Encontro com Vinhos e Sabores 2019 | As pontes entre nós
"A análise pormenorizada destrói o todo. Algumas coisas, as coisas mágicas, devem permanecer inteiras. Se olharmos individualmente para os pedaços que as constituem, a magia vai embora. Num universo carregado de ambiguidades, este tipo de certeza ocorre apenas uma vez e nunca mais, não importa quantas vidas nós vivamos." Robert James Waller
Numa altura em que as noticias cada vez falam mais em muros; esses que separam os ricos dos pobres, os do norte dos do sul, os israelitas dos palestinianos, os mexicanos dos americanos, os de Ceuta dos de Melilla, vou-vos falar dos seus arquiinimigos: pontes. As pontes são o contrário de muros. As pontes unem aquilo que os muros tentam separar.
As pontes estão para o silêncio como os muros estão para o diálogo. As pontes fazem-nos ir a algum lugar, os muros impedem que o consigamos fazer. As pontes unem: margens, populações, países, pessoas e até diferentes estados da alma. É também através da ponte dos afectos (ou a ausência deles) que nos relacionamos com os outros.
É por isso que as pontes são um dos pilares que impulsionam a saudável comunicação, o mundo e a nossa sociedade. Nenhum de nós quer/deve ser uma ilha ou uma margem desprendida de curiosidade. Ficarmos preso dentro de muros, das nossas casas, dos nossos empregos, das nossas vilas, do nosso país, dentro daquilo que achamos ser a nossa área de conforto, vai dificultar, e muito, a bela compreensão do todo, sacrificada pela simples, fácil e cómoda observação da parte.
As pontes fazem-nos conhecer a outra margem, as outras pessoas, as outras culturas, os outros pensamentos, as outras ideias e as outras maneiras de conceber a vida. Quando mais "diferente de nós" for a outra margem, mais densos, ricos e complexos (porque "isto" é um blogue vínico ;) ficámos.
Foi para criar este tipo de pontes entre os enófilos que a Revista de Vinhos também nasceu. Celebrou em grande, há umas semanas, os 20 anos do ENCONTRO COM VINHOS. A edição agora finalizada no Centro de Congressos de Lisboa, na Junqueira, conquistou públicos francamente curiosos por outras margens, facto que foi elogiado pela generalidade dos expositores representados.
Nos destaques, começo com dois espumantes: através dos frutos silvestres, calcário, notas florais, nobreza e sofisticação do Giz Cuvée de noirs Baga 2016 (91 pts.) e da toranja, pão, cidreira, cremosidade e frescura do Luiz Costa Pinot Noir & Chardonnay 2015 – 4.ª Edição (22€, 92 pts.). Ainda nos espumantes, houve uma prova comentada de Bolhas formidáveis: Champagne, Trentino e Bairrada. Vou-vos falar de 3 deles. O Ferrari Perlé Zero Cuvée 11 NV (65€, 95 pts.) tem no seu génese algumas características, que em conjunto, se tornam muito peculiares: zero dosagem (brut nature), fermentação e estagio em 3 recipientes diferentes (inox, vidro e madeira) e 6 anos de evolução em garrafa em contacto com as leveduras. Tudo isto originou um bouquet com maçã, amêndoas torradas, gengibre, cominhos e flor de laranjeira. Adorei a sua secura e textura picante conciliados pela elegância do palato.
No Coeur de Cuvée Brut 1er Cru Vilmart 2010(105€, 96 pts.) encontrei mineralidade (calcário), hortelã-pimenta, pêra, coco, volume, amplitude e riqueza aromática. Acaba longo, profundo, intenso e muito expressivo. No entanto e sem surpresas, o meu favorito foi o Cristal Louis Roederer 2008 (280€, 99 pts. - muito provavelmente o melhor Champagne que provei até hoje, apesar de ainda lhe custar começar a falar). Ainda muito novo já mostra aquilo que o vai tornar num Champagne perfeito, concentração, maçã vibrante, bagas silvestres ainda verdes, lima, ligeiro cacau e avelã, mineralidade (pedra molhada), textura sedosa, bolha finíssima e super elegante, e claro ... muita complexidade.
Voltando à sala principal do evento, alguma surpresa com as notas oxidativas e terrosas (quase químicas) conjugadas com a maçã verde, limão, espargos e zimbro do Quinta do Brejinho Terracote 2018 (90 pts.) e confirmação da enorme alma do Poças Branco da Ribeira 2017 (50€, 94 pts.), com o seu volume, untuosidade, espessura e uma acidez muito viva.
A frescura muito particular, a ligeira mineralidade e as notas nobres a citrinos, baunilha e especiarias tornam-no complexo, subtil e equilibrado. No Alves de Sousa Reserva Pessoal Tinto 2011 (75€, 92 pts.) voltei a encontrar a fruta preta em compota muito bonita, violetas, esteva, eucalipto, alcaçuz, aromas iodados e ligeira terrosidade.
A garrafa que provei no Adegga deste ano parecia-me bem mais pronta que esta. Se as que restam estiveram como a do Encontro com Vinhos e Sabores, ainda "aguentam" mais uns aninhos de evolução em cave. O bonito dos vinhos, também é isto, cada garrafa conta uma história diferente.
Nos "tubarões" lambuzei-me com as bagas escuras e maduras, ameixa vermelha, pimenta branca, esteva, noz moscada, cravinho, densidade, frescura, intensidade e foco do Mirabilis Grande Reserva Tinto 2012 (75€, 95 pts.), e os taninos austeramente secos, fruta preta madura (ameixa e moras), mirtilos, manjericão e cacau do Principal Grande Reserva Tinto 2012 (100€, 94 pts.).
Na segunda prova comentada em que participamos, tivemos a oportunidade de conhecer, através dos aromas e sabores, os vales do Douro e de Mosel (Áustria), duas das mais bonitas paisagens vinhateiras da Europa. Regiões de montanha que partilham ainda outro ponto comum: os solos xistosos.
Nesta prova, tivemos vinhos Niepoort de ambas as regiões, da qual vou realçar 3 colheitas: 1983 (100€, 94 pts.: laranja confitada, casca de tangerina cristalizada, caramelo, amêndoa e nozes, um grande ano, não só nos vinhos ;)), 1977 (600€, 94 pts.: a mesma laranja confitada mas um pouco mais seca, ameixa vermelha, caixa de tabaco, chocolate, avelã) e 1948 (1500€, 99 pts.: alcaçuz, couro, tabaco, cera, iodo, farmácia, cogumelos, café, elegância, delicadeza, amplitude, intensidade, finesse, persistência e uma surpreendente dictomia acidez-amargura). Esta prova foi INCRÍVEL!!! e quanto a mim a melhor do evento.
Nos tintos da sala principal conheci algumas novidades, o Quevedo Q Grande Reserva Tinto 2014 (50€, 93 pts.) com compota de ameixa, doce de morango, frutos do bosque, casis, alcaçuz, amoras, charuto, taninos aguerridos/arredondados, equilíbrio, elegância e complexidade); o Comendador Costa Reserva Especial 2014 (55€, 92 pts.) e as suas notas a resina, caruma, ameixa vermelha, morango, cereja, baunilha e acidez assertiva; o benjamim Casa de Saima Garrafeira Baga 2015 (45€, 91 pts.) com os seus bagos silvestres, ameixa preta, tabaco, notas balsâmicas e austeridade; e o enormíssimo Aeternus Douro Tinto 2017 (140€, 97 pts.) com a sua cor vermelho rubi, intensa e concentrada, quase opaca. Exibe frutos vermelhos e pretos maduros com notas florais bem harmonizadas. No palato aparece com vida, poderoso e com e vigor, com boa estrutura em taninos firmes. O final é longo, persistente e sedutor.
Passando para os Portos, relevo para o Dow's Vintage Port 2000 (110€, 96 pts.) e os seus morangos desidratados, ameixa, café, zimbro e avelã; para o Graham's Vintage 2000 (120€, 97 pts.) ainda com fruta vermelha (ameixa e amora), cereja preta, chocolate, resina, eucalipto e taninos sedosos; e para o Dow's 40 anos (170€, 95 pts.) e os seus figos desidratados, uvas passas, nozes, avelãs, casca de tangerina seca, mel, baunilha e delicadeza.
E por falar em Portos, a última prova comentada em que participamos foi a Porto Vintage 2016 e 2017, duas declarações clássicas consecutivas de Vinhos do Porto Vintage que prometem ficar na história deste século. Em prova, estiveram Portos Vintage que mereceram pontuações de excelência pela Revista de Vinhos.
Para tentar ser justo o destaque vai para 2 vinhos, um de cada um destes anos. De 2016, o Graham's The Stone Terraces Vintage 2016 (190€, 98 pts.) com os seus frutos pretos, ameixa, mirtilo, esteva, flor de laranjeira, damasco?!?, tabaco, taninos sedosos e impecavelmente integrados, estrutura sublime e uma acidez inebriante é tão grande que ainda o estou a tentar perceber... Consegue ser sedoso, macio e fino, e ao mesmo tempo opulento, austero e indomável. O final ... nunca mais acaba, é impressionante!!! De 2017, para não ser óbvio, vou destacar o Pintas Porto Vintage 2017 (190€, 97 pts.) com os seus inesquecíveis taninos por camadas e ligeiramente apimentados, amora preta, ameixa madura, mirtilos, cereja, cassis, baunilha, elegância, equilíbrio e precisão.
A edição de 2019 foi assim, e foi desta maneira que a esmiucei aos pedaços, mas como
Robert James Waller (o autor de As Pontes de Madison County) a magia do Encontro esteve no todo e nas novas pontes que lá se planearam. Em 2020, a 21ª edição do ENCONTRO COM VINHOS decorrerá no local de sempre, o Centro de Congressos de Lisboa (Junqueira), na altura habitual – de 31 de Outubro a 2 de Novembro, para celebrar e homenagear, entre amigos, uma das pontes mais eficazes que existe nos dias de hoje, o vinho. Aliás, se pensarmos bem, a ponte da amizade tem muito a ver com uma garrafa de vinho. Há sempre uma data em que ambas nascem, as boas vão melhorando com o tempo, as más, é melhor nem falar... E depois, há algumas, que apesar de as vermos poucas vezes, são as que mais gostamos.
Quando iniciamos uma amizade ou abrimos uma garrafa de vinho, obrigatoriamente temos de procurar três aromas: o do compromisso, o da sinceridade e o da lealdade. Ironicamente, estes dois mundos, o dos amigos e o dos vinhos, unem-se num singelo acto, o de brindar. Ao brindarmos, prolongamos aromas, reavivamos memórias, eternizamos laços. Assim é a amizade, assim são os amigos, assim é o vinho, assim são as pontes que mais gosto!!!
Parafraseando o grande Abrunhosa, que nunca caiam as pontes entre nós ;)