Quinta das Carvalhas | Pensar uma flor
"Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, gosto dela porque ela não sente nada, gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, e acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido." Fernando Pessoa
O vinho não é apenas uma bebida para desfrutar com queijo, chocolates ou gastronomia regional. É um modo de vida, também no Douro. E é simplesmente impossível andarmos por aqueles lados sem visitarmos uma das Quintas produtoras de vinho. E foi isso mesmo que eu fiz ao "dar um salto" à Quinta das Carvalhas. Já sabia que esta Quinta, propriedade da Real Companhia Velha, possuía grande beleza e alma, com uma posição privilegiada na encosta da margem esquerda do Rio Douro no Pinhão.
Não sabia é que esta visita se iria tornar no momento mais marcante deste ano (para já :-P), no que ao vinho diz respeito. Quando entramos na WineShop é impossível evitarmos que os nossos olhos fujam para o Carvalhas Memories. A história deste vinho do Porto remonta à vindima de 1867, nesta mesma quinta. Trata-se, verdadeiramente, de uma recôndita memória viva do século XIX, preservada no tempo com meticuloso cuidado e quase religiosa devoção.
Este vinho do Porto prosseguiu o seu longo e paciente envelhecimento nas sumptuosas caves da Vila Nova de Gaia, em pipas da mais nobre madeira de carvalho, até atingir a perfeição, destacando-se uma sumptuosidade aromática e uma inesquecível dimensão de prova. Após 149 anos de estágio e no ano das comemorações dos 260 anos da Real Companhia Velha foi lançado para o mercado com um PVP de € 2.750,00. Pode ser que um dia a nossa história ainda se cruze :-P
Enquanto namorava a garrafa de Carvalhas Memories, ouvi um "olá" do Eng.º Álvaro Martinho, o agrónomo responsável pela viticultura das Quinta das Carvalhas e também pelas visitas Vintage/VIP. Chegou à Quinta das Carvalhas há quase 20 anos e trata dela como se de sua casa se tratasse. A nossa primeira conversa foi sobre o sobreiro e em como usamos o casaco que a mãe natureza lhe deu para sobreviver ao frio. A cortiça nas rolhas. Uma "simples" conversa sobre cortiça deu origem a um envolvente diálogo sobre o Douro.
Álvaro exibe com orgulho as diferenças entre o aquilo que encontrou e aquilo que agora apresenta, marca indelével pela sua paixão pela Quinta. Resultado dessa paixão, esta viagem não ia ser apenas "vínica", íamos falar da geografia da região, da história de experiência construída, da agricultura exigente, da sociologia que se engarrafa e da memória que também se bebe. Aqui uma pedra não é só uma pedra, é o xisto que transpira o sofrimento das gentes do Douro, é a rocha que desenha na estrada os limites na região, é ainda a pedra esquelética que alimenta a vinha.
Produzir aqui vinho fica 4 vezes mais caro do que em qualquer outra região do mundo. As temperaturas são inacreditavelmente altas, as encostas possuem declives inimagináveis, chegando a atingir 70º, o solo é pouco fértil e na altura em que é necessária água ... há pouca precipitação... Como é que há vinho aqui? Aliás, como é que há bom vinho aqui? O Eng.º Álvaro Martinho não quis saltar capítulos na sua história e adiou a resposta sobre o segredo do sucesso deste arbusto... Sim, a vinha não é uma árvore nem uma planta, é um arbusto com gavinhas e flor. E não se percebe o vinho, sem que primeiro percebamos coisas mais simples como a flor que esteve na sua origem.
Depois de subirmos 550 metros de uma deliciosa conversa, chegamos ao topo jóia da coroa da Real Companhia Velha. Indescritível. Tenho imensa pena que as fotos não transportem o som dos grilos e cigarras, a caricia do vento quente e sobretudo o cheiro a lavanda. Lá em cima repousam as magníficas Vinhas Velhas da Quinta das Carvalhas, de plantação pós-filoxerica, a atingir a respeitável idade de 100 anos. Deu para provar uvas Touriga Franca, Tinto Cão, Tinta Amarela, Touriga Nacional, Sousão, Tinta Francisca, Tinta Roriz... Seja qual fosse o lado que olhássemos ... encontrávamos uma casta nova na vinha velha.
E por incrível que pareça, é assim que se resolve o problema da maturação nas vinhas velhas, através da prova. O que estiver bom no palato vindima-se, o que não estiver no ponto, espera-se mais um pouco. Visitei as Carvalhas no final de Agosto, quase todas as castas estavam a atingir a maturação perfeita e com uma doçura e concentração incríveis. Isso levou-me a perguntar, mais uma vez, como é que isto era possível. Num local completamente inóspito, como é que a vinha "decide ir para ali", não seria muito mais fácil instalar-se num local com menos calor, com mais água e com maior densidade de nutrientes no solo?
"O solo ilusoriamente pobre do Douro é a nossa maior riqueza" retorquiu Álvaro. Limita a capacidade produtiva das plantas, mas permite a sua longevidade. É quase como se as vinhas fossem fazer uma caminhada todas as noites, mantendo uma dieta rigorosa. Os arbustos, as vinhas, as castas e as pessoas não são assim tão diferentes. Os excessos levam a problemas, uma vida regrada promove vitalidade.
A descida com o vidro do carro aberto e com as portas a bater na lavanda que delimitava a estrada, originou um vento carregado de aromas arrebatador. Enquanto, de olhos fechados, ouvia e cheirava aquele vento o Eng.º sorriu e disse: "Aposto que com isto jamais esquecerá a sua visita à Quinta...". E estava completamente certo, só para ouvir passar aquele vento, valeu a pena ter nascido.
Depois era chegada a hora da prova de alguns néctares da Quinta das Carvalhas, numa renovada sala de provas carregada de história, bom gosto e com vista para o Pinhão, onde as provas passam a ganhar outra sumptuosidade.
O programa foi este: Quinta das Carvalhas Branco 2015, Quinta das Carvalhas Tinta Francisca 2013, Quinta das Carvalhas Touriga Nacional 2014, Quinta das Carvalhas Vinhas Velhas 2014 e Quinta das Carvalhas Royal Oporto Colheita 1980.
O branco é muito cristalino, refinado e seco, carregado de baunilha, tosta, maçã, pêra, ameixa, frutos exóticos e uma acidez cítrica. Os seis meses em madeira deram-lhe anis e erva doce. O final é muito cremoso, bonito, persistente e saboroso.
Depois de 12 meses em madeira, o Tinta Francisca é um vinho com personalidade, elegante e fino. Exibe um perfume intenso e fresco, onde se destacam os frutos do bosque, romã, mato e notas vegetais que criam uma complexidade notável.
O palato é intenso, sumarento e com muita presença, sem que seja prejudicada a elegância. Termina longo, fresco, suave e com muita classe. A anunciar o Touriga Nacional apareceu o comboio histórico do Douro, na janela da sala de provas :-P
Muito denso, este vinho é um hino ao envelhecimento em madeira. É seco, fresco, muito firme e intenso, com sabores de chocolate preto, bergamota, amoras e violeta. A estrutura deste vinho absorve em grande medida os aromas primários, precisa de tempo para se equilibrar. Tem tudo para ser enorme no futuro.
Depois meus amigos, um pedaço de história com 90 anos, fermentado em lagares de granito. Com 42 tipos de uva, o Vinhas Velhas é um vinho rico e poderoso. Emana fruta preta bastante madura, baunilha, grão de café torrado, tosta e especiarias.
A cor é densa, quase opaca conduzindo a uma boca voluptuosa com taninos irrepreensíveis. Muito complexo, equilibrado e bastante rico. É um vinho camaleónico, vai mudando ao longo da prova. No último nariz senti ... lavanda, um copo de vinho encerra muito mais que o liquido, nele estão também aprisionadas memórias de quem o prova, e talvez por isso a lavanda passou a fazer parte desse bouquet...
O último vinho iria ser o Carvalhas Royal Oporto Colheita 1980. Apesar de ainda manter uma cor âmbar escurecida apresenta já algumas rugas em forma de tonalidade esverdeada. É muito intenso, com mel, caramelo, lima, noz, café, figos secos, cerejas e pimenta preta. Surgem ainda notas mais sui generis como o iodo e o verniz que lhe dão uma complexidade muito interessante.
A acidez de nível intermédio é completada pela untuosidade e adstringência. Um colheita diferente, em que diferente significa equilíbrio, harmonia e originalidade. Apesar deste ser um vinho extraordinário, o meu coração ainda estava com o Vinhas Velhas e com o que tinha vivido 550 metros acima.
Fernando Pessoa disse através de Caeiro que para conhecermos uma flor é necessário pensar com os olhos e com os ouvidos, com as mãos e com os pés, com o nariz e com a boca. Temos de vê-la, cheirá-la. Para que quando lhe comamos o seu fruto, nos saiba ao seu sentido.
Acho que agora conheço a Quinta das Carvalhas e os seus vinhos. Iram-me saber sempre a lavanda, não só no palato, mas no vento que me percorre a alma :-P
Esta foi uma viagem no tempo e nas palavras de Álvaro Martinho, por um Douro mais agarrado à terra, explicado desde a raiz à extremidade da videira, com as castas como protagonistas. Obrigado Álvaro por este memorável final de tarde. Foi tão intenso e rico que muitas outras coisas ficaram por contar...
VINTAGE TOUR
Datas: Mediante marcação.
Horário: A partir das 10h00.
Preço (com IVA): €75,00 (adultos)*| €5,00 (crianças 4-11 anos) | grátis (crianças até 3 anos).
*vale cada cêntimo :-P