G Restaurant Pousada de Bragança | Se Miguel Torga cozinhasse um Reino Maravilhoso
"Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite.... Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: - «Entre quem é!» Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo." Miguel Torga
"Um Reino Maravilhoso (Trás os Montes)" é um belo texto, da autoria de Adolfo Rocha, mais conhecido pelo seu pseudónimo, Miguel Torga, escritor nascido em S. Martinho de Anta, perto de Vila Real, a 12 de Agosto de 1907. Homem de mil e uma artes, fez ficção, foi poeta, contou contos, aventurou-se pelo teatro e exerceu medicina.Torga, assombrado quer pelas dificuldades que passou na sua juventude, quer pela vida dura dos seus conterrâneos, derramou este texto com o objectivo de evocar e caracterizar o seu berço, a região transmontana, focando nas suas riquezas e pobrezas, lembrando as suas gentes, hábitos, comportamentos, costumes e o seu modo de ver e de estar no mundo.
Esta figura maior do século XX, que nas suas próprias palavras se definia como um homem alto, de nariz longo e com perfil de contrabandista espanhol (por causa da boina basca que usava), era um apaixonado pela gastronomia transmontana, postulando que comer é cultura e um acto social, algo que transborda o imaterial assumindo-se quase como uma comunhão, algo transcendente, que roçava quase o religioso.
O acto de partilhar uma refeição é muito maior que aquilo que possamos inicialmente pensar pois permite-nos reunir afectos entre os que amamos, conviver comprometidamente numa mesa, multiplicar alegrias e dividir tristezas. Através dele podemos partilhar o pão, comentar os sabores, provar o vinho e discutir alguns dissabores. Torga também era um amante de vinho. Narram algumas crónicas que Torga tinha à entrada da sua casa uma garrafa de Porto e que ficava particularmente chateado quando alguém não o saboreava, bebendo-o de um só trago.
Foi com esta ideia do "comer Torguiano" que percorremos os 200 km que separam Guimarães e Bragança, para conhecer o G Restaurante da Pousada de Bragança. A primeira vez que o fizemos foi em Fevereiro do ano passado para celebramos o dia de S. Valentim. Quando ao jantar provamos as boas vindas do Chefe, uma Bola de Berlim, com recheio de queijo Terrincho e presunto, reservamos logo mesa para o dia seguinte e agendámos uma visita lá mais para o final do ano, com o blogue.
Esta história é sobre essa mais recente visita. A bola fez de novo parte do menu. Untuosidade, riqueza, intensidade e durabilidade no sabor, alicerçado numa textura elegante, num equilíbrio no palato e complexidade de sensações. Os citrinos, noz, avelã, pão torrado e mineralidade do Montes Ermos Espumante Bruto 2016 (7€, 83 pts.) foram um excelente complemento.
Ainda nos aperitivos, o Ovo a baixa temperatura com zimbro de rosé conciliou harmoniosamente o ovo e o rosé, introduzindo uma inesperada "crocância", aromas delicados na espuma pincelados por notas vegetais das folhas de aipo, sendo tudo isto potenciado pela maçã verde, lavanda, tosta, vegetal picante, bom corpo e frescura inebriante do Desnível Alvarinho Reserva 2018 (10€, 84 pts.).
Com a Ostra surgiram as notas citrinas (lima), suco marítimo e voluptuosidade salgada. Um prato muito fresco, subtilmente mineral e de sabor airoso e levemente amanteigado.
O Santiaguinho, rabo de boi, espargos e courgette é um Surf and Turf com alma transmontana, com o marisco muito rico e com uma textura perfeita, levemente al dente, conciliado com uma orientalidade surpreendente da espuma e contrastando com a untuosidade, vegetal adocicado e intensidade do rabo de boi. Um belo par, Mar e Terra, ponderado, harmonioso e equilibrado, que dançou no palato ao som da estrutura e acidez do Valle Madruga Gouveio-Malvasia Fina-Fernão Pires 2016 (6€, 82 pts.) e respectivas notas alegres a rosas, flor de laranjeira, pêssego, tangerina e cera. Seguiu-se o Cantaril com cevadinha, citrinos e gambas, muito complexo, fino, saboroso, equilibrado, estando a carne do peixe bem suave, firme e húmida.
Há ainda o sabor surpreendente a ostra trazido por uma folha marítima (uma espécie de alga), o sabor único, limpo e distinto das gambas que em conjunto provocam uma explosão de texturas, influências e sabores, com o poder de nos transportar para o mar ... em Bragança ;)
Como na altura a Clarisse estava grávida do Guilherme, o Chefe Óscar Geadas fez umas alterações no prato dela, incluindo a excentricidade da trufa, a voluptuosidade dos pós, a delicadeza dos purés, a "crocância" fumada das "borboletas" e explosões de caviar resultantes das folhas de Nasturtium.
Nas carnes, começamos com o Veado, trufa, jus de carne e mirtilos. O veado tinha um sabor pleno e intenso, que se derretia na boca, solidificando, mais tarde, na nossa memória. Havia doce do molho, havia o salgado das folhas, havia a untuosidade da cevada, havia acidez dos mirtilos, havia a intensidade da trufa, havia a densidade da redução de vinho com o jus da carne, e havia também o sabor generoso do risoto de cevada.
Todos eles enobreceram um prato que foi uma lição de equilíbrio, de aromas, de sabores e de cores. Este foi, o melhor prato de veado que provei até hoje.
Como o veado estava mal passado, a Clarisse provou Vaca cozinhada a baixa temperatura, rica, saborosa e subtilmente exótica, mas também, muito leve e com pinceladas de tradição.
Ambos os pratos de carne foram harmonizados com a ameixa vermelha, cereja, cacau, secura e ligeira adstrigência do Ribeira do Corso Vinho Tinto de Trás-os-Montes Biológico 2012 (10 €, 87 pts.).
A Baunilha, Framboesa, Figos e avelã e respectiva acidez, doçura e texturas contrastantes serviu como pré-sobremesa, preparando o palato para o que seguiria: Coco com granizado de chã de ervas e sorvete de citrinos e Chocolate, toranja e gelado de citrinos.
Um jogo de texturas, contrastes (doçura e adstrigência, acidez e secura) unidos pelas notas a citrinos e conjugações surpreendentes, que nos permitiu perceber que toda a cozinha do G Restaurante se baseia na simbiose equilibrada entre a matéria-prima, principalmente local, e o conhecimento, técnica, apresentação requintada e originalidade intimamente ligada às tradições transmontanas do Chefe Óscar.
Há, aqui, um respeito enorme, mais que respeito, há um compromisso com o sabor, com as texturas e todas as particularidades inatas dos produtos que os tornam únicos.
Há ainda uma perfeição na execução técnica, nos tempos de preparação, nas quantidades e na conciliação de sabores/texturas, sem artifícios ou ilusões, mas também sem falsas-modéstias.
Aqui encontramos pratos que contam histórias, cheios de sabor, intensos, mas sem excessos de untuosidade, tudo no ponto certo: que cada ingrediente potencializa, mas nunca se sobrepõe ao "bouquet" harmonioso de cada prato.
Importa dizer que o G Restaurante se situa na Pousada São Bartolomeu de Bragança, um empreendimento único na região, projectado pelo arquitecto José Carlos Loureiro, nos finais dos anos 50, numa simbiose quase perfeita com a natureza, com a paisagem urbana e com uma vista incrível para o centro histórico e respectivo Castelo.
O serviço, quer no restaurante, quer no hotel, mais que profissional, personalizado e próximo ... é amigo, faz-nos sentir em nossa casa. Creio que existem poucos espaços como este, e talvez menos pessoas ainda como a família que o gere. "Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo." ;)
Deixámos para trás, já com saudades, um autor que gosta do que é português, do que é autêntico, um cultor das palavras, dos sabores e das memórias transmontanas. Ponderado e assertivo, exibe com orgulho, uma ligação ao mundo rural que o viu nascer. Poderíamos estar a falar tanto de Miguel Torga, como do Chefe Óscar Gonçalves, porque se Miguel Torga cozinhasse um Reino Maravilhoso, não andaria muito longe deste menu ;)
Muito obrigado por nos terem recebido na vossa casa, e por não nos terem dado "apenas" a vossa comida, com ela trouxemos também uma parte bonita do vosso coração abnegadamente transmontano.