Vindouro 2019 | O vento que não se vê, num quadro de Velázquez
"O amor não tem uma natureza simples, bela ou feia em si mesma: é belo, se for feito com bondade, e feio, quando realizado com maldade... O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê..." Platão
Hoje não começamos com literatura, mas com arte ;) Mais precisamente com o quadro de Velázquez intitulado «O Triunfo de Baco», também conhecido como «Los borrachos». Esta dicotomia na nomenclatura da obra, levanta um pouco o véu da mestria da mesma. Foi pintado algures entre 1628 e 1629, provavelmente numa taberna e por encomenda do rei de Espanha e Portugal Filipe IV. (Não vou colocar aqui a imagem para não ter stresses com os direitos de autor, mas encontram-na com facilidade ;)) O homem com o peito nu e corpo pálido é o deus do vinho, Baco. Está sentado num barril e a seus pés estão dois jarros de vinho.
À sua frente, aparece um soldado ajoelhado usando uma espada, e Baco coloca-lhe uma coroa de folhas de videira na cabeça. Enquanto isso, Baco olha noutra direcção no mesmo momento em que algumas personagens levantam os seus copos para darem as boas-vindas a um homem que parece querer entrar em cena. Há outro homem, à direita de Baco, segurando uma caneca de vinho e que parece nos sorri. Outro à esquerda segura uma taça de "Martini" (???). Os restantes camponeses à direita, com a mão no ombro, estão claramente bêbados.
Na maneira como interpreto este quadro de Velázquez , o pintor procura-nos transmitir os dois mundos em que podemos situar o vinho, o do divinamente profano (ou dos bêbados) ou o do profanamente divino (ou dos enólogos, enófilos e outros apaixonados por vinhos, que representam o triunfo de Baco). Este segundo grupo reuniu-se para celebrar o vinho em S. João da Pesqueira na VINDOURO – Wine & History.
O primeiro dia começou em grande na Quinta de Ventozelo. Este projecto quer transformar a Quinta numa propriedade modelar e única na região, onde podemos pernoitar (a partir deste mês), sem perder de vista a sua história. Afirmar a excelência dos seus vinhos e outros produtos agrícolas, salvaguardar a riqueza natural dos seus habitats e fomentar a biodiversidade, são passos fundamentais que estão a ser tomados de modo a garantir a sua sustentabilidade produtiva e ambiental a longo prazo. O desafio proposto passa por afirmar o prestígio e notoriedade da marca Ventozelo, fugindo à rotina e explorando novos caminhos, como a cantina de Ventozelo entregue ao chefe Miguel Castro e Silva. E isto implica também ... arte.
Essa fuga à rotina está muito bem espelhada no Gin de Ventozelo. O zimbro, o tomilho-limão, tomilho-bela-Luz, alfazema, perpétua roxa, coentros e hortelã-pimenta utilizados na sua produção procuram transmitir a quem os prova, os aromas característicos do bosque, da horta e do pomar de Ventozelo. Suavidade, frescura e persistência são os três vectores directores deste gin.
Voltando aos vinhos, e antes que Baco me expulse do segundo grupo, nos brancos de Ventozelo, gostei da toranja, esteva, folha de limoeiro, noz-moscada, suavidade, elegância e excelente mineralidade do Quinta de Ventozelo Malvasia Fina Branco 2017 (82 pts., 15.00 €) e do melaço, maracujá, lima, untuosidade, volume e (mais uma vez) excelente mineralidade do Quinta de Ventozelo Viosinho 2017 (86 pts., 15.00 €).
Nos tintos destaque para os groselha, cereja, violetas, alfazema, volume surpreendente e frescura sedutora do Quinta de Ventozelo Touriga Nacional 2016 (89 pts., 16.00 €), das amoras, ameixa preta madura, esteva, rosas, complexidade, elegância e densidade do Quinta de Ventozelo Touriga Franca 2016 (87 pts., 16.00 €) e dos morangos, amoras em compota, cerejas, cedro, notas tostadas, nuances picantes especiadas, frescura, intensidade e persistência do Quinta de Ventozelo Blend 2015 (89 pts., 16.00 €). Para o final do almoço ficaram reservadas as amêndoas torradas, laranja confitada, mel, caruma, eucalipto, frescura, elegância e persistência do Dalva Colheita Branco Porto 2007 (90 pts., 27.00 €).
Na feira apareceram milhares de visitantes, que puderam participar no mercado pombalino, assistir a um concurso de vinhos que premiou as melhores referências da região, actualizar a garrafeira com compras no mercado de vinhos, ou fazer parte da feira das actividades económicas, tudo isto, embebido num ambiente de tradição pombalina celebrado com entusiasmo.
O Mercado Pombalino e o Cortejo voltaram a animar os visitantes, num evento onde houve tempo para tudo: um eco trail, provas livres, um prémio equestre e uma corrida de toiros (espero não ter seguidores do PAN ;)). E num programa cheio, a plateia alargou-se grandemente pela transmissão em directo para o país, através do programa ‘Somos Portugal’, da TVI.
Entre as provas em que o público pôde participar, destaque para a dos Vintage 2017. E aqui houve vinhos para todos os gostos. Desde a ameixa preta, amoras, violetas, equilíbrio, elegância e persistência do Quevedo Vintage 2017 (94 pts., 60 €), até à cereja preta, amoras, resina, densidade, acidez e largura aromática do Churchill's 2017 (95 pts., 100 €), passando pelos frutos do bosque, melancia, eucalipto, erva doce, elegância, intensidade e "verdura" do Quinta do Pessegueiro 2017 (95 pts., 85 €).
O Dow's 2017 trouxe consigo uma brisa floral incrível com lavanda, cravinho, hortelã, alecrim e cassis. Também aparece a ameixa, a baunilha e um ligeiro mentol, mas muito mais escondidos que a sua alma floral. É bastante harmonioso, complexo, refinado, seco e tem uns taninos fantásticos (96 pts., 100 €).
O melhor desta prova foi mesmo o surpreendente Croft Quinta da Roêda Serikos 2017 (99 pts., 100 €). De todos os Vintage 2017 que provei (mais de 50!!!) este foi sem dúvida aquele mais inesperado. O nariz tem algo de químico-balsâmico, compota de morango, ameixa preta confitada, mirtilos opulentos, eucalipto, casca de tangerina seca, violetas e rosas. É um Porto enorme, cheio de volume, intensidade, adstrigência, densidade e um número infindável de camadas. É realmente mito bom!!!
Ainda no primeiro dia, já no final, o programa reservava ainda dois grandes pontos altos. Primeiro, o já clássico e habitual Jantar Pombalino, e depois, o concerto dos Amor Electro, esgotado para receber a banda lisboeta que actua um pouco por toda a Europa. Também aqui, e como não poderia deixar de ser, o vinho não faltou ;)
Depois de uma noite super repousante no turismo de habitação da Quinta do Pessegueiro (noutra ocasião falamos disto), era chegada a altura, na manhã, de perceber como o vinho, a natureza, a história e o Homem moldaram a cultura e os valores, não só da Quinta mas também do Douro.
Começamos pelo coração da propriedade, a adega do Pessegueiro que se distingue pela sua extraordinária arquitectura, que resulta das funções do edifício e sobretudo do método específico de vinificação que acolhe. O edifício tem cinco níveis e associa métodos tradicionais de produção de vinhos de elevada qualidade ao mais sofisticado equipamento.
Autêntico desafio da tecnologia, esta adega foi concebida de forma a utilizar a gravidade natural ao longo de todo o processo que transforma a uva em vinho. Com vista a preservar e respeitar o vinho ao máximo, a utilização de bombas foi totalmente excluída em todo o percurso, desde a recepção da uva até à sala das barricas.
Para complementar a gravidade natural, a adega dispõe também de uma cuba elevador. Quanto aos vinhos, controlados por João Nicolau de Almeida, iniciamos a prova com o Pessegueiro Aluzé Branco 2016 (83 pts., 11 €), com casca de laranja, damasco, melão, anis, boa acidez e intensidade.
Com o Pessegueiro Aluzé Tinto 2014 (84 pts., 12 €) vieram as cerejas, amoras, groselha, cravo, alecrim, pimenta preta e sous-bois. Um vinho com uma acidez muito atractiva, bastante preciso e longo. Já agora Aluzé deve ler-se A luz é ;)
O Quinta do Pessegueiro 2015 (90 pts., 26 €) joga noutro campeonato e conta no seu plantel com a resina, os morangos, a cereja, o sous-bois, o musgo húmido, noz-moscada, canela, uma mineralidade inebriante (pedra molhada) e muita finesse na conclusão das jogadas ;)
No entanto, e por entre todos os tintos que provei, aquele que mais me prendeu o palato foi o Quinta do Pessegueiro Tinto Cão 2015 (92 pts., 40 €), uma ode aos aromas balsâmicos com resina, pinho, cedro, baunilha leve, pimenta, alcaçuz, pimenta preta, violetas e esteva. É bastante vegetal e rústico, mas com um alter ego elegante, equilibrado e surpreendente harmonioso.
Paragem seguinte: Quinta de S. José ;) Um projecto familiar que começou no início de 1999, pela vontade de Ruy Brito e Cunha devido à excelente localização das casas da Quinta, praticamente em cima do rio. As casas, dedicadas agora ao turismo, foram recuperadas, respeitando o seu enquadramento e materiais típicos da região do Douro.
Em 2005, João Brito e Cunha, o filho, comprou à família toda a área de vinha, mato e marca da Quinta de S. José para ele próprio assumir e se dedicar ao projecto da produção e comercialização dos vinhos com a marca da Quinta de S. José.
João Brito e Cunha é descendente em linha directa de Dona Antónia Ferreira, a Ferreirinha, pelo que, podemos dizer, que não só plaquetas e glóbulos vermelhos correm nas veias deste duriense, o vinho também ;)
E por falar em vinho começamos a prova dos vinhos S. José com o pêssego, maracujá, flor de laranjeira, mineralidade (pedra molhada) e acidez bem vincada do Flor de S. José Branco 2018 (82 pts., 11 €) e da toranja, acácia, casca de tangerina, anis, excelente mineralidade (xisto molhado), elegância e complexidade do Flor de S. José Reserva Branco 2018 (88 pts., 22 €).
Com o Quinta de São José Reserva Tinto 2016 (91 pts., 26 €) chegaram os aromas a noz-moscada, pimenta preta, frutos do bosque, violetas, menta e resina ... camada após camada. Resultante da mistura de Touriga Nacional e vinhas velhas da Quinta e depois de 12 meses em barricas de carvalho francês, todo este vinho é equilíbrio, elegância e complexidade. De uma parcela especial de Touriga Nacional que originou apenas 1100 garrafas surgiu o Quinta S. José Vinha Ruy Francisco 2015 (94 pts., 95 €), que para além de "carregar" uma homenagem ao pai ainda traz consigo uma fruta muito pura com cereja, ameixa preta, mirtilos, chocolate, violetas, pimenta preta e sous-bois. É austero, firme, intenso e complexo. Tem tudo para ficar enorme em garrafa.
Antes de regressar a casa, ainda houve tempo para mais um porto, o Quinta de S. José Vintage 2016 (93 pts., 43 €). Ainda muito retraído já nos brinda com esteva, mirtilos, ameixa muito madura, cereja, folhas de chã preto, alguns fumados e taninos vigorosos mas com classe. Muito equilibrado, seco, elegante e com um final de boca bastante longo e duradouro.
E a Vindouro 2019, para mim, foi isto meus amigos. Denominador comum a todos estes produtores que visitamos? O amor que cultivam, não só pelo que fazem, mas também pelo Douro. E é por isso que escolhi a frase do livro O Banquete, de Platão. Este livro é um diálogo com diversos discursos acerca do amor. Remete-nos para um banquete, um festim, em que, fazendo jus ao nome, a cada participante era proposto dizer umas palavras sobre o amor.
Que esse amor em forma de vento que não se vê, continue a empurrar o Douro para as correntes do reconhecimento que ele merece, e que a "turma do profanamente divino" se volte a reunir, daqui a um ano, no mesmo sítio, para celebrar o que apenas se vê bem com o coração, que é invisível aos olhos, e já agora, que é impossível de materializar em palavras ou notas de prova.