“Há momentos assim na vida: descobre-se inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem na nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens e outras gentes. A mim me parecia, no entanto, que esta esfera se não desprendera e que eu viajava dentro dela." José Saramago

 Esta história começa com John Fladgate, um comerciante de vinho do Porto a quem foi dado o título de Barão da Roêda em 1872, como reconhecimento do trabalho na dura batalha contra a filoxera. Fladgate conhece no Porto Morgan Yeatman outro apaixonado por vinhos. Desta amizade nasce o embrião da actual empresa Taylor Fladgate & Yeatman. Fladgate dedicar-se-ia à qualidade do vinho, enquanto que Yeatman dedicaria a sua atenção ao desenvolvimento do negócio. 

Para honrar este legado a Taylor Fladgate & Yeatman baptizou o restaurante das caves Taylor's como Barão Fladgate (por isso é que o nome correcto do restaurante é Barão Fladgate e não Barão de Fladgate, mas isso são outros quinhentos ;)).

Este restaurante procura funcionar como uma pequena esfera,  que cheira a vinho e que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa e que transporta o espírito pioneiro da continuidade da tradição e paixão pelo Douro e pela vinha que Fladgate incutiu na sociedade. Oferece ainda uma experiência que vai muito além da já esperada e previsível amena conjugação entre gastronomia e vinhos. 

A nova carta, da autoria do Chefe Ricardo Cardoso, procura surpreender o nosso palato, pelos sabores e harmonias contrastantes de uma cozinha pensada com minúcia para elevar a experiência e despertar o interesse dos sentidos. Um bom exemplo desta nova filosofia foi o primeiro prato que degustamos, Novilho envolvido em tártaro de queijo da ilha, maionese de mostarda Ancienne e cebolinhas em beterraba ácida, acompanhado com ovo a baixa temperatura e tosta de alho e azeite. A clássica combinação entre novilho e o queijo pincelada com a inesperada mostarda Ancienne e a frescura contagiante da beterraba. 

Mais tarde, as Lascas de salmão, sorvete de manga, abacate, coco tostado e daikon carregaram uma textura crocante e sabor picante, muito por culpa do daikon. Uma associação certeira entre coco tostado, salmão e sorvete de manga, juntado num mesmo prato sabores tropicais e orientais, com um equilíbrio perfeito entre o doce e o salgado.  

A cozinha de fusão continuou com o Polvo crocante com molho ligeiro de caril e batata-doce roxa, couve-flor em açafrão e espuma de lima kaffir. Para além de um aroma cítrico, a espuma de lima kaffir conferiu um pano de fundo verde, fresco e adstringente ao polvo. As especiarias contribuíram para seduzir o palato e a originalidade da couve-flor para apaixonar o intelecto. ;)

Paragem seguinte: Surf & Turf Vitelão com lagosta, salada de rúcula, batata ponte nova e molho mil ilhas. Tem tudo: mar, terra, originalidade, dedicação ... e sabor, muito sabor.  Este clássico internacional  é assente em produtos locais e sazonais com a intenção de promover inesperadas conjugações e contrastes de sabores e de texturas, num equilíbrio que só fica perfeito com o corpo e complexidade do Quinta do Crasto Douro 2016. 

O molho mil ilhas, algo adocicado, com uma textura cremosa e com uma criteriosa escolha de ingredientes une certeiramente os sabores do mar aos sabores da terra.

Era chegada a hora das sobremesas, pensadas e desenhadas para harmonizar com as categorias nobres do vinho do Porto da casa, que produz alguns dos néctares mais afamados do mundo.

A primeira, Cheesecake de banana, noz pecan caramelizada, redução de vinho do Porto Tawny  10 anos e gelado de chocolate negro, é tão deliciosa quanto inesperada. A noz transporta um sabor mais adocicado e uma textura mais suave do que aquilo que seria de esperar. É mas elegante, mais fina, menos óbvia e pensada para ser o elemento aglutinador do prato.

  A caramelização fez com que desse (gastronomicamente) a mão ao intenso e algo hostil chocolate negro. Esse "mau feitio" do chocolate foi amansado pela doçura quase ternurenta  do Cheesecake de banana. Um prato rico, até no humor do prato, que vai mudando ao longo da degustação. 

Para último o melhor momento da refeição e um dos melhores do ano aqui do estaminé: Cannelloni de manga e maracujá, sorvete de ananás, suspiro de framboesas e mousse de mascarpone. É quente e refrescante ao mesmo tempo, quase como quando temos um arrepio num dia de calor. É intenso e delicado. É uma salada de fruta de smoking que ganhou complexidade ao nível da textura, apresentação, sabor e harmonia. Muito bem conseguida e extremamente prazerosa.

 Falta falar ainda da remodelação do restaurante. Os novos tons verdes e dourados, assim como o piso em madeira ficam-lhe muito bem. Tornou-se mais elegante e acolhedor, potenciando aquilo que já tinha no passado: uma arrebatadora vista sobre a cidade do Porto, com o Rio Douro, a Ponte D. Luís e o velho casario da zona ribeirinha como cenário. Enquanto a Bia tirava as suas primeiras selfies e os pais se deliciavam, lentamente, com o Cannelloni de manga harmonizado com as nozes e casca de tangerina do Taylor's 20 anos, percebi que o legado de John Fladgate em forma de uma pequena esfera continua muito bem preservado e cultivado por aqueles lados.

Nessa esfera para além do espírito pioneiro e da continuidade da tradição e paixão pelo Douro que já vos falei, existe ainda uma outra coisa, que não tem nome. Saramago diz-nos que essa coisa é aquilo que somos. E aquilo que o restaurante é, representa uma extensão da aliança de Fladgate e Yeatman à gastronomia. 

Aliança essa que para além do aroma a vinho, a vindimas, a uvas,  ao suor dos trabalhos no campo, às  feridas dos socalcos talhados à mão e à luz abençoada e nostálgica do Douro, me cheira agora também a Cannelloni de manga ;)

Parabéns ao Chefe Ricardo Cardoso pela cozinha autêntica que pratica, ao perfeccionismo que cultiva e à paixão com que executa.  Um grande obrigado ao Pedro Fernando por ter anfitrionado de forma muito amiga a nossa experiência no Barão Fladgate. 

"Não há coisa alguma que persista em todo o universo. Tudo flui e tudo apresenta uma imagem que é apenas passageira. O próprio tempo passa como um movimento contínuo, como um rio… Também os nossos corpos mudam sempre e sem descanso… Do mesmo modo, a natureza não descansa renova-se e encontra outras formas, nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados… Todos os seres têm sua origem noutros seres." Públio Ovídio Naso

 Ok, ok, sei que este não é dos títulos mais bonitos, mas no final, garanto-vos que vai fazer sentido ;) Esta história conta-se num dos mais belos e conceituados hotéis da cidade do Porto, o Hotel Infante Sagres, que desde a década de 50 do século passado está instalado num edifício histórico, construído com o objectivo de ser o primeiro hotel de luxo da cidade do Porto.

Este hotel boutique encontra-se orgulhosamente distinguido na restrita lista Small Luxury Hotels of the World, uma triagem certificada dos mais requintados, carismáticos e luxuosos hotéis no Mundo. Pelas imagens é fácil perceber o porquê de tão grande distinção.

O Hotel Infante Sagres é uma das jóias da coroa da hotelaria Portuguesa e um chamariz de personalidades famosas que ali já se hospedaram, de que são exemplo o Dalai Lama, os Reis da Noruega, a Rainha Beatriz da Holanda, Bob Dylan, Catherine Deneuve, o Príncipe Eduardo de Inglaterra, John Malkovich e os U2 (curiosamente estou a escrever este texto, no dia após a ter assistido ao concerto dos U2 em Lisboa, foi um beautiful day ;)). 

Depois de ter passado por um processo de descaracterização, em que a sua alma quase que foi reduzida a cinzas, em 2016, o Infante Sagres foi adquirido pela empresa The Fladgate Partnership (a mesma do The Yeatman e do The Vintage House). Entre Novembro de 2017 e Abril de 2018 esteve encerrado para requalificação, modernização, ampliação e (para mim o mais importante) recuperar o glamour, luxo, sofisticação, design intimista e alma vintage. 

6 meses e 7.5 milhões de euros depois o hotel renasce das "cinzas"  com uma piscina no terraço, 21 suites (10 de luxo)  e 64 quartos. Estes quartos estão decorados individualmente com obras de arte originais e detalhes requintados, que complementam a experiência. 

A suite Royal, tipologia premium do hotel e onde já ficaram hospedados vários artistas e até membros da realeza, é o expoente máximo do luxo e requinte que caracterizam o “novo velho” Infante Sagres.

 Por todas estas molduras detalhadas, majestosos vitrais, ostentosos lustres, imponentes candeeiros e o mobiliário histórico surge agora também um Vogue Café, que depois do Dubai, Moscovo e Kiev chega ao Porto. 

A carta, com assinatura do Chefe Gil Raposo, procura transmitir o conceito informal e dinâmico do espaço. Fomos recebidos pelo simpatiquíssimo José Luís e por uma refrescante Lady in Pink com framboesa, morango, vermute e espumante.

A primeira proposta gastronómica bebeu inspiração na Ásia, a Poke bowl de salmão fresco. Os ingredientes parecem simples e por vezes incompatíveis, no entanto, o resultado é rico em texturas, na fusão de influências, nos aromas e sobretudo nos sabores. 

Nesta altura disse à minha esposa, que só por este prato, a nossa ida ali, já tinha valido a pena ;) Seguiram-se umas vieiras do Algarve caramelizadas, cenoura, gengibre e laranja no ponto (quer no sal, quer no tempo de confecção), cítricas, vegetais e com um belíssimo perfume marítimo. 

Como proposta vegetariana surgiram os Noodles, amendoim, tomate cherry, feijão verde, gyosas, gengibre, lima e rebentos de soja. Todos os elementos com sabor muito característico e forte, mas que em combinação se conseguem harmonizar. O ácido da lima e o doce da soja, a frescura do feijão verde com o picante oriental do gengibre. 

O Bacalhau meia cura confitado em azeite, wonton crocante de grelos e grão trouxe um sabor a mar inspirador. Cozinhado no ponto, com conta, peso e medida,  e com os acompanhamentos bem pensados provoca uma erupção de texturas, memórias e sabores.

 Os pratos foram bem harmonizados com a excelente acidez do Casal de Ventozela 2016, a fruta do Coelheiros Branco 2016, a complexidade do Taylor's Late Bottled Vintage 2013 e a concentração do Fonseca Terra Prima.

 Voltando à comida, a última estrela antes das sobremesas foi o Borrego em crosta tandoori, chamuças com chutney de manga. A redução de vinho contribuiu para cortar a força das chamuças aliando-se à frescura dos vegetais e à suculência do borrego. O chutney de manga vai muito bem com o borrego, que conjuntamente com a crosta promove uma multiplicidade e densidade de sabores incríveis. 

A apresentar as sobremesas surgiu a irreverência do Ombré Cocktail com Taylor’s Chip Dry, limão, laranja, morango, Campari e Fonseca Bin 27.

Este cocktail teve o condão de despertar o palato para a Tarte de chocolate em duas texturas, gelado de chocolate e menta. Sofisticação e elegância em forma de comida. Uma massa deliciosa, leve e algo crocante, com apontamentos de frutos vermelhos e um toque suave de menta para refrescar a alma. 

A terminar a refeição, um Cremoso de tangerina e coco, biscoito, merengue e sorvete de tangerina. Uma tangerina reduzida, condensada e aprisionada neste prato na companhia  fidalga e excêntrica do merengue. O prato carregava ainda uma espécie de aroma agridoce a salada de frutas (amoras, framboesas, coco e tangerina), o merengue acrescentava textura com um estaladiço-crocante adocicado muito interessante e o sorbet de tangerina fazia a ligação perfeita com o Porto.

Depois desta magnifica refeição de sabores equilibrados e apresentação apurada num espaço sofisticado e cosmopolita, era chegada a hora de recolher aos aposentos deste mágico hotel, na companhia das minhas mais que tudo (a Bia adorou percorrer todos os cantos do hotel). E é aqui, exactamente aqui, que regressamos às lágrimas do incenso. 

Há uma ave que se alimenta exactamente disso, de lágrimas do incenso e do sumo da amónia, os fenícios e os gregos dão-lhe o nome de Fénix. Quando completa 500 anos de vida, esta ave constrói um ninho no alto dos ramos de um carvalho, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali encolhe-se e morre abraçada pelos aromas dos perfumes. 

Das suas cinzas, renasce uma pequena Fénix, que viverá outros 500 anos, sofrendo modificações, transformações e evoluções … Assim também é a nossa vida e tudo o que nela existe e queremos que persista.

É num processo parecido a este, aquele em que o Hotel Infante Sagres se encontra. De metamorfose constante, sem nunca descurar o início onde bebeu a sua identidade. Um Hotel que se renova e encontra outras formas, nas formas de fazer as coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados: gosto muito daquele que o Hotel Infante Sagres agora exibe ... por entre as lágrimas do incenso ... símbolo de um renascimento feliz ;)