Douro Royal Valley e Douro Palace | Uma herança a partilhar
"Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és. O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo preparado em Portugal, em França, ou Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos do que o estudo das suas literaturas." Eça de Queirós
Eça de Queirós pegou num pensamento de Jean Antherlme Brillat-Savarin e completou-o, relacionando parte do que somos com aquilo que comemos. Cientificamente é mesmo assim, aquilo que ingerimos serve de material de construção para o que existe no nosso corpo. Todas as nossas células foram criadas a partir dos alimentos que comemos, da água que bebemos e do ar que respiramos. Além de nos nutrir, a comida também afecta a qualidade das nossas vidas, a nossa aparência, o humor com que acordamos, o peso que lamentamos, a energia ou a falta dela, a maneira como envelhecemos e até mesmo a nossa saúde e bem-estar.
Mas não foi pela ciência que peguei nesta frase, escolhi-a para a esmiuçar de uma perspectiva mais geral, a de sermos aquilo que fazemos repetidamente. Já dizia Will Durant que dessa forma, excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito. Aquilo que somos também tem muito a ver com os ideais em que acreditamos, os sonhos que alimentamos e as esperanças que avivamos.
Somos também aquilo que vamos conhecendo, vamos visitando, vamos descobrindo. Eu sou um pouco mais, um pouco melhor, um pouco diferente depois de ter visitado dois hotéis irmãos, o Douro Royal Valley e o Douro Palace. Um é de 5 estrelas, outro de 4, ambos estão situados em Baião, e ambos têm uma herança a partilhar. Iniciamos esta viagem no Douro Palace, uns dias antes do Natal...
Oferece 60 quartos distribuídos por 4 pisos e 3 tipologias diferentes, cuidadosamente mobilados e pensados para um nível de conforto superior, proporcionam vistas panorâmicas únicas sobre a região do Douro. O quarto com Vista Rio, aquele em que ficamos, é acolhedor, moderno e elegante. Bebe da magia das ancestrais vinhas da região do Douro, classificadas como Património Mundial da Humanidade, que de tempo em tempo, nos batem à janela.
Vestido de Natal tem um encanto especial, realçando a traça original e histórica, permitindo que cada hóspede tenha uma relação próxima com a natureza, espelhada nas águas serenas do rio Douro. Nos dias soalheiros de Primavera e Verão, podemos aproveitar ainda para relaxar na piscina exterior, com vistas arrebatadoramente únicas para os socalcos do Douro (aquando da nossa visita a piscina e espaços adjacentes tiverem uma visita não anunciada de javalis, quem disse que estes luxos eram apenas para humanos? :-P).
Nos restantes meses de Outono e Inverno é possível mergulhar no acolhedor SPA onde os sentidos são despertados, estimulados e refinados. Se escutarmos com atenção, o rio parece querer-nos sussurrar segredos ancestrais, basta que nos deixemos tocar pelo vento mágico com que ele nos sopra. A nossa Bia depois de gatinhar por todo o Hotel, descansou um pouco à beira do pinheiro de Natal, contemplando-o e parecendo querer antever o que lhe ia calhar em sorte nesta quadra :-P
Ao jantar, fomos conhecer o restaurante Palato D'Ouro do Douro Royal Valley. Com este nome as coisas só poderiam correm bem ;-P Fica a uma curta distância do Douro Palace, quinze minutos de uma serena viagem à beira rio. Tem como objectivo aliar os produtos regionais, de origem controlada e protegida, à modernidade da cozinha dos nossos dias. Com vista para o Douro, neste restaurante, voltamos a sentir a mesma presença mística do rio, norteada pelos ricos paladares durienses.
Ao seu leme está agora a alma abnegada do Chefe Julien Cardoso, o ex braço direito de Ljubomir Stanisic, o famoso apresentador do programa "Pesadelo na Cozinha". O jantar iniciou-se com espuma de batata trufada e ovo escalfado. Requinte, complexidade, leveza e originalidade. Escrevi no meu bloco de notas que poderia não haver mais nada "bom" nessa noite, esta espuma já tinha valido a viagem.
As laminas de noz complementam uma estrutura esponjosa, a pimenta preta acrescenta orientalidade e o ovo escalfado é o elemento que põe todos os ingredientes a "falar a mesma língua", quase como um pano de fundo, presente, rico, com classe, mas discreto.
Este prato carrega aromas pincelados com uma finesse requintada, um verdadeiro brinde à vida e aos bons momentos que ela nos proporciona. Aromas esses que são realçados pela acidez, mineralidade, ananás e melão do Claustru's Branco 2016.
Ainda com o pensamento na espuma, surgiu na mesa um tortellini de camarão, camarão tigre envolto em toucinho, robalo, puré de aipo, salada de couve flor e romanesco. Uma criação muito fresca, ligeiramente salgada fazendo realçar os sabores marítimos, que ganha um pouco de estrutura e corpo com a riqueza, volúpia e intensidade do tortellini de camarão. O robalo e o puré de aipo ligeiramente adocicados criam um contraste muito engraçado com os restantes ingredientes.
Inicialmente estava previsto que o vinho que acompanhou a espuma de batata trufada, acompanharia também o prato de peixe, mas o Chefe sugeriu outro, e em boa hora o fez. Anselmo Mendes Muros Antigos Loureiro 2016. A acidez do vinho combinou na perfeição com a frescura do prato, a lima realçou a gula do peixe, as notas florais perfumaram o camarão (que já era saborosíssimo) e o carácter seco contracenou na perfeição com a doçura de puré de aipo. Uma harmonização perfeita, que vai fazer parte da nova carta do restaurante.
Enquanto a Bia brincava às escondidas com os comensais que se encontravam no restaurante, entrava em cena a barriga de leitão (com salmoura de 6 horas) a baixa temperatura (cozedura 24 horas) , puré de cherovia, salada campestre, cogumelos, espargos e chalota frita. Este foi o melhor leitão que provei até hoje, a ligeira fritura criou uma camada superficial bastante crocante, enquanto que o interior aprisionava um suco delicioso carregado de gordura e luxúria. O puré acrescentou elegância e intensidade aromática, os cogumelos densidade (parecia que tinham sido reduzidos) e a salada complexidade.
O ligeiro corte (quase imperceptível) no leitão é uma marca indelével da exigência do Chefe Julien Cardoso, fez-lo para garantir que o leitão transpirava, sinal de uma confecção perfeita. Exigia um vinho com corpo, equilibrado e intenso. O Busto Grande Escolha Tinto Touriga Nacional 2010 trouxe ainda com ele cerejas, amoras, morangos maduros, esteva, chocolate preto e pimenta branca.
Como sobremesa tivemos um suave lemon curd, merengue de goiaba e sorbet de limoncello. De aparência simples e singela, no palato é muito fidalga e excêntrica. A goiaba carregava uma espécie de aroma agridoce a salada de frutas (morango, pera e manga), o merrengue acrescentava textura com um estaladiço-crocante adocicado muito interessante e o sorbet de limoncello faz a ligação perfeita com o Porto. Um Quinta do Portal Tawny 20 anos.
Essa ligação é também potenciada pelo crumble de amêndoa, que puxa pelos frutos secos do Tawny, surgem mais tarde o café, a baunilha, o caramelo e a laranja caramelizada. A excelente acidez do vinho faz o palato voltar a sentir a frescura da goiaba, cujo carácter agridoce reenvia o foco gustativo para a doçura das frutas secas do vinho. Uma harmonização muito elegante, dinâmica e eficaz. O jantar terminou assim, da mesma forma que começou, com suavidade, requinte e leveza. Para mim passaram a ser sinónimo de Chefe Julien Cardoso. Esta preocupação com a excelência vai levar-lo bem alto...
Depois desta lição de sabores e saberes tradicionais dada pelo Chefe Julien Cardoso (parabéns, sei que os nossos caminhos se hão-de cruzar de novo ;-P), era chegada a hora de regressar ao Douro Palace Hotel Resort & Spa para descansar, com corpo e alma em êxtase.
O dia amanheceu horas mais tarde, solarengo e alegre, mesmo a convidar para um pequeno-almoço com bacon, ovos mexidos e espumante duriense, e mandam as regras da boa educação, não recusar convites destes :-)
O plano inicial era visitarmos apenas Douro Palace Hotel Resort & Spa, mais tarde surgiu o convite para conhecermos o Palato D'Ouro do Douro Royal Valley Hotel & Spa. Mesmo quase de saída, ainda houve oportunidade para apreciar o restaurante do Douro Palace, o Eça. Uma cozinha assente em alicerces tradicionais mas pintada com apontamentos modernos e intimistas...
Este restaurante conta também a história do Chefe Tony Martins, do conhecimento que foi adquirindo, dos aromas que lhe ficaram da infância e do que a comida lhe transmite. Na sala é acompanhado pelo atendimento exemplar e amigo do Sérgio Ribeiro. De estilo contemporâneo, o Restaurante Eça tem capacidade para 80 pessoas e disponibiliza uma carta em sintonia com o excepcional cenário das paisagens do Douro.
A enorme variedade de produtos ímpares da região, torna possível harmonizar um conjunto de iguarias que nos levam a uma experiência gastronómica única. O almoço em forma de repasto iniciou com um amuse bouche de arroz de bacalhau, camarão e microverdes.
Proporciona conforto e tranquilidade e teve o condão de estimular/despertar o palato, com tons de acidez, doçura e texturas complementares. O camarão estava exemplar, rico, voluptuoso e fresco. Antecedeu a sopa de peixe, um prato simbólico que invoca e carrega a proximidade do Chefe com o mar. Quando a sopa é colocada no prato parece que entramos numa lota, somos imediatamente invadidos por aromas a peixe. Os oregãos verdes e o tomate cherry dão-lhe o toque fresco que fazem enobrecer a sopa.
É exuberante, quer no sabor, quer na textura. A ligeira acidez, pouco tempo de cozedura e especiarias fazem com que não nos cansemos dela. No caldo nadam mariscos, peixes e bivalves à procura do tomate, ervas e especiarias. É harmoniosa e sabe ao mar e também sabe à terra. Ganhou largura aromática com os citrinos, maracujá e mineralidade do Quinta da Pacheca Branco 2016.
Depois um bacalhau "da espinha até à pele" :-P Lombo, língua, samos e pele de bacalhau, ovo a baixa temperatura, batata a três tempos, cenoura baby, pak-choi, couve-flor e cebola caramelizada. A batata depois de cozida, frita, congelada e de voltar a ser frita parecia um crocante de puré, os legumes promoviam o equilíbrio, complexidade e riqueza de sabores. O bacalhau carnudo e ligeiramente salgado ganhava irreverencia na companhia da cebola caramelizada.
Algo mineral e muito concentrado, delicado e carregado de aromas como limão, flor de laranjeira e alguma pólvora, o Covela Edição Nacional Avesso 2015 realça a frescura do bacalhau fazendo com que o ligeiro exagero untuoso ganhe pomposidade. Acompanhou ainda um rabo de boi, cozinhado lentamente (como a avó do chefe o fazia em panelas de ferro) e bastante rico, intenso e sublimemente condimentado. Tradicional mas com pitadas evidentes de irreverencia e modernidade. Como a minha princesa mais velha ainda estava repleta dos sabores do jantar anterior, optou por um prato vegetariano, arroz caldoso com zetas, cogumelos e queijo da ilha. Disse que parecia um arroz dos meus, melhor elogio que este não pode haver :-P
Sendo este Chefe também da zona da Bairrada, tal como no Palato D'Ouro o prato de carne iria ser ... leitão :P Este com folhado de cabidela de leitão, laranja em calda e leitão à Bairrada. Adorei a cabidela, toda ela leitão mas sem o exagero da untuosidade que por vezes carrega. De resto, apesar de diferente, partilha dos mesmos louvores principais do anterior, textura crocante com carne sumarenta e saborosa. A esteva, violetas, fruta vermelha muito madura, algum cacau e sobretudo a boa acidez do Quinta de la Rosa Tinto 2015 equilibraram a bomba que era o leitão.
Como sobremesa do Chefe pasteleiro Tiago Vidreiro houve um queijo de castanha, crocante de polenta, terrina de maçã, baunilha e hortelã. Apenas com produtos sazonais é muito rica, equilibrada e algo arriscada com a introdução da hortelã. Teve o dom de requintar a castanha que ganhou explosões de sabor quando pressionávamos o crocante de polenta, quase ao velho estilo das petazetas :-P A baunilha do prato assentou que nem uma luva na baunilha do Quinta do Portal Tawny 10 anos. Leve, fresco e ainda com notas bem evidentes de frutas maduras foi o parceiro de carácter que a sobremesa exigia. Gostei muito de conhecer a história de vida do Chefe Tony Martins através dos seus pratos.
Pois não se esqueçam, digam-me o que comem, dir-vos-ei o que são. O carácter de uma pessoa pode ser deduzido simplesmente pela maneira como a mesma encara a comida, mas não só... Tem muito que ver com os ideais, os sonhos e as esperanças que norteamos a nossa vida e aquilo que nos rodeia. Anne Frank imortalizou um pensamento no seu diário, que é difícil em tempos como estes, que os ideais, os sonhos e as esperanças permanecerem dentro de nós, não sendo esmagados pela dura realidade.
E que é um milagre não abandonarmos todos esses ideais, por parecerem tão absurdos e impraticáveis. No entanto, devemos acreditar, apesar de tudo, que isso não só é possível como também devemos receber essa herança, honrar-la, acrescentar-lhe alguma coisa, para que um dia, mais tarde, a possamos depositar nas mãos dos nossos filhos.
Estes dois hotéis partilham isso mesmo, mais que uma atmosfera de fraternidade, partilham uma herança, de bem-receber, cumplicidade e carácter, para além de uma simples estadia, pretendem proporcionar uma experiência única e memorável. Assim foi a nossa...
Como esta é a primeira publicação do ano, desejo-vos um excelente 2018, que ele vos sorria, também no palato!!!