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No meu Palato

No meu Palato

A(Dão) | A paciência do tempo, um elo perdido, ou o simples fruto do acaso?

"Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndulo, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. Só o que o tempo faz."  José Saramago, em ' Bagagem do Viajante' 

DãoCrentes ou não crentes, já todos conhecem a história de Adão e Eva. Na Bíblia a sequência de acontecimentos é clara e aparentemente consecutiva, primeiro surge o primeiro homem ao sexto dia, Adão, e depois, ao sétimo, surge a mulher, Eva. O problema é que um dia na Bíblia pode corresponder a mil anos, podendo isto significar que Adão, o homem, viveu muito tempo sozinho, sem mulher (numa altura em que não existiam jornais, televisões e smartphones, isto não deveria ter sido fácil). Curiosamente um artigo científico publicado na prestigiada revista Science (Agosto de 2013) parece vir confirmar exactamente isto. 

DãoOs cientistas descobriram que o homem terá vivido há 120000-156000 anos, e a mulher, surgido depois, "apenas" há 99000-148000 anos.  Mas como é óbvio, estes estudos científicos não tiveram (nem tinham de ter) como objectivo reforçar ou refutar os textos sagrados, pois segundo os mesmos, a coincidência de datas pode não ter nenhuma razão histórica, e ser um simples fruto do acaso. Devem de estar vocês a pensar: «Como é que este artista vai passar do livro do Génesis 3, para o vinho. Porque é claro que isto vai ter que ter a ver com vinho!!!» 

DãoEssa pergunta só surgiria em leitores inteligentes como os meus (;)) e a resposta é simples, um elo perdido, em ciência, não metaforiza apenas este salto, ainda sem explicações claras, entre o último animal primata mais evoluído e o primeiro ser humano, mas também algo que não se consegue explicar, uma informação que foi perdida no tempo. E com tempo, evolução e vinho, só podíamos ir parar a uma região: ao Dão. Das primeiras vezes que lá estive, um agricultor disse-me algo que jamais esquecerei: «Sou do tempo em que bom vinho era sinónimo do Dão». Estava-se a referir aos anos 50-70 do século passado. A qualidade, personalidade, diferença, elegância, frescura e suavidade destes vinhos levaram-nos aos 4 cantos do mundo.

DãoO certo é que nos primeiros anos deste milénio os vinhos do Dão decresceram, em importância, reconhecimento, qualidade e quantidade,  em contraste com o Douro e o Alentejo. Não se sabe muito bem como surgiu este elo perdido. O que realmente importa é que estes vinhos, pouco a pouco, voltam a retomar o lugar que merecem. Recordo-me perfeitamente que com parte do dinheiro que obtive num dos meus primeiros ordenados, comprei uma garrafa de um vinho que me fez olhar para os vinhos de maneira diferente. Estávamos em 2007 e tinha acabado de comprar uma garrafa de Quinta de Cabriz Reserva  2003, para harmonizar a noite de consoada desse ano.

DãoPara os bebedores de vinho mais atentos,  esta melhoria qualitativa dos vinhos do Dão, clara e notória, chegou-lhes ao palato nos últimos 5 anos. Época que coincidiu com um grande esforço da Comissão Vitivinícola Regional do Dão no sentido de recuperar o elo perdido com os tempos de glória do passado. Para tal, esta comissão procura, diariamente, rejuvenescer, democratizar e promover a marca, aquém e além fronteiras. Os últimos indicadores espelham o resultado deste esforço no capítulo das exportações, que já chegam a mais de 70 países.

DãoFoi neste contexto que fomos convidados a conhecer um pouco mais os vinhos desta zona, os da primeira região vitivinícola portuguesa, estabelecida em 1908, dedicada totalmente aos vinhos de mesa. Para tal tivemos uma tarde muito bem passada no Solar do Vinho do Dão, edifício cuja origem remonta a 1122. Começamos com o Quinta dos Penassais Rosé 2015 (80 pts.) e o seu sabor suave e agradável a rosas, caramelo, groselha, framboesa e morangos. 

DãoNos brancos gostei muito das violetas, lima, maracujá, pinho e equilíbrio quase perfeito entre açúcar, acidez e untuosidade do Terras Madre de Água Encruzado 2017 (81 pts.); e da flor de laranjeira, maracujá, ananás, pêra, damasco,  frescura, duração e equilíbrio do Júlia Kemper Branco 2016 (91 pts.) No entanto, o meu branco favorito, é também o mais barato de todos  (6 euros, por favor subam isto!!!), o Quinta do Sobral Branco 2017 (82 pts.). 

DãoFranco, descomplicado e assertivo, com banana, abacaxi e limão. No palato é bastante mineral (granito molhado), com uma acidez vibrante e um final persistente. Nem sempre os mais caros têm de ser aqueles que mais nos surpreendem. E por falar em surpresas, tive uma agradável com o Quinta da Espinhosa Unigénito 2015 (90 pts.). Começa os frutos silvestres, as violetas, o tomilho, as rosa e os morangos, surgindo mais tarde cerejas, amoras, baunilha, couro e alcaçuz. É bastante encorpado, complexo, aveludado e harmonioso. Destaque também para o fumo, frutos vermelhos, frutos secos, frutos do bosque, bagas e um notável equilíbrio entre álcool, taninos (firmes e elegantes) e acidez do  Castelo de Azurara Alfrocheiro 2016 (88 pts). 

DãoPara último (no solar), um bom exemplo do que é o Dão, o Casa de Cello Quinta de Vegia Reserva 2007 (92 pts.). Um vinho estruturado, concentrado e elegante, com bom volume e fruta delicada (morangos, amoras, ameixa). É dominado por notas de compota, apontamentos doces de frutas vermelhas e pimenta preta. Surgem também aromas terciários de iodo, farmácia e caixa de charuto. O final é muito persistente, onde são destacados a complexidade de todos estes aromas. Depois desta  visita muito enriquecedora ao Solar Do Vinho Do Dão mergulhamos na encantadora Quinta da Fata do Sr. Eurico. 

DãoUm local tranquilo, pacato, confortável, acolhedor, e onde se respira vinho a cada canto, como não haveria de gostar? ;) Está  localizada na região demarcada do Vinho do Dão e o ligeiro declive para Sul dá-lhe uma exposição soalheira que beneficia o vinho e que a torna particularmente aprazível. Para além da vinha, a Quinta tem jardins, amplos relvados e zonas arborizadas. 

DãoDe entre as muitas árvores, destaca-se uma imponente tília centenária. Tanto a tília como a torre com o antigo depósito da água são bem visíveis e permitem identificar facilmente a Quinta desde longe. Para a Bia, foi a oportunidade perfeita de pôr em prática a sua impressionante capacidade de não parar quieta.

DãoDos vinhos, podia-vos falar das rosas, violetas, lima, resina e mineralidade (sílex) intensa  do Quinta da Fata Encruzado 2017 (85 pts.), da ameixa, morangos, notas tostadas, acidez vincada, taninos aguerridos e particular amargura do Quinta da Fata Tinto 2016 (86 pts.), ou das frutas vermelhas, violetas, rosas, especiarias, caramelo, persistência, concentração e equilíbrio do Quinta da Fata Touriga Nacional Tinto 2015 (90 pts.); mas queria falar-vos, especialmente, do Quinta da Fata Reserva 2014 (94 pts.).

DãoUm vinho incrível,  estruturado, com frescura e concentração, quer na cor, quer no sabor. Exibe frutos vermelhos em compota, mirtilos, amoras pretas, resina, eucalipto, sous-bois e um fumo muito elegante. No palato é untuoso, muito preciso e com um final com imenso pulso (austero, duradouro  e impactante). Grande vinho!!! Parabéns Sr. Eurico ;) 

DãoDepois deste festival vínico, era chegada a hora de pernoitar na casa da Quinta da Fata, que foi construída no final do século XIX com base no granito da região, aumentada nos anos 60 e remodelada em 1991. É uma casa com paisagem, que se pode desfrutar ou dos quartos e/ou do terraço, com aquecimento central,  salas com lareiras e de convívio/jogos, uma piscina e diversos jardins. 

DãoO que fica destes dias passados no Dão? Memórias pinceladas com qualidade, personalidade, diferença, elegância, frescura e suavidade. (Re)descobrir o Dão é entrar num mundo novo de valores, aromas e sabores ... que cativam e seduzem, e logo se tornam inconfundíveis e inesquecíveis. Coisas que aparecem com a paciência do tempo, será este o elo perdido, ou um simples fruto do acaso? A(Dão) que vos responda ;)