Restaurante Astória | Um rio onde navegam os barcos da infância
"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar? ... Este era o conto que eu queria contar. Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?" José Saramago
A publicação de hoje começa com uma reflexão do enorme escritor português José Saramago, postulada na história para crianças “A maior flor do mundo”. Neste pequeno texto, baseado na sua própria vida, é-nos ensinada a importância de viver com compromisso e solidariedade, levando-nos a concluir, sem margem para dúvidas, que são essas coisas que dão sentido à nossa existência e nos valorizam. Transformando-se em personagem, Saramago conta-nos que sempre quis escrever uma história para crianças, e que a dado momento inventou uma sobre um menino que após percorrer ladeiras e campos, saltar de árvore em árvore como um pintassilgo, cruzar um rio e subir ao cimo de uma ladeira, encontra uma flor que está a secar.
O menino faz tudo, o possível e, também, o impossível para salvá-la. Acaba por conseguir que ela se torne a maior flor do mundo. Por isso é que quando o menino “passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos”, uma coisa quase impossível. O criança desta história faz com que uma simples flor, moribunda, seja capaz de dar sombra como se de uma palmeira se tratasse.
Os leitores são assim chamados para uma agradável brincadeira, em que o autor lhes narra a história da flor e do menino que a salvou, não como se ela fosse uma verdade incontestável, mas apenas um rascunho do que ele quereria ter contado, se conseguisse ele também o impossível: escrever a melhor história de todos os tempos. Se nos deixarmos levar no jogo de Saramago, vamos percebendo, palavra após palavra, que ninguém nunca teve, tem, ou terá esse poder: o de realizar coisas impossíveis.
A narrativa destaca os valores essenciais, como a solidariedade, o amor e a memória, evidenciando que são os pequenos actos de caridade, aqueles que nos tornam verdadeiramente gigantes. Para além do legado de amor ao próximo que este texto nos deixa, escolhi esta obra de Saramago para ilustrar a nossa visita ao Restaurante Astória, por um outro motivo. Por ela também nos levar a pensar na interpretação de memórias, no renascer de tradições e na reinterpretação de histórias, todas essas premissas excelentes metáforas para a nova carta do restaurante, com a assinatura do Chef Paulo Leite.
O novo chefe, ex Eleven Rio - estrela Michelin em 2016 e 2017; e que já passou pelo NH Collection Porto Batalha e pelo The Yeatman, procura dar uma nova interpretação à cozinha tradicional portuguesa através de combinações improváveis, de uma conjunção de sabores bastante elegante e de um uso muito próprio de texturas contrastantes.
Sabor, modernidade, charme, tradição e memória parecem ser os novos 5 pilares do camaleónico Astória. É disso um óptimo exemplo a Chora de bacalhau, uma reinterpretação de um prato rústico e carregado de tradição, composto por um consommé de caras de bacalhau, línguas de bacalhau, puré de gema, tomate e salsa, que aqui ganha elegância, pompa e circunstância.
Também aqui somos convidados para um jogo, entre a acidez do tomate, a untuosidade do puré e a maresia do bacalhau. Todo o prato cheira a mar numa manhã de nevoeiro ;) A laranja, a lima, a toranja e o abacaxi do Royal Palmeira Loureiro 2015 (86 pts) realçaram a elegância e elevaram em complexidade da chora de bacalhau.
Seguiu-se o Ovo, cogumelos e baroa, com ovo a baixa temperatura, cogumelos selvagens e puré de batata baroa. É complexo, intenso e carregado de memórias. A cremosidade e palato doce do puré de batata destoa deliciosamente a textura mais gelatinosa e sabor salgado dos cogumelos selvagens. Termina com um travo vegetal muito agradável.
O Quinta do Cume Reserva Branco 2016 (85 pts) emprestou baunilha ao ovo, ameixa ao puré, flor de laranjeira à baroa e mineralidade a todo o prato. Um grande momento de harmonização ;) Regressando ao mar, surgiu na mesa a Pescada e bivalves, com arroz caldoso de bivalves, pescada, lavagante e salsa. Combinava sabores, texturas e aromas, em que nenhum ingrediente se sobrepunha ao outro e a harmonia era perfeita.
Carregava ainda um sabor a mar inspirador, que nos entra pelo palato e fica agarrado aos rochedos das nossas memórias. A pescada, os bilvalves e o lavagante estavam cozinhados no ponto, os acompanhamentos pensados ao pormenor, acrescentando frescura, voluptuosidade e uma boa dose de surpresa. Um prato com este predicados cresceria, quando conjugado com a frescura mas também com uma ligeira untuosidade, o Quinta da Pedra Alvarinho 2014 (89 pts) deu-lhe isso e ainda acrescentou notas de maçã verde, abacaxi e maracujá.
E por falar em untuosidade, essa palavra para mim agora rima com Cachaço de porco, papas e grelo. O cachaço foi glaceado a baixa temperatura, com papas de sarrabulho, grelos, laranja e molho de alecrim. Apresentou-se com um camada superficial crocante, enquanto que o interior aprisionava um suco delicioso carregado de sabor, gordura e exuberância. O molho de alecrim acrescentou elegância e intensidade aromática, as papas tradição e identidade; e a salada laranja e os grelos ... diversidade.
O prato implorava por um vinho com corpo, equilibrado e intenso. O Bella Superior Touriga Nacional 2014 (88 pts) trouxe ainda com ele cerejas, amoras, morangos maduros, bergamota, cacau e pimenta preta. Para o grande final: Bilharaco Astória, um bolo de abóbora caramelizado, com ganache de speculoos, sementes de abóbora e queijo da serra. Um bolo tradicionalmente natalício de abóbora, típico da memória gastronómica de Aveiro, numa reinvenção caramelizada, com cubos gelatinosos de aguardente, canela e queijo da serra.
Remete-nos para a comida de conforto e para a nossa meninice, com recordações de um grande alguidar com uma massa líquida e cor de laranja, emanando a aguardente caseira e abóbora do quintal. Um prato de memórias, quase como um rio onde navegam os barcos da infância, da nossa infância. Foi acompanhado pelas nozes, figo secos, sobriedade e equilíbrio do Niepoort Tawny Port (88 pts).
Leva, para já, o prémio de melhor sobremesa do ano ;) Já conhecemos uma mão cheia de Chefs que procuraram dar o seu cunho pessoal ao Astória, parece-nos, no entanto, que este é o que melhor se está a enquadrar no perfil moderno, acolhedor, elegante e luxuoso do Palácio das Cardosas. Tem tudo para ter um futuro ... estrelado ;)
Todo o menu tem a ver com sabor, delicadeza, viagens, histórias, reencontros, memórias e reinterpretações. As minhas memórias relativamente ao Astória, estão também fortemente ligadas à primeira dormida que tivemos fora de casa, com a Bia, numa noite de inverno em 2017. Este era o conto que eu queria contar. E como nestas coisas de viajar no tempo, há sempre uma certa bidireccionalidade temporal, quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, ou uma parecida, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita? Como nos velhos livros de literatura infantil, concluo como Saramago: “É esta moral a moral da história de hoje”.