Bairrada no Porto | A lenda da Severa
"Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magníficos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos. Não será fácil aparecer outra fadista assim, altiva e impetuosa, tão generosa como pronta a partir a cara a qualquer que lhe fizesse uma tratantada! Valente, cheia de afectos para os que estimava, assim como era rude para com os inimigos. Não era mulher vulgar, pode ter a certeza." Bulhão Pato
No passado mês a cidade do Porto recebeu, em jeito de estreia, o evento Bairrada no Porto 2018. Com ele, a Comissão Vitivinícola da Bairrada e a Revista de Vinhos desafiaram os produtores desta região demarcada a levarem os seus espumantes e vinhos até ao Pestana Palácio do Freixo, onde apresentaram desde grandes referências vínicas até aos seus mais recentes rótulos.
Aos néctares bairradinos, juntaram-se ainda iguarias, pela cozinha do Rei dos Leitões, e opções turísticas, apresentadas pela Associação Rota da Bairrada, ambos com espaços próprios no evento. A escolha do dia do evento – um Domingo à tarde e junto da quadra natalícia – criou ainda uma oportunidade para juntar família e amigos em torno do vinho ;)
E porque era ele, o vinho, a estrela do evento, vou-vos falar dos que mais me agradaram. Começando pelos espumantes, dei pela primeira vez com o palato na pureza, delicadeza, nobreza e bolha muito fina do Caves São Domingos Elpídio 80 Bruto com aromas a peônias, avelãs, brioche e pedra molhada que promovem um acabamento macio, persistente e cremoso.
Continuando nas Caves São Domingos mas passando para os brancos, destaco o Lopo de Freitas 2016, um Branco 100% Viognier carregado de violetas, acácias, alperces, lima e uma ligeira tosta. Na boca é voluptuoso, muito mineral, encorpado e elegante.
Luís Pato trouxe consigo para o evento o incrível Parcela Cândido Vinha Formal Branco 2017. O motivo? Achar que o Cercial, proveniente de solos argiloso-calcários como os da Bairrada se vai tornar o próximo hit da Bairrada, devido à sua excelente e particular acidez, mesmo quando sujeita a condições adversas.
Para além dessa acidez inebriante realce para a noz, amêndoa, ameixa, pêssego, alperce e casca de laranja. Tal como nos vinhos anteriores, a elegância, mineralidade e expressão deste Parcela Cândido são assinaláveis.
Um bando de pombas (que simbolizam o conceito de paz e de liberdade por esse mundo fora) e o cravo da nossa liberdade trouxeram consigo o 95 Anos de História das Caves São João e com ele a lima, a flor de laranjeira, o abacaxi, o magnório, as nozes e as amêndoas.
No palato este vinho exibe-se delicado, fresco e bastante longo. Mudando os holofotes para a minha casta tinta portuguesa favorita, a Baga, voltei a ficar rendido à interpretação Campolargo, com bagas silvestres, ameixa preta, erva seca e tabaco.
O Campolargo Baga Tinto 2014 é ainda possuidor de taninos mordazes, uma acidez muito vincada e um final com pulso forte. A acidez muito acentuada é também a marca característica do Messias tinto 2013 Clássico Garrafeira.
No entanto, no caso do Messias a acidez é muito salgada, quase como uma brisa marítima. Os frutos silvestres, ameixa vermelha, resina, mel, pinheiro e um delicioso iodo tornam-no muito complexo, equilibrado e com uma capacidade de envelhecimento incrível.
Enquanto lá fora o tempo estava escuro e frio, dentro foi tempo de aquecer o palato com um Baga proveniente de uma parcela única de uma vinha centenária, que depois de envelhecer em barris de carvalho francês por 20 meses, expressa de maneira única as características do berço em forma de solo calcário onde cresceu.
Essa expressão é materializada nas 600 garrafas produzidas de Giz Vinha das Cavaleiras 2016 e em forma de giz, bagas silvestres, mirtilos, zimbro, alcaçuz, azeitonas e um ligeiro fumado. O palato é elegante, harmonioso, equilibrado, adstringente, intenso e muito persistente.
Este foi, sem dúvida alguma o meu vinho favorito do Bairrada no Porto 2018, muito por culpa de uma característica que os bons Bagas possuem (e este é um excelente exemplo). É um vinho/casta cheio de afectos para os que estimam e percebem, mas também é um pouco rude e amargo para quem não consegue imaginar a sua evolução a longo prazo.
Um pouco como acontece com a evolução das crianças até se tornarem adultas. E já que estamos a falar disso, o sorriso da Bia mostra claramente que o futuro dela, vai estar relacionado com este mundo, mas lá está, só alguns conseguem ver isso :)
A lenda da Severa, imortalizada por Dulce Ponte na Lusitana Paixão, fala disso mesmo, de uma fadista com personalidade Baga, altiva e impetuosa, tão generosa como pronta a partir a cara a qualquer que a não compreenda. Por isso mesmo, acho que esta região tem tudo a ver com com a lenda da figura mais mitológica do universo fadista. Coincidentemente (ou não :)) o Bairrada no Porto também teve Fado e uma Ana Moura;)