as notas de fruta. No palato é guloso, fresco, volumoso e com taninos arredondados. É tão genuíno e tem uma personalidade tão invulgar que o tornam único. Acaba com soberba, voluptuoso, complexo e muito, mas mesmo muito longo. É imperfeitamente perfeito :-P
A Bia gostou tanto deste vinho que não deixou que me viesse embora sem três belos exemplares para guardar e abrir na sua maioridade :-P
Para além destes grandes vinhos, voltei a falar com velhos amigos, discuti com produtores e partilhei experiências com enólogos. Neles encontrei virtudes que compensaram os quatro pecados do Legado (:-P). Generosidade com que partilharam os seus vinhos, humildade no lamento dos seus medos e angústias, honestidade nos sonhos engarrafados que nos dão a provar, fidelidade ao terroir que representam, prosperidade na busca da excelência, dignidade no respeito pelos "concorrentes" e a lealdade para com a memória dos seus antepassados.
Por tudo isto e por terem tornado a minha tarde inesquecível, obrigado Adegga WineMarket Porto 2017 , especialmente a ti André Ribeirinho pelo convite.
Até à próxima no sítio do costume, continuem a "banalizar" a excelência :-P