Terra Nova | Uma palmadinha nas costas de Deus
"A carne que parecia um lábio se contorceu e depois parou. Kino levantou a carne e lá estava a pérola, perfeita como a lua. Captava a luz, refinava-a e a devolvia numa incandescência prateada. Era do tamanho de um ovo de gaivota. Era a maior pérola do mundo." «A Pérola», John Steinbeck
Há livros que por serem tão pequenos pensamos que contêm apenas coisas triviais, uma literatura mais ligeira que nos permite "abrandar" o cérebro. No entanto, com este preconceito podemos perder a essência das palavras que, por vezes, neles está contida. Assim é «A Pérola» de John Steinbeck.
«A Pérola» é uma parábola que pretende transmitir uma moral acerca da pesca, dos nossos valores, da fama e do dinheiro. Fala também da união de um grupo de pessoas, de uma coragem inabalável e de uma visão ímpar. Fala de como as tradições num mundo aparentemente moderno podem ser válidas, fala de tanto em tão poucas páginas, que as mesmas sabem a tão pouco. Fala da coragem de partir, de navegar e de ir cada vez mais longe. Fala de arriscar, fala do medo e fala da recompensa.
Mas fala também de regressar ao sítio seguro de onde se partiu às escondidas, para pôr em prática a aprendizagem obtida com as descobertas. Foi com este espírito arrojado que cinco amigos "navegadores" criaram um espaço cuja promessa é a de nos fazer embarcar numa aventura gastronómica: o Terra Nova Restaurante.
Conheci um desses 5 amigos, o Vasco, aquando da nossa visita ao sitio onde se come o melhor bacalhau em Portugal, o Salpoente. E desde então, ficou agendada a nossa visita a este restaurante inspirado nos descobrimentos portugueses e na pesca do bacalhau: uma coisa tão nossa. Com a agenda um pouco apertada, só no mês passado cumprimos a promessa...
O Terra Nova surge escondido na azafama da Ribeira, local turístico por excelência e isso levou-os a escolherem o bacalhau e as ostras como matérias primas da cozinha. Como marca diferenciadora introduziram a selecção dos melhores produtos, sempre frescos, com entregas diárias asseguradas pelos melhores produtores nacionais.Depois de umas deliciosas pataniscas de bacalhau (com um travo vegetal muito irreverente) com folha de aipo; e de uns bolinhos de bacalhau (estaladiços na crosta e bastante suculentos no interior) com baby coriander; um dos favoritos do restaurante: Sardinha na broa com manjericão.
Com um sal delicioso, a sardinha estava untuosa e ligava na perfeição com o azeite e tomate do pão. Fez-me espreitar pela janela na procura por balões de S. João ;) No serviço à mesa surge a carismática Mimi, que empresta à casa uma voz amiga, competente e bastante profissional. Leva ao limite o lema do espaço: "Na nossa casa, sente-te em casa."
Estes primeiros pratos foram acompanhados pelo vinho Alvarinho Longos Vales da Quinta da Pedra 2015. Com uma cor intensa, palha, com reflexos citrinos, aroma intenso e distinto a alperce, líchia e flor de laranjeira emprestou uma excelente mineralidade e frescura a estes petiscos (por favor parem de lhes chamar tapas!!! ;))Quanto às ostras, foram das melhores que provei em Portugal, quer as mais simples Ostras in natura quer as mas complexas Ostras com caviar. Muito suculentas, quando mastigadas liberam líquido com um sabor muito intenso a água do mar que cuidadosamente guardaram. São frescas, subtilmente salgadas e de sabor airoso e levemente mineral.
Estavam mesmo a pedir um vinho seco, com boa acidez e bom teor alcoólico. O Niepoort Redoma Rosé 2017 deu-lhes isso e ainda acrescentou a companhia dos morangos, framboesas, jasmim, resina e ligeiro fumado. A salivação resultante da acção conjunta da acidez do vinho e suculência das ostras é bastante prazerosa e certificou a competência da harmonização.
Seguiu-se o prato, que na minha opinião, por si só, justifica a visita ao Terra Nova: Massada de Bacalhau com linguini fresco (feito no dia) apetitosamente amanteigado, lascas do melhor bacalhau da Islândia e um molho com quatro variedades de tomate. O tomate anexa ao prato uma acidez muito particular e que balanceia a voluptuosidade do peixe.
Funciona quase como uma bolonhesa de bacalhau bastante rica e original ;) A acidez, mineralidade, volume, textura e notas de abacaxi, lichia, pera e flor de laranjeira do Crasto Superior Branco 2016 combinaram certeiramente com a massada.
Para a sobremesa chefe Rafael Gomes (com experiência de 6 anos e carimbo Gordon Ramsay no Reino Unido) reservou-nos um Tarte de chocolate com chocolate branco, gelado de caramelo, mousse de chocolate e bolacha ralada. Gulosa, fresca, rica e muito saborosa. Ganhou dimensão na presença de dois vinhos.
O Quinta de Noval Tawny 10 anos (avelã, nozes, cereja, caramelo, especiarias e excelente acidez) que se ligou bem ao caramelo e o Quinta do Noval Late Bottled Vintage 2012 (cerejas, morangos, cacau e elegância) que se prendeu à mousse de chocolate.
Voltando ao livro, John Steinbeck metaforiza o golpe de sorte de encontrar uma ostra com uma pérola, com uma palmadinha nas costas de Deus ou dos deuses. O mesmo acontece quando encontramos um restaurante, que com identidade, trabalho e qualidade nos conseguem fazer viajar, numa casa portuguesa com vista para o mundo. E tal como no livro, também no Terra Nova há um pérola (em forma de candeeiro ;))
P.S. A mesa do capitão foi dos sítios mais bonitos onde tivemos a oportunidade de almoçar.