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No meu Palato

No meu Palato

Restaurante Ferrugem | O pudim de Vincent van Gogh

"Eu não quero que meu restaurante seja um lugar onde as pessoas se sentam e comem.  As pessoas comem porque estão com fome. Eu quero fazer comida que faça as pessoas pararem de comer. Eu quero que as pessoas se sentem naquela mesa e fiquem doentes com saudade." Adam Jones in Burnt

Restaurante Ferrugem

 Um restaurante vazio é sempre um restaurante vazio.  Não importa o quão bem passadas estejam as toalhas de mesa, o requinte da decoração, o conforto do local ou o ornamentado das suas louças e talheres. Se estiver vazio, alguma coisa vai mal. Devo admitir que sempre segui essa presunção, quando seleccionava um restaurante com vista à sua inclusão numa critica aqui no blogue. O Ferrugem de Renato Cunha veio fazer cair esse meu preconceito, porque ali nada vai mal. Muito pelo contrário. Espero que no fim, percebam o porquê dessa minha mudança de paradigma. 

Restaurante Ferrugem

 No almoço de um dia em que celebrávamos a implementação da república portuguesa a casa esteve cheia, ao jantar "abriu apenas" para a nossa visita. Estavam à nossa espera o Renato, o amicíssimo chefe de sala Abílio Silva e uma equipa de 4 funcionários de cozinha (constituída na íntegra por ex-alunos das escolas profissionais e do chefe Renato). Depois de uma pequena conversa tivemos como prelúdio manteiga de ovas de polvo seco (tão ricas que quase nos transportavam para os tradicionais enchidos) e de ovas de sardinha (muito frescas e carregadas de mar) servidas num típico mosaico, acompanhadas por pão fresco e feito no restaurante. 

Restaurante FerrugemComo primeiro momento foi servido um iogurte de carabineiro com cabeça do carabineiro de Sagres, pedaços do mesmo, coentros, oregãos e lima. Cada colherada provoca uma explosão de sabores que punha as papilas gustativas aos saltos. Se alguma estivesse a dormir ... acordaria com tamanho frenesim. É uma criação encantadora, com sabores e aromas frescos, revelando-se a acidez contida da lima uma magistral combinação para o carabineiro.

Restaurante Ferrugem

Muito longo, denso, concentrado, voluptuoso e carnudo. Mesmo depois de beber o vinho,  o carabineiro continuava no palato. E por falar em vinho, iniciamos a degustação com a delicadeza, mineralidade e elegância do Soalheiro Bruto Rosé 2013. Era no entanto impossível ombrear com aquele prato. O vinho elevou-o, e era isso, apenas isso que se pedia ao Soalheiro.

Restaurante Ferrugem

 O restaurante encontra-se bem alicerçado num espaço com conforto aconchegante, requinte mas sem grandes exageros, bom gosto e tranquilidade, muita tranquilidade. Provoca aquela sensação de paragem do tempo, onde tudo abranda, acalma e ganha sentido, ou melhor, sentidos.

Restaurante Ferrugem

 E por falar em conforto, um bom exemplo do mesmo, em forma de snack, é o gelado de outono, com polvo panado, maionese de alho, areia de cebola (cebola desidratada) e camarão da costa crocante. O polvo envolve-se com a maionese de alho de uma maneira espectacular enquanto que o camarão da costa se assume quase como se fosse uma redução de marisco estaladiça. Um jogo de texturas e sabores muito engraçado e descontraído.

Restaurante Ferrugem

 O caldo verde e a broa de milho tostada com azeite foi acompanhado por um Vinha da Bouça Alvarinho 2015. O aroma a enchidos fazia a ponte entre o caldo e a broa. Cada colher do caldo carregava todo o sabor do típico caldo português, desde a couve até à batata, passando pelo chouriço. Ao fecharmos os olhos não imaginamos que temos à frente uma versão gourmet do caldo verde. Incrível e intenso, o aroma que emanava daquele copo parecia saído de uma panela com o caldo a ser agitado enquanto era preparado. 

Restaurante Ferrugem

 A intensidade do caldo verde implorou pela frescura e mineralidade do Vinha da Bouça, este Alvarinho deu-lhe ainda bom volume de boca e fruta com boa pujança aromática. É um vinho que engana no nariz, demasiado discreto, mas cresce imenso na boca, ganhando complexidade, harmonia e profundidade. Uma excelente harmonização, que não era nada óbvia. 

Restaurante Ferrugem

A amena cavaqueira com o Renato continuou acerca de cultura, território e pessoas, e em como a gastronomia pode unir num prato os fragmentos que retratam a identidade histórica da tradição portuguesa. Para além de cozinheiro é também enófilo e isso nota-se bastante, quer na conversa, quer na harmonização entre vinhos e gastronomia que promove no Ferrugem. Às duas por três, estávamos na cozinha, enquanto preparava  atum rabilho com jus de cebola, cebolinha, raspas de butarga e vinagre de mel

Restaurante Ferrugem

Um prato de contrastes que se equilibram. A doçura e acidez do jus, da cebolinha e do vinagre equilibram a gordura inacreditavelmente deliciosa do atum. A butarga "tempera" o prato com fumo e sal de uma maneira muito delicada. É com criações como esta que deixamos de comer e passamos a falar com a comida. Sei que já falei dela mas a gordura deste atum é qualquer coisa de extraordinária, quase que parecia que tinha azeite aveludado e enriquecido  por aromas marinhos. Essa gordura estava protegida por uma camada crocante que aprisionava no seu interior mais uma explosão de sabores. O atum que deu origem a este prato deveria custar por volta de 3000 euros. Para fazer meio litro de jus de cebola são necessários mais de 20 kg de cebola e várias horas de confecção. É preciso dizer mais alguma coisa relativamente à exigência do Renato?

Restaurante Ferrugem

 O Bacalhau chegou  com todos. Creme de grão de bico , pasta de azeitonas, açafroa dos Açores e beterraba em pickles, rebentos de ervilha, ovo de codorniz e carpaccio de bacalhau muito bem cortado em pequenas lascas. Uma salada fria, rústica no palato e elegante quando pintada no prato. Por incrível que pareça, consegue transmitir a frio, sabores que normalmente nos chegam a quente. Com a disposição dos diferentes elementos no prato cria uma certa noção de movimento. Mais uma vez a intensidade e densidade de fragrâncias é incrivelmente rica.

Restaurante Ferrugem

A riqueza continuou com um peixe-galo com à Brás de espargos, coentros e fígado de tamboril. O à Brás parece um risotto sem arroz, muito untuoso e fresco. A mesma untuosidade é transportada pelo fígado de tamboril para o peixe (cozinhado no ponto), realçando ainda o seu sabor a mar. Provado em conjunto é um prato muito dinâmico que provoca uma roda viva de sabores. Inquietante...

Antes da carne foi servido um corta sabores de amêndoa amarga e limão, refrescante e divertido.

Restaurante Ferrugem

O prato de carne foi uma bela de uma posta de boi maturado (21 dias), puré de cenoura assada, batatinha, espargo, boletos, courgette e pickle de couve flor. A carne com uma textura incrivel estava muito saborosa, harmoniosa e rica. Provado o conjunto tinha como consequência a activação de todo o palato, tal como tinha acontecido com o carabineiro, mas de uma maneira menos explosiva e mais elegante. É um prato vintage para ser apreciado devagar, com atenção e dialogando com um vinho com boa madeira, frescura  e fruta madura como o Julian Reynolds Reserva 2011. 

Restaurante Ferrugem

  Como sobremesa a proposta foi um tributo ao abade de Priscos v. 4.0 com gelado da mousse do famoso pudim servido num refrescante e excêntrico copo de gelo. O pudim é triturado e mais tarde passa pelo sifão. Em gelado e servido naquele copo resolve um dos problemas (se é que o pudim abade de Priscos tem algum) desta sobremesa, um ligeiro excesso de doçura. Fica mais fresco, mais apurado, mais fino, mais requintado ... mais Ferrugem. Convém realçar que esta finesse adicional não retira em nada a concentração de sabor do pudim. É guloso, fresco e respeita a tradição. 

Restaurante Ferrugem

 Cresceu ainda através da harmonização com o  mel, alperce, frutos secos e excelente acidez do Moscatel Roxo de Setúbal colecção privada de Domingos Soares Franco 1997. Este, para mim, foi o melhor prato da noite e que exemplifica a cozinha do Renato. Intensa, saborosa, complexa, com personalidade, profundidade, alcance e um toque de romantismo. Um prato que para além de pudim leva inspiração, dedicação e expressão.  Ainda a respeito da casa vazia, Marco Pierre White defende que um chefe que ganhe duas ou três estrelas Michelin tem de que estar na cozinha todas as noites. Isso é ser responsável perante a honra com que se foi agraciado. O Renato esteve no restaurante numa noite fria de um dia feriado, com a sua equipa, exactamente por uma questão de honra.

Restaurante Ferrugem

Todos os pratos do chefe (e especialmente este pudim), têm mais um ingrediente, uma ligeira turbulência no palato e também na estética. É como se as suas criações praticamente “falassem” sobre o que estava a sentir e pensar aquando da sua confecção. Quase como se fosse um artista pós-impressionista ou pré-expressionista, quase como se fosse um pintor, quase como se fosse Vincent van Gogh. E por falar em van Gogh, uma das suas obras mais conhecidas é a "Noite Estrelada". Espero sinceramente que essa coincidência seja um bom prenúncio ;-)

 

É o segundo restaurante que visitei este ano (a par do Porta de André Silva) que acho que merece a estreia na lista dos restaurantes premiados com uma estrela Michelin. Muito por culpa de ter saído do Ferrugem atordoado com essa turbulência degustativa e doente de saudade :-P

Parabéns e obrigado Renato.