Sabores da vida 2018 | Todas as palavras e sentimentos esdrúxulos
"Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!" Eça de Queiróz
Na semana passada estivemos presentes, mais uma vez, num exclusivo encontro enogastronómico organizado pelo portal de gastronomia e vinhos Alivetaste: o encontro de comida e vinhos Sabores da Vida 2018, que juntou o melhor da gastronomia e dos vinhos num cenário completamente arrebatador que é o jardim da Pousada do Freixo.
Esta já é a terceira edição do evento destinado à comunicação social e convidados, no qual as criações de 20 chefes foram harmonizadas com 2 vinhos de cada um dos 35 produtores de diferentes regiões, num fim de tarde bastante agradável com vista para o Douro, tendo a música da Smooth como pano de fundo.
Chefes já estrelados como Tiago Bonito, Miguel Laffan e Vítor Matos; e outros com condições para o virem a ser como Renato Cunha e Duarte Eira fizeram com que a qualidade geral da gastronomia subisse (e muito) de nível.
Os petiscos iniciaram com um crocante de gamba da costa, miso e pimentos. O sabor sabor salgado e levemente doce do miso servia como elo de ligação entre os pimentos e a gamba, numa criação muito fresca, rica e saborosa.
Acompanhamos a proposta do Miguel Laffan com as notas de sal e maresia e sabores cítricos, frutados e pedra molhada do Carole Encruzado 2015. É um vinho que ainda precisa de mais uns anos em garrafa, mas já revela uma redondeza textural (existe esta apalavra? :-P) muito atractiva, uma acidez bastante viva e um excelente volume.
Vítor Matos apresentou um terroir de Melgaço e as minhas influências com porco bísaro, alheira de Melgaço, vinho verde tinto, foie gras, trufa, pinheiro e cogumelos. Um prato complexo, equilibrado e reconfortante, como que a demonstrar, que mesmo neste género de eventos, Vítor Matos continua a um nível incrível.
A harmonização deste prato teria de ser feita com um vinho intenso e complexo. Escolhemos o Lupucinus Grande Reserva 2011. No nariz exibe frutas escuras, tabaco, cereja vermelha, amoras, violetas, baunilha, alcatrão, alcaçuz, especiarias e hortelã-pimenta. No palato demonstra boa intensidade, textura sedosa, excelente acidez, taninos muito finos e um óptimo equilíbrio. Muito provavelmente, esta foi a nossa melhor harmonização.
Entre fotos e sorrisos passamos para o próximo prato, rabo de boi, foie-gras e espuma de batata trufada pelo chefe António Vieira. A carne estava untuosa, macia, e levemente doce. Conjugada com a espuma de batata , cresceu em elegância e largura no palato.
Ganhou ainda mais expressão aromática com os mirtilos, cerejas, framboesa, frutos silvestres e tosta de madeira no nariz do Quinta da Casa Amarela km 15 Tinto 2015. Um vinho que na boca se apresenta com uma excelente frescura, intensidade e persistência.
Mostrando que por vezes o todo é be, maior que a soma de todas as partes, o chefe Renato Cunha conjugou a sua feijoada de cogumelos com feijoca branca com a costela no bafo do chefe António Carvalho.
O sabor da costela e o modo com foi confeccionada, aprisionando os sucos da carne, proporcionaram um sabor marcante. No entanto, é apenas na presença da feijoada que esta se realiza completamente. Mais uma criação à Renato Cunha, carregada de sabor, densidade, história, profundidade, mestria e memória.
O tempo na panela em ferro fundido, concentrou sabores, amaciou texturas e realçou as pontes entre os diferentes elementos da feijoada. Top ;)
O rastilho desta bomba gastronómica foi acendido pelo Discórdia Reserva 2013 e a sua fruta preta, esteva, violetas, especiarias, caixa de charuto e notas de fumo apetrolado.
No palato este vinho é intenso, voluptuoso, com taninos algo domesticados e final persistente. Fez-me querer conhecer o branco, e em boa hora o fiz.
É um vinho incrível no nariz. Muito aromático e fresco, com notas tropicais, damasco, flor de limoeiro, e esteva. Na boca revela elevada concentração, intensidade e volume.
Para o fim, guardei os três vinhos que mais me surpreenderam. Um branco e dois tintos.
Começo pelo Alvarinho Nostalgia 2015. Muito discreto mas elegante no nariz, com toranja, pêssego, madeira nobre e um toque muito elegante de fumo. A acidez equilibra a madeira de uma forma muito peculiar. Bom volume, excelente estrutura, acidez de elevada qualidade e muito equilíbrio. Acaba muito longo.
Segue-se o retrato do primeiro vinho tinto a destacar: frutos do bosque, cassis, ameixa, sous-bois, amora, esteva, rosas, pedra molhada e pimenta. Muito fresco, complexo, com taninos domesticados e final equilibrado, persistente e delicado. Esta é a impressão digital do Pormenor Tinto 2015.
No interior do Envelope 2015 (nome, garrafa e rótulo muito bem conseguidos) estavam aprisionados aromas de frutos silvestres, especiarias, morangos, amoras, bagas silvestres, violetas e, apesar da tenra idade, já alguns apontamentos de boa evolução em garrafa. No palato exibe uma frescura cativante, com uma acidez, taninos arredondados e um final de boca mineral, persistente, intenso e elegante.
Neste vinho pretendeu-se contrariar a rapidez cosmopolita e aplicar uma outra filosofia – chamaram-lhe por isso Envelope, lembrando a longa viagem da carta até chegar ao seu destino.
Saibamos então apreciar o tempo, contrariando a implementada azáfama dos tempos modernos. Este vinho acaba assim, por ser também uma excelente metáfora para o Sabores da vida 2018.
Com tempo, partilha e amizade, celebrar o que a vida tem de melhor para nos dar, através de um conjunto de palavras e sentimentos esdrúxulos, o tal amor ridículo de Fernando Pessoa, guardados num envelope. Porque é apenas com amor, com sentimentalidades e com orgulho, que estes vinhos, que esta gastronomia, que este convívio amigo podem ser pincelados. A alma, essa (a de Eça), cobriu-se de um luxo radioso de sensações ;)
Obrigado Mário e Celeste pelo convite e parabéns Mário pelo nível em que colocaste este evento.