"O mundo muito pouco atentará, e muito pouco recordará o que aqui dissermos, mas não poderá, jamais, esquecer o que eles aqui fizeram." Abraham Lincoln
O discurso do qual retirei a frase de acima foi feito no local de uma das mais sangrentas batalhas da guerra civil americana. Gettysburg é a cidade que deu nome ao discurso, que é tido por muitos como o melhor discurso alguma vez feito .... e um dos momentos icónicos de Abraham Lincoln. O discurso que pode ser visto online (link) realizado a 12 de Novembro de 1863 é um dos maiores legados do presidente Lincoln.
Quatro meses antes, 46.000 soldados de ambos os lados da Guerra Civil tinham sido mortos ou feridos na Batalha de Gettysburg, na Pensilvânia. As 273 palavras proferidas por Lincoln na cerimónia oficial de consagração do Cemitério Nacional apelaram aos princípios fundamentais da Declaração de Independência e aos ideais da União - "um governo do povo, pelo povo, para o povo".
Mas porquê falar de Lincoln passados 157 anos? A resposta poderia ser simples, nos tempos que correm, faz falta um líder carismático que proclame a ideia de a unidade dos estados estar intimamente relacionada com a defesa das suas diferenças, a ideia de que, apesar de sermos todos diferentes, só unidos e em conjunto podemos enfrentar adversários sanguinários. No combate a este vírus, a Europa, e arrisco-me mesmo a dizer, todo o mundo, necessita de ter esta visão Lincolniana dos estados, da vida e dos estados da vida.
A sua grande conquista, dizem os historiadores, foi a sua capacidade de motivar e mobilizar uma nação, apelando aos seus melhores ideais, enquanto agia "sem malícia para nenhuma cor, credo ou raça" na busca de uma sociedade mais perfeita, mais justa e mais duradoura. Nunca nenhum presidente da história americana enfrentou uma batalha tão grande (mesmo comparado com a que vivemos agora) e nenhum presidente conseguiu tanto em tão pouco tempo.
Mas como prefiro as respostas mais complicadas e menos óbvias, escolhi Abraham Lincoln para ilustrar historicamente esta publicação, porque para além de ser o meu político favorito e uma das personagens históricas que mais me fascina, Lincoln tinha também uma relação muito peculiar com a felicidade à mesa, entre amigos e copos de vinho.
Seria difícil escolhermos um anfitrião mais abenegado: alguns documentos históricos mostram que, em 1861, os seus jantares entre amigos e visitas de estado incluíam seis copos de vinho diferentes, cada um para acompanhar cada prato da refeição. A esta relação próxima com o álcool não será de estranhar o facto de Lincoln ter crescido no Kentucky, junto destilarias e produtores de vinho.
Por último, o discurso de Gettysburg foi feito em 1863, o mesmo ano do vinho mais antigo que tive o prazer, honra e privilégio de provar na prova "Vinhos do Porto Ferreira Vintage vertical 1863-2017" do Porto Extravaganza 2020, "Vinhos Generosos de Portugal".
O organizador deste evento no Palácio Hotel Seteais, em Sintra, é Paulo Cruz (Bar do Binho) que o apelida “do mais famoso evento de vinhos generosos” e, aqui para nós, não está muito longe da verdade ;) Conforto, um serviço exemplar, num espaço super requintado e numa prova com tempo e sem pressas, são marcas indeléveis do compromisso com a excelência que por lá se promove.
A dobrar cada esquina dessa viagem, inédita e exclusiva, ao passado esteve Luis Sottomayor, enólogo que dirige a equipa de enologia da Casa Ferreirinha e de todas as marcas de Vinho do Porto da Sogrape Vinhos desde 1989, ano que entrou na equipa de enologia de Ferreirinha, liderada por mestre Fernando Nicolau de Almeida.
Começamos com o Ferreira Vintage 2017 Quinta do Porto (90€, 95 pts.). Um Ferreira não muito Ferreira, mais ao estilo Sandeman, com mais austeridade nos taninos, estrutura e volume. É muito denso e concentrado de aromas, com anis, alcaçuz, violetas, torga, resina e chocolate preto. Na boca mostra uma boa acidez, intensidade e equilíbrio.
Com o Ferreira Vintage Vinhas Velhas 2016 (175€, 99 pts.) voltamos ao perfil clássico dos Vintages Ferreira. Com notas arbustivas e minerais, é bastante mais fresco. No nariz é algo contido, quase parece um DOC Douro, exibindo ainda ameixa preta, cerejas, tabaco, cacau, pinho, caruma e pimenta preta. A acidez é bastante irrevirente e bem vincada e os taninos irrepreensíveis, que lhe dão um equilíbrio, complexidade e elegância incríveis. Um vinho tão bom quanto intrigante.
Do mesmo ano, surgiu o Ferreira Vintage 2016 (70€, 96 pts.) e os respectivos aromas balsâmicos, forte mineralidade (ardósia), ameixa preta, figos secos, sous-bois, torga, chocolate preto e alcaçuz. Acaba com profundidade, equilíbrio, elegância e intensidade. Pareceu-me mais doce e menos fresco que o seu "gémeo falso".
![Porto Extravaganza 2020 Porto Extravaganza 2020]()
Ao contrário do que seria esperar (devido à chamada adolescência dos vintages), o Ferreira Vintage 2011 (90€, 99 pts.) já estava bastante bebível. Tem fruta preta em passa (uva e cereja), cedro, aromas arbustivos (cedro e torga), caril e pimenta preta. Mas o que verdadeiramente surpreendeu foi a sua excelente acidez, impressionante e que lhe faz antever (não é novidade nenhuma até pelo ano) uma excelente evolução em garrafa. Aqui há uns tempos numa formação de prova, ensinaram-me a avaliar a acidez de um vinho, pelo número de gostas de saliva que o vinho nos provocava por debaixo da língua, imediatamente após a sua prova. Se nos outros haviam 6-9 gotas neste existiam 14!!! É muito longo e extremamente equilibrado.
O Ferreira Vintage 2007 (90€, 97 pts.) é um vinho especial até pelo facto de ter sido o primeiro cuja vinificação foi da inteira responsabilidade de Luis Sottomayor, uma vez que nessa colheita José Maria Soares Franco já não se encontrava na Ferreira. Emana ameixa vermelha compotada, mirtilos desidratados, figos secos, pimenta preta, torga, tabaco e cedro. Na boca os taninos são redondos mas vibrantes, mostra boa acidez e surge um inesperado manjericão que o faz crescer em complexidade. Achei-o menos exuberante que o 2011.
E a partir daqui, meus amigos, dobramos uma esquina que nos faz entrar noutro campeonato, o dos Vintages antigos que me fazem salivar ;) Começamos pelo Ferreira Vintage 1966 (200€, 97+ pts.), um dos míticos anos no Douro e em que a qualidade foi excepcional. Anis, pêra confitada, amora desidratada, couro, mentol, pimento, tijolo, iodo, farmácia, verniz e um vinagrinho inebriante. Dá uma prova super elegante, rica e complexa.
Seguiu-se o Ferreira Vintage 1952 (???€, 97+ pts.), do ano do 1º Barca Velha, brindou-nos com farmácia (mais evidente que o anterior), alcaçuz, figos secos, noz-moscada, notas terrosas, trufas, cedro, flor de limoeiro, mel, tabaco e resina. No palato é delicado, untuoso, equilibrado e com uma acidez que o faz parecer mais novo que o 1966.
Recuando mais duas décadas chegamos ao Ferreira Vintage 1934 (???€, 98+ pts.), outro ano extraordinário, com notas de café torrado, verniz, cereja seca, banana (???), baunilha, e uma acidez estupenda. Mais uma vez, na boca destaca-se o equilíbrio, a complexidade e a elegância.
Depois, um vinho que nem me atrevo a pontuar objectivamente, mas cuja experiência e subjectividade relacionada com a prova de um vinho tão antigo, tem certamente 100 pontos. Do Ferreira Vintage 1863 não se conhece o enólogo (na altura adegueiro), a origem das uvas, que quantidade de aguardente foi adicionada ou que castas o constituem, mas é um vinho enorme. Provavelmente feito com quantidades consideráveis de castas brancas carrega sobranceiramente biscoito, maçã verde (??!!??), passas, chocolate branco, amêndoas, charuto, café, iodo e farmácia. Um hino aos aromas terciários e que no palato se passeia com elegância, intensidade, equilíbrio e complexidade.
Em 1863 ainda a filoxera não nos tinha assolado, D. Antónia ainda se passeava pelo Douro e Abraham Lincoln fazia o discurso da união e dos momentos passados entre amigos e camaradas. O mundo muito pouco atentará, e muito pouco recordará o que aqui dissermos, mas não poderá, jamais, esquecer o que eles aqui fizeram e cujas memórias estão guardadas em garrafas como esta.
Obrigado Paulo pelo convite, esta prova entrou directamente para um dos dois primeiros lugares das minhas provas mais memoráveis, a par da vertical Barca Velha, também com a casa Ferreirinha e com Luis Sottomayor. Infelizmente, após o dia no qual esta prova ocorreu, surgiram os primeiros casos de COVID 19 em Portugal. Que esta seja apenas mais uma esquina, sombria, do tempo. Há que seguir um dos lemas da vida de Lincoln, o de construir degraus com as pedras em que tropeçamos, e que após este tempo difícil, os degraus que entretanto formos construindo nos tornem mais fortes. Termino com Saramago...
"Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceite e recusada - duzentos anos, se assim tiver de ser." José Saramago