PORTA Restaurante | Centímetro a centímetro
"É uma coisa curiosa e fascinante, Harry, mas talvez aqueles que são mais adequados para o poder são aqueles que nunca o procuraram. Aqueles que, como tu, têm a liderança imposta neles, e assumem o papel porque o devem fazer, descobrem, para sua própria surpresa, que o desempenham bem. Enquanto líderes, todos temos tanto a luz como a escuridão dentro de nós. O que importa é o lado que escolhemos para agir. Isso revela o que realmente somos. Por isso, são as nossas escolhas, Harry, que revelam quem realmente somos, muito mais do que as nossas habilidades.” Alvo Dumbledore na saga Harry Potter
Sejam então muito bem-vindos a uma das publicações mais desafiantes que tive no blogue, falar do Porta, do chefe André Silva.
Conheci o André em 2014, aquando da visita ao Largo do Paço, num jantar comemorativo do aniversário da minha esposa. Na altura, o chefe principal Vítor Matos não estava no restaurante, e foi o André a preparar a refeição. Depois acompanhei a sua passagem, tão lógica quanto merecida, a chefe principal do restaurante da Casa da Calçada, vi-o mais tarde a ganhar a estrela e agora a partir para Bragança. Há um momento em que percebo que o André é um fora de série, no jantar de apresentação da sua nova carta, aquando da sua passagem a chefe principal em Amarante. Ideias novas, disruptivas, arriscadas e por vezes completamente "fora da caixa". Jamais esquecerei aquela sobremesa com tomate. No entanto, nessa altura ainda tinha algumas amarras a um estilo mais eficaz e consensual.
Por tudo isto, penso que o primeiro menu totalmente à imagem de André Silva, é este que vou falar neste texto, e que podem experimentar no PORTA Restaurante.
Surpreendeu-me mal vi a Porta. Uma mistura entre teatro, magia, história e misticismo, tudo isto cozinhado a lume brando por um feiticeiro. Tem uma atmosfera daquelas que é impossível de criar artificialmente, difícil de articular e muito complicado de copiar. A abertura da Porta cria toda aquela pompa e circunstância, quase que anunciando que estamos a entrar num mundo mandingado.
Começamos com um já conhecido Nabo gelificado e bacalhau. Muito cremoso, ganha textura e amplitude com o pão ralado e a tinta de choco. O nabos conferem a este puré uma consistência bastante fofa e leve, para além de uma doçura muito natural, tornado a criação muito subtil.
Todas as entradas foram acompanhadas pelo surpreendente Quinta de Carapeços Blanc de Blancs 2011. Muito delicado, com bolha fina, cítrico e tropical, com um final macio, longo e bastante equilibrado.
Seguiu-se o Tomante em crocante e mozarela. Poderíamos pensar que é uma combinação clássica, tomate e mozarela, pois ... mas estamos a falar de André Silva. O tomate crocante e seco perfuma este aperitivo com um sabor condensado, que é muito mais forte do que qualquer outro produto à base de tomate. É quase como se o humilde tomate vestisse um fato de gala para acompanhar o delicioso mozarela.
Depois o primeiro momento "uou!!!", Arroz crocante com tártaro de camarão, toranja e torresmos. É divertido, luxuoso e fresco.
A flor de sal combina e faz realçar o sabor a mar do camarão. Os torresmos enriquecem o prato, concentram-no e revestem-no de uma gordura mais terrena. Para além disso há uma competição muito agradável entre o cremoso tártaro que contrasta lindamente com o crocante do arroz. Textura e apresentação irrepreensíveis (adorei a ideia da base de parmesão) sem sacrificar o sabor!!!
Devido aos seus lampejos ousados referi-me ao André numa publicação anterior como o "feiticiero da Casa da Calçada". A arte de cozinha é a mãe de todas as magias, tudo o que vai ao lume sai saborosa e encantadoramente transformado, mas como tornar um prato ainda mais mágico?
Servindo-o numa máscara que simboliza tradições ancestrais. O André arranjou mais uma maneira de eternizar os antigos costumes culturais, dos caretos, dos chocalhos e das mascaras. Nessa mascara foi servida Alheira tradicional de caça, castanha e espinafre. História, cultura e gastronomia de mãos dadas.
Crocante por fora e levemente pastosa no interior, onde se identificam pequenos pedaços de carne carregados de sabor. Bastante agradável e levemente fumada que é adocicada pelo espinafre e pelas castanhas.
Quando esta entrada foi servida, primeiro com a colocação da máscara, depois com o molho de espinafres e finalmente a alheira, as minhas duas princesas não se encontravam na mesa, a princesa mais nova ao ver tanta comida ficou com fome e a mamã lá teve de a ir alimentar. Para não atrasar o serviço eu disse que podiam servir na mesma, porque elas não se deveriam demorar muito e a alheira não iria arrefecer. Numa conversa ao longe e nas costas (eu ouço bem :-P) percebi a decepção da sub-chefe Jéssica Almeida, da chefe de sala Joana Soares e do servente a apaixonado enófilo Fabio Santos «Fogo a alheira não vai estar no ponto e para além disso a senhora perdeu aquele "espétaculo" de servir a comida na máscara». Por isso, pediram-me se podiam servir de novo o prato quando a minha esposa chegasse, e assim o fizeram. É nestes pormenores de comprometimento com o ofício que percebo quando uma casa vai longe, e esta sem dúvida que vai.
A carta do restaurante é-nos apresentada em actos, quase como se estivéssemos num teatro, sendo o II Ato o menu mais completo, uma sequência de sete criações, e aquele que iríamos ter o prazer e honra de degustar. Levantemos então a cortina então para o Lagostins e beterraba harmonizados com a mineralidade do Soalheiro Granit 2015. Este é um prato tão complexo que dava para fazer um post totalmente dedicado a ele, vou tentar ser resumido :-P Continha um impecável Beurre blanc cuja acidez estava perfeitamente equilibrada com a emulsão, dando suculência, brilho e voluptuosidade aos lagostins. A misuna aparece com a sua acidez, doçura e leve picante que abranda a textura gordurento-cremosa da terrine de porco e a orientalidade do molho taryaki com o seu palato caramelo agridoce. Surgem ainda a terra e madeira dos cogumelos e a acidez e doçura completamente arrebatadora do ananás do Açores. A beterra sobressai quando une o seu sabor terroso aos cogumelos, introduzindo notas levemente adocicadas e frescas. A acidez dos diversos ingredientes une-os e faz com que esta peça de gastronomia seja elevada ao nível de arte. Agora pensem em todo este jogo, a acorrer simultaneamente, na minha boca, de olhos fechados, que sinfonia!!!
O Salmão e vieiras bateram-me ao palato uns momentos depois. Com eles trouxeram ceviche de flores e germinados, leite de tigre e ovas de truta. O tártaro de vieira é muito fresco, doce e delicado e fica maravilhoso servido em ‘banho’ cítrico, originando um sabor fresco e uma textura suave e escorregadia. A frescura da fruta, temperada com a acidez dos citrinos e as explosões salgadas das ovas de truta, ajudam a equilibrar a gordura natural do salmão. A salada de flores e germinados, com aspecto e sabor delicadíssimo, perfuma o prato, com um toque adocicado provocando uma experiência etérea. No conjunto é bastante exótico.
Depois um daqueles momentos em que a célebre frase "uma imagem vale mais que mil palavras" faz todo o sentido. Carabineiro ao carvão.
Um nome demasiado simples para tão luxuriante e imaginativa criação. Uma espécie de mel marítimo fumado com abóbora, citrinos e ouriço-do-mar. Um prato encantador, com sabores e aromas fumados agradáveis, revelando-se a doçura da abóbora uma magistral combinação para o marisco. O pó de carabineiro, muito aveludado possui um perfil de sabor único, limpo e distinto que realça a frescura do molho de ouriço.
O criação incluía ainda um delicioso recheio com a cabeça do carabineiro e abóbora, ESPECTACULAR!!!
No final persiste uma brisa muito agradável no palato que foi muito bem conjugada com a mineralidade, acidez e complexidade Cedro do Noval Branco 2015.
É por isso que costumo dizer, que cozinhar com esta paixão e destreza, é mágico. Trata-se de olhar para os ingredientes que queremos usar, imaginar o que desejamos alcançar, conseguir chegar a esse destino, e algures lá pelo meio conseguir contar uma história. Tal e qual como acontece na magia, ao cozinharmos assim, e se o fizermos abnegadamente, podemos mostrar o melhor que existe em nós ... mas não conseguimos/podemos trazer para fora algo que não existe.
Cozinhar é como literalmente se coloca amor num carabineiro, cozinhar é como se espuma felicidade em forma de molho de ouriço, cozinhar é como se celebra a alegria com a irreverência da lima e do limão. Cozinhar desta forma meus amigos, é dar sabor à poesia que outros terão o prazer de degustar.
A próxima estrofe a ser provada foi Peixe-Galo e caviar que seria servido com a elegância e acidez aguerrida do Alfaiate 2014.
Na rima surgiram aipo, espinafres, funcho e molho de enguia fumada. O peixe estava cozinhado na perfeição, amenteigado, ligeiramente salgado e com o forte toque aromático das ovas. Os cogumelos, o funcho e o fumo da enguia proporcionaram um peculiar cruzamento de sabores. Tentar "dissecar" o sabor deste prato é como tentar separar as nove sinfonias de Beethoven que embora muito diferentes e geniais entre si, não fariam sentido a solo.
O último prato antes das sobremesas foi o Borrego e mel transmontano. Com a deliciosa massa veio um tenro, suculento e rico borrego. Cozinhado no ponto, e acompanhado pelas mouriles, legumes de época e alho negro, o momento pedia mesmo que o pensássemos enquanto desfrutávamos dele. Este tipo de alho vai muito bem com o borrego e cogumelos, juntos promovem uma riqueza e intensidade de sabor incríveis. Para cortar a força do alho apareceu a noz e estrutura esponjosa dos mouriles. Um prato muito bem executado com sabores encantadores e equilibrados. Foi harmonizado com um vinho argentino, um Trapiche Malbec 2014. Surpreendente, com fruta vermelha em compota, notas érvaceas e apontamentos de madeira de boa qualidade.
Açafrão e baunilha, assim se chama a primeira sobremesa e que continha ainda iogurte grego, gengibre, kumquat e alfazema. Quando sentimos o açafrão em conjunto com o gengibre, algo bate ligeiramente na parte de trás do palato e o açafrão acalma-o com a riqueza reconfortante e complexa que pincela este prato. O gelado de baunilha é a textura complementar e perfeita para isso. Com o paladar doce, florar, erval e ligeiramente balsámico da alfazema aliados à doçura e acidez do kumquat, o açafrão eleva todos estes apontamentos degustativos a outro nível. Esta sobremesa foi acompanhada por um Rozès 10 anos cheio de citrinos, figos e nozes alicerçados em equilíbrio, elegância e intensidade.
A segunda e última sobremesa seria o Chocolate e pimento, outro nome completamente assertivo seria: Eu é que percebo disto by André Silva :-P O picante do pimento, a doçura do morango e o aroma do chocolate são uma combinação mágica uma vez que revela aspectos muito subtis destes ingredientes, que de outra forma, poderiam passar despercebidos. O ruibarbo corta a doçura com uma ligeira acidez e o citronel põe todo este conjunto a falar no mesmo comprimento de onda. É uma sobremesa que desperta uma experiência multi-sensorial pondo todos os nossos sentidos a "formigar", incluindo, o mais importante, o nosso palato. A menta e esteva do Graham's LBV 2009 foi um óptimo parceiro para toda esta elegância gastronómica.
O André levou grande parte da equipa que se encontrava no Largo do Paço, muitos daqueles que pensei que seriam os seus possíveis sucessores embarcaram com ele nesta nova aventura, desde pessoal de cozinha, até à sala e fornecedores. Uma equipa completa, unida e comprometida. Achariam estranho se vos dissesse que o André, chefe com estrela Michelin, ganha o mesmo que qualquer um dos elementos da sua equipa? Acho que um líder tem de ser isto mesmo, ou melhor, deve ser, alguém que escolhe a liderança para proteger os seus e lutar por algo que os une, são essas escolhas que revelam quem realmente somos, muito mais do que as nossas habilidades, que no caso do André até são muitas. Não é um qualquer Lord Voldemort que pode dar cabo dessa luz :-P Este ambiente de união fez-me pensar em escolher como citação inicial desta publicação, um discurso de Al Pacino no filme Any Given Sunday.
"Nesta equipa lutamos por cada centímetro. Aqui deixamos a pele em campo e destroçamos todo o mundo à nossa volta por esse centímetro. Arranhamos tudo com as nossas mãos por esse centímetro. Porque sabemos que, somando todos esses centímetros, vamos marcar a diferença entre ganhar e perder, entre viver e morrer. Quando olhamos para os olhos do amigo que temos ao lado vão ver um tipo que se sacrificará pela equipa, porque sabe que fariam o mesmo por ele, isso é uma equipa cavalheiros."
E isso é a vida , o futebol, e deixem-me agora acrescentar a restauração, ou nos unimos como equipa ou morreremos como indivíduos.
Resume-se simplesmente a isto... Al Pacino acaba este brilhante discurso a perguntar à equipa: «Agora o que é que vocês vão fazer?»
Acho que posso responder pela equipa André: ganhar a "porcaria" desse centímetro em forma de estrela, porque se não a ganharem deixo de acreditar na magia delas.
Estar convosco foi uma ode aos prazeres do "bem-viver", à arte de bem cozinhar, ao nobre momento de comer com amigos e às faíscas de emoção que surgem aquando da descoberta de um novo sabor. A vossa Porta para além de transmitir uma visão de arte, amizade, competência, história e hospitalidade em perfeita sintonia foi também o melhor restaurante em que estive este ano. Parabéns e obrigado por isso.