Restaurante Astória | Sem medo, para além do muro
"Eu vim do antigo mundo da gastronomia. Há muitos anos, entrei nas cozinhas do Hotel St. George e senti-me muito afortunado por trabalhar para chefes que estavam atrás dos seus fogões. Essa foi a era de ouro da gastronomia. Passava os meus dias nas margens dos rios, nos bosques, nos campos, a caçar, a pescar e a explorar a natureza. Cozinhar era «apenas» cozinhar. A mãe Natureza era o verdadeiro artista e o nosso trabalho, enquanto cozinheiros, era permitir que ela brilhasse. Porque no final de contas, é apenas comida, não é? Apenas comida... Hoje há poucos chefes que percebem isso e que ainda estejam atrás de seus fogões. Já não sentimos a sua presença dentro da sala. Onde está o romance? Onde está o show? Onde está o teatro?" Marco Pierre White
Há uma altura em que é preciso abandonar a nossa zona de conforto. Quando usamos demasiado uma determinada roupa, esta começa a ficar com a forma do nosso corpo, perdendo as características que inicialmente nos levou a comprar essa peça.
Numa das suas aulas, dizia sabiamente o professor Fernando Teixeira de Andrade, que é necessário esquecer os caminhos que já conhecemos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
O restaurante Astória do Hotel Intercontinental Palácio das Cardosas encontra-se nessa travessia. Outrora conhecido pelo fine dining, o Astória procura agora ser procurado pelos seus petiscos (e por favor parem de chamar tapas aos nossos tradicionais petiscos!!!). Para substituir o estrangeirismo que o caracterizava, agora surge outro, o food to share, ou seja, sentarmos-nos à mesa do restaurante, com um grupo de bons amigos, uns belos vinhos e a partilhar boa comida, sem muita intervenção do chefe, permitindo que a qualidade do produto, que a mãe Natureza, seja o grande artista.
É uma tentativa de regressar às origens, ao sabor, ao cozinheiro, enfim, à era de ouro da gastronomia. Para quebrar o gelo por estarmos num imponente hotel 5 estrelas, os aperitivos são tomados no Astória Lounge by Cattier. Num ambiente único e descontraído no centro histórico da cidade Invicta, é possível usufruir de uma flûte de champagne da prestigiada marca de champagne, cujos sabores frescos, ricos e subtis combinaram na perfeição com uma variedade de aperitivos do restaurante Astória. Fica dado o mote para o jantar: tradição partilhada com requinte.
O serviço continua a ser 5 estrelas, desde a amabilíssima Ana que nos recebeu, ao Daniel Mariz que nos apresentou apaixonadamente o novo conceito do restaurante, passando pelo João que nos preparou um delicioso cocktail com laranja, amêndoa e água tónica. Muito fresco e que despertou o palato para a refeição.
Iniciamos o jantar com a partilha mediterrânica, que inclui presunto ibérico pata negra 5 Bolotas, salmão marinado caseiro, camarão gigante selvagem grelhado, croquetes de batata trufados, beringela grelhada no forno a carvão vegetal, guacamole, crostini de azeitona e um cappucinno de espargos a duas texturas, muito voluptuoso, fresco e rico.
Podia destacar a gordura deliciosa e consistência estrutural do salmão, o fumo (resultado do novo forno a carvão) e mar do camarão ou a riqueza aromática dos croquetes de batata trufados, mas há algo que faz com que o todo seja muito maior que a soma das partes. Os produtos são bastante heterogéneos entre si, mas têm denominadores comuns que tornam esta partilha muito bem conseguida, a riqueza, densidade e pureza de sabor. Enquanto petiscávamos acompanhados pelas peras, ameixa amarela, melão, maracujá e excelente acidez do Três Bagos Branco 2016 reparámos que entre os dois dedos de conversa, havia passado uma hora, percebi ali o que o novo chefe do restaurante Astória pretende...
Para atrair pessoas que habitualmente não frequentam este género de restaurantes o chefe Jorge Sousa reinventou toda a carta (não existe um único prato que transite da anterior), eliminou o formalismo das toalhas brancas e voltou para trás dos seus fogões. Largou o luxo e agarrou o requinte, desprendeu-se das espumas e abraçou o forno a carvão.
E se há um prato que simboliza toda esta metamorfose do Astória, esse prato é o T-bone, carne taurina de Barcelos, maturada 25 dias em Espanha.
Um osso em formato de "T" que divide dois lados e dois tipos de carne. O lado maior é de contra filé carregado de sabor, e o lado mais pequeno é o sedoso filé mignon. Sabor, complexidade, textura e um delicioso "sumo de carne". Quando provamos as diferentes carnes em conjunto acontecem diferentes coisas no palato mas todas ao mesmo tempo, de forma complementar e não conflituosa. Há sabores verdes e de terra, há doce gordo quase floral, há adstringência e há acidez que nos pincela a língua de forma quase irresistível. Foi acompanhado magistralmente por um Campolargo Pinot Noir 2010, na minha opinião, o melhor Pinot Noir que se faz em Portugal.
Fruta vermelha, sous-bois, couro, cogumelos e uma finesse, estrutura e secura que o aproxima, e muito, aos vinhos da Borgonha. A óptima acidez casou na perfeição com o "sumo de carne" gordurosamente delicioso do T-bone.
A intrometer-se neste casal feliz, de carne e vinho, apareceu um Sr. puré de batata doce (aqui nasceu uma paixão :-P). Bastante cremoso, rico e com um toque de caramelo. Meus amigos, só vos digo isto: é de comer e chorar por mais :-P
Era chegada a hora das sobremesas, a primeira foi um belo de um fondant de chocolate com 70% de cacau, que foi acompanhado por espuma de chocolate branco, sorbet de framboesa e pimentão doce.
Adorei o contraste a três entre o calor do pimentão doce, a indulgência do chocolate e a acidez do sorbet de framboesa. A estrela desta sobremesa é o pimentão doce, dá a esta criação gosto, corpo e cor. Para a harmonização o escanção Luís Marinho escolheu um Quinta do Portal Porto Late Bottled Vintage 2009. Rico e estruturado, concentrado em taninos e repleto de fruta (preta e vermelha) bastante madura, equilibrou o desiquilibrio (brilhante) da sobremesa.
E já que estou a falar do Luís, ele é um dos motivos porque vou sempre com bastante alegria ao Astória, põe a dançar comida e vinhos ao mesmo ritmo, é sem dúvidas dos meus escanções favoritos. Para a outra sobremesa, um cheesecake de tangerina, gelatina de citrinos e Grand Marnier, espirais de chocolate e sorvete de ruibarbo, o Luís arriscou (mais uma vez) e escolheu uma bebida "caseira", Cointreau (um licor parecido com o“Triple Sec”), licor de laranja e sumo de limão, bem fresco. Parece uma mistura de laranjas doces e laranjas amargas, perfeitamente balanceadas, é rico e macio, picante e refrescante, amargo e doce. Desiquilibrou o equilibrio da sobremesa e acompanhou muito subtilmente a laranja e conhaque do Grand Marnier, o sabor forte e acre do sorvete de ruibarbo e a frescura do cheesecake de tangerina e gelatina de citrinos. Brilhante harmonização Luís, parabéns!!!
É daqueles pratos que se tem de provar tudo ao mesmo tempo, e tudo ao mesmo tempo, é um hino à fusão de sabores e riqueza de aromas.
Eu preferi o fondant, a minha esposa, preferiu o cheesecake. Acho que o primeiro tem tudo o que uma sobremesa de contrastes tem de ter, o segundo é mais uma fusão harmoniosa de sabores. Provem e desempatem isto :-P
Enquanto discutiamos qual seria a melhor sobremesa, fomos degustando uns deliciosos macarons que ladearam o café. Como não chegávamos a um consenso sobre qual tinha sido a melhor sobremesa, lancei outro tema,qual o melhor conceito para o Astória, o anterior ou o actual?
Aí já estávamos de acordo, acho que até a Bia concordou connosco (já lá vão uns meses, mas este foi o primeiro restaurante em que esteve, após ter nascido, numa noite fria de inverno). Ainda bem que o chefe Jorge Sousa, depois de experiências no L´Atelier de Joel Robuchon, em Paris, e o Chateau de Reilly, em Reilly (França) hoje está a espalhar a sua magia pelo Astória. Só alguém com a "bagagem de cozinheiro" como a dele poderia arriscar um corte tão grande, tão vincado e tão "sem medo" com o passado. É quase como se a sua presença se fizesse notar na sala, um manto protector do sabor, da qualidade, da tradição e potenciador da conversa amiga.
Para quem tem medo, e a nada se arrisca, tudo é ousado e perigoso. Na cozinha, tal e qual como acontece nas relações humanas, é o medo que castra nossos abraços e esteriliza os nossos afectos, e nos coloca sempre do lado de cá do muro. Ainda bem que este chefe não tem medo :-P
Na aula que vos falei no inicio, o professor Fernando Teixeira de Andrade, referia, aliás, mais que referia, avisava, que esse medo que se enraíza no coração do homem impede-o de ver o mundo que se descortina para além do muro, como se o novo fosse sempre uma cilada, e o desconhecido tivesse sempre uma armadilha a ameaçar nossa ilusão de segurança e certeza.
Por isso é que vos digo sem medo: Onde está o romance? Onde está o show? Onde está o teatro? Onde é que a comida é "apenas" comida? Onde se tenta regressar à era de ouro da gastronomia? Onde é que aquilo que se partilha é muito mais que a comida? No Astória pois claro :-p
A todo o pessoal do Astória com quem tive o prazer e a oportunidade de conversar, ao chefe Jorge Sousa, ao Luís Marinho e também à Andreia Martins que me convidou, que encontrem coisas bonitas do lado de lá do muro, pois bem o merecem.