Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

No meu Palato

No meu Palato

Restaurante de Tormes | Uma bela flor com raízes diversas

"E pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas! ... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: «óptimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!»" Eça de Queirós, A Cidade e as Serras

Restaurante de Tormes

 Hoje vou falar-vos de um sitio que não existe, mas do qual é difícil que nos esqueçamos: Tormes. O nome do lugarejo foi criado por Eça de Queirós e imortalizado em 1901 no seu romance A Cidade e as Serras. Com o tempo, a outrora Quinta de Vila Nova assumiu o baptismo queirosiano, fazendo com que a ficção se tornasse real. Eça conheceu Vila Nova aquando da sua visita para receber a quinta como herança da família da sua mulher.

Restaurante de Tormes

Foi assim que toda a história começou, na sua viagem de França para Portugal. A quinta e a casa de Tormes, serviram de inspiração para o romance. Nesta obra, Eça transforma-se em Jacinto, que abandona as mordomias da capital francesa a pretexto de transladar os restos mortais dos seus avós. Antes da jornada franco-portuguesa, Eça na realidade e Jacinto na ficção, escrevem aos caseiros a avisarem-nos da sua chegada e para que os mesmos preparassem a casa com o comodismo, o conforto e o requinte que alguém habituado à alta roda europeia necessitava. Só que ... as cartas perderam-se pelo caminho. 

Restaurante de Tormes

 Quando Eça chega a Vila Nova (e Jacinto a Tormes), depois de uma cansativa viagem, encontram uma casa que servia de abrigo para os animais, de arrecadação para os produtos agrícolas e sem o mínimo de condições de habitabilidade. Eça chega com fome. Surpresos e alarmados, os caseiros oferecem-lhe o que têm: caldo de galinha com miúdos, frango alourado e arroz de favas. Esta passou a ser a ementa queirosiana, ou de Jacinto. 

Restaurante de Tormes

Essa quinta  alberga nos dias de hoje a Fundação Eça de Queiroz e o Restaurante de Tormes, ambos tributos à vida e obra do grande escritor português. Aquando da nossa visita ao restaurante fomos recebidos por um conjunto de entradas regionais, muito na onda da comida de conforto. Uns bolinhos de bacalhau saborosos, suculentos por dentro e crocantes por fora; peixes da horta com um toque oriental proveniente das especiarias; uns voluptuosos cogumelos com presunto e uma omelete com duas texturas, uma quase de ovos mexidos na parte inferior e outra estaladiça na parte superior com um ligeiro fumo que lhe assentava muito bem.  

Restaurante de Tormes

No entanto, o meu petisco favorito foi o porco em vinha de alhos, muito saboroso, rico, intenso. Pode parecer estranho referir isto num restaurante de comida tradicional, mas havia qualquer coisa de complexo naquela vinha de alhos.  Deixa de parecer estranho quando conhecemos o chefe, António Queiróz Pinto, que já trabalhou com Vítor Matos (Antiqvvm) e André Silva (Porta) e foi vencedor do Jovem Talento da Gastronomia 2015 e da 10ª Edição da Revolta do Bacalhau (2014). 

Restaurante de Tormes

O multipremiado António Queiróz Pinto serviu-nos um dos melhores frangos alourados que comi até hoje, crocante, com perfume do loureiro, guloso e intenso. Aprisionou no interior sucos que combinavam na perfeição com o arroz de favas. O arroz também é digno de destaque, cozinhado com enchidos, parecia um risotto, com alma duriense. O sorriso da Bia mostra que também ela adorou a refeição ;)  Nos vinhos, à descrição de Eça, "caindo do alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo", acrescento a mineralidade, limão e flor de laranjeira do Tormes Avesso 2016 e os frutos vermelhos, secura e cremosidade do Mandarim Rosé 2016

Restaurante de Tormes

Na sobremesa ... uma surpresa. Creme queimado, mas sem leite.  Uma combinação perfeita entre o açúcar queimado, leve e estaladiço, e um delicioso creme suavemente aromatizado. Fez-me recordar o creme de um pastel de Belém, mas com muito mais alma e sentimento de pertença. A ausência do leite faz com que não nos cansemos dele. Combinou na perfeição com a fruta preta silvestre, ligeira adstringência e elegância do Quinta das Tecedeiras LBV 2011.

Restaurante de Tormes

No final ainda houve tempo para conhecer o museu dedicado a Eça de Queiroz, que procura perpetuar a memória do escritor e organizar, manter e, sempre que possível ampliar a sua biblioteca, arquivo e espólio. Ali ainda vive a alma de Eça, a secretária onde escrevia de pé, a mesa em que experimentou o incrível arroz de favas, o emblemático monóculo e os refinados sofás trazidos de Paris.  Esta casa é mais um livro que Eça nos deixou, e nas suas páginas estão guardados capítulos de uma terra, de uma vida, de um amor.

Restaurante de TormesO amor, (...), como tu sabes é feito de muitos sentimentos diferentes. Alguém escreveu, creio que até fui eu - que era uma bela flor com raízes diversas. Ora quando uma dessas raízes é a estima absoluta pode ele ao fim de longos anos secar pelas outras raízes mas permanecer vivo por essa.

A presença do chefe na visita à fundação, já depois de ter terminado o serviço no restaurante, é marca indelével do compromisso com essa raíz, não a deixem secar ;)

É o coração que faz o carácter e foi o amor que fez o chefe António Queiróz Pinto realizar também ele a viagem entre a cidade dos prémios e a serra das memórias. O amor pelo pai, pela gastronomia duriense, pela cozinha e não pelo estrelato.