Christmas Wine Experience 2019 | Willahelm e um desejo a proteger
"Quando os bolcheviques assumiram o controlo do Palácio de Inverno, descobriram uma das mais belas e mais bem recheadas garrafeiras jamais construídas. Nos dias seguintes, milhares de garrafas antigas desapareceram. Por várias semanas, a anarquia continuou - até que a lei marcial foi imposta - e finalmente o álcool acabou no mesmo momento em o ano antigo findou. No dia seguinte a capital acordou num ano novo e com a maior ressaca da história" Orlando Figes
Um dos últimos livros que li no ano passado foi o “Madeira o Vinho dos Czares”, da autoria do reconhecido jornalista José Milhazes. Este livro encerra um importante conteúdo das relações histórico/culturais/comerciais entre o Vinho Madeira e a Rússia. É um livro bilingue (em português e russo), com 14 capítulos que nos dão a beber historias bem interessantes, onde o Vinho Madeira é a cabeça de cartaz, em assuntos tão variados como a literatura, a poesia, a medicina, as cortes imperiais, o comercio ou as relações diplomáticas.
Gostei especialmente do capítulo (que é quase uma ficção histórica) que narra os últimos dias da família Romanov, passados na prisão domiciliária em Ecaterimburgo. Dias esses que antecederam a sua maquiavélica execução. Um capítulo que coloca na mesma cena, a revolução bolchevique, o vinho Madeira e a maior ressaca da história. Mas como começa ao certo esta revolução? Resumidamente, em 1905 alguns camponeses frustrados manifestaram-se pacificamente em São Petersburgo na procura de melhores condições de trabalho e de eleições livres. É sabido que os czares não gostavam muito de eleições populares, e por isso, Nicolau II (o czar no poder) decidiu acabar de maneira violenta com essa manifestação. Esse dia ficou conhecido como o Bloody Sunday (não o mesmo que os U2 cantam, pois esse aconteceu na Irlanda).
Como é óbvio a reacção popular a esse massacre foi a de mais manifestações encabeçadas por Lenine. A situação complicou-se (e muito) para o czar Nicolau II com a Primeira Guerra Mundial, um desastre para a Rússia. Baixas insondáveis e uma economia enfraquecida contribuíram para um desfecho terrivelmente infeliz. Em Fevereiro de 1917, a Duma (uma espécie de parlamento apoiado por Lenine) atacou o czar. Tumultos, caos e uma escalada de violência nunca antes vista forçaram Nicolau II a abdicar. No entanto, mesmo exilados em Ecaterimburgo, numa humilde casa de um comerciante local, os Romanov continuavam a ser uma ameaça para os bolcheviques e para Lenine, os novos senhores do poder na Rússia. Com medo que o czar e os seus apoiantes tentassem reaver a sua posição, os bolcheviques assassinaram toda a família.
A residência principal do czar Nicolau II (e de todos os czares anteriores a ele) era o Palácio de Inverno em São Petersburgo. Para terem uma ideia da dimensão do palácio, digo-vos apenas que tinha mais de 1500 quartos. Tinha também uma enorme garrafeira, possivelmente a maior do mundo na época. O valor estimado da adega era de 4 milhões de euros (qualquer coisa como 70 milhões de euros!!! nos dias que correm). E que vinhos estavam dentro da garrafeira? O Château D’Yquem de 1847, quase todos os vintages de Roderer’s Cristal Champagne e Madeira, o vinho favorito dos Czares. Deixo à vossa imaginação o que mais lá haveria.
E o condicional é, infelizmente, o tempo verbal correcto. Em Outubro de 1917, Lenine ordenou um ataque ao Palácio, e como seria de prever a garrafeira foi descoberta. Durante quase um mês (um mês!!!), os soldados partiram, beberam e saquearam dezenas de milhares de garrafas. Mais tarde, começaram a vender vinho e vodka para a população do lado de fora do palácio, o que significava que haviam pessoas bêbadas dentro e fora do palácio. Até que um dia os bolcheviques impuseram (finalmente) a lei marcial para restaurar a ordem em São Petersburgo. Mas o que realmente parou esta orgia vínica? O néctar de Baco ter acabado. E foi assim que São Petersburgo, na manhã seguinte, acordou com a maior ressaca da história.
O vinho Madeira, mais de um século depois, viria a ser de novo protagonista, de uma nova invasão a um palácio, por parte de soldados enófilos, na sua busca incessante por mais um copo de vinho ;) Estou-vos a falar, como é óbvio, do Christmas Wine Experience 2019 que decorreu no The Yeatman Hotel. Pelo 9º ano consecutivo, o hotel vínico de luxo abriu as suas portas para dar início ao calendário de celebrações, com mais de 200 vinhos especiais em prova e à prova ... de ataques bolcheviques ;)
Mais de 100 produtores, de todas as regiões do país, alinharam-se pelas áreas comuns do hotel para apresentarem dois dos seus melhores vinhos para o Natal. A ideia foi a de encontrar os pares perfeitos para acompanhar os pratos típicos da quadra, do tradicional bacalhau ao peru, passando pelas sobremesas da época. Aos melhores vinhos juntaram-se uma selecção de queijos, enchidos e prova de azeites portugueses, que completaram a experiência.
Como já vem sendo habitual, houve ainda um Bazar de Natal com uma selecção de marcas portuguesas e produtos artesanais, entre os quais acessórios para vinho, jóias de autor, sabonetes perfumados, bombons, entre outros. O nível dos vinhos, esse, mais uma vez e fazendo jus ao evento, esteve muito alto. O Sem Igual Bruto Natural 2015 destacou-se entre os espumantes (25€, 89 pts.) com aromas de maçã verde, lima, marmelo, salicórnia, pão, acidez viva, mineralidade (granito molhado), crocância e secura.
Nos brancos retive o limão, resina, noz-moscada, frescura, untuosidade e complexidade do Quinta Mendes Pereira Encruzado Malvasia Fina Reserva 2015 (16€, 85 pts.) e a compota de laranja, lima confitada, flor de limoeiro, durabilidade, elegância, intensidade e evidente mineralidade (granito/calcário) do Cartuxa Vinho de Talha Branco 2016 (55€, 91 pts.).
Já nos tintos o Mouchão 2008 (65€, 91 pts.) exibia solenemente fruta preta (ameixa e amora), notas mentoladas, eucalipto, resina, cacau, baunilha, taninos arredondados, elegância e final de boca memorável.
A fruta vermelha (moragos, groselha e amora), baunilha, fumo, charuto, complexidade, acidez (xisto), finesse e taninos polidos do Três Bagos Grande Escolha 2009 Estágio Prolongado (60€, 94 pts.) deram-lhe a distinção de melhor tinto para o blogue.
Destaque ainda para a originalidade do eucalipto, bergamota, densidade, voluptuosidade e mineralidade química (grafite) do Quinta do Gradil Ganita 2015 (50€, 92 pts.); para a ameixa preta, azeitona preta, mirtilos, pimenta, tabaco, austeridade, "mau-feitio", frescura, densidade e secura do Villa Oliveira tinto 2014 Edição 125 Anos (85€, 91 pts.) e para a profundidade, maturação, elegância, mirtilos, ameixa, chocolate preto, pimenta, violetas, alfazema e uvas passas do Gloria Reynolds Cathedral 2004 (100€, 94 pts.).
Passando aos fortificados, o Adega de Favaios Colheita de 1989 (80€, 90 pts) foi uma agradável surpresa, muito por culpa dos seus aromas nobres a resina, noz, castanha, figos, compota de laranja, cera, untuosidade e persistência .
Recuando ainda mais no ano, adorei o o Messias Colheita 1967 (200€, 95 pts), carregado de noz-moscada, pimenta branca, casca de laranja, cravinho, compota de pêssego, baunilha, complexidade, elegância, enorme duração e alma sublime.
Gostei ainda da assertividade do Graham's Single Harvest Tawny 1994 (125€, 95 pts) que traja uma sedutora e densa cor âmbar, e que se mostrou muito complexo: com mel, caramelo, especiarias, flores silvestres, mirtilos, figos secos, nozes e café. Termina delicado, longo e equilibrado.
Nos Porto vintages, o evento permitiu-me provar um dos poucos de 2017 que ainda me faltavam conhecer, o Taylor's Vintage 2017 (120€, 98 pts).
É um vinho grandioso com fruta aveludada e quase em compota (amora preta, ameixa vermelha e do bosque), taninos finos, mineralidade (grafite), notas florais (violetas, esteva e laranjeira), sous-bois, requinte, complexidade, equilíbrio, e originalidade. Ainda bem que me ofereceram uma garrafa no Natal ;)
Mudando o perfil dos vintages, de um clássico e novo, para um "single-quinta" e já com alguma evolução, vou-vos falar do Ramos Pinto Quinta da Ervamoira Vintage 1994 (100€, 92 pts) com a sua "decadência nobre" que emana notas mentoladas, couro, resina, pimenta preta, café, tabaco, cacau e ainda alguma fruta (ameixa vermelha, groselha, noz).
Para último, o destaque vínico desse dia e a justificação da escolha da revolução bolchevique para introduzir esta publicação, o Barbeito Malvasia 40 Anos – Vinho do Reitor (400€, 98 pts). Para a sua criação fora seleccionados os melhores vinhos da casta Malvasia envelhecidos nos armazéns da Barbeito ao longo dos últimos 40 anos, pelo método tradicional de Canteiro, aos quais foram adicionados outros ainda muito mais velhos, alguns do tempo do czar Nicolau II.
O resultado originou um bouquet extraordinário com deliciosos figos secos, ameixa confitada (quase queimada), cedro, eucalipto, sultanas, tabaco, cacau, canela, iodo e farmácia. O final de boca picante, salino, fresco e interminável ainda não me saiu da cabeça. É por causa de vinhos como este que as revoluções valem a pena!!! Cravos? Com cravos não se fazem vinho ;)
Guilherme significa “protector decidido” ou “protector corajoso”. O nome Guilherme tem origem no nome alemão Willahelm, composto pela união dos elementos will, vilja, wailja, que quer dizer “vontade, desejo”, e helm, hilms, que quer dizer “protecção, capacete”. Assim, Guilherme significa “protector decidido" ou "protector corajoso”.
Este foi o primeiro evento vínico que o meu filho, Guilherme, me acompanhou. O meu desejo, vontade e motivação é que um dia mais tarde, possamos provar vinhos como este e participar em celebrações com esta. Vontade essa que irei proteger com todo o carinho.
Até para o ano, no sítio do costume ;)