Estrada Nacional 2 | Alicerces de um país tomado aos tragos (I)
"É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava... É preciso recomeçar a viagem. Sempre." José Saramago
Depois deste ano de confinamento e do "vá para fora cá dentro", poucos de vocês ainda não devem ter ouvido algo sobre a Estrada Nacional 2 (EN2), a estrada mais longa de Portugal, antiga Estrada Real e que liga Chaves, logo abaixo da fronteira norte do país, a Faro, na costa sul e que lhe permite, desta forma, beijar o mediterrâneo. No mundo, há apenas mais duas que cruzam toda a extensão de um país, sendo as outras a Route 66 nos EUA e a Ruta 40 na Argentina (depois da EN2 vai-nos "faltar apenas" a estrada argentina no currículo).
Construída/unida em 1945 a EN2 já foi a principal via de passagem pelo centro do país, ligando aldeias típicas, vilas e cidades antigas. Os seus 739 quilómetros serpenteiam por entre uma paisagem em constante mutação. Há montanhas, planícies, florestas, plantações de sobreiros, vinhas (e vinho ;)), cordilheiras rochosas, vales verdejantes e vastos reservatórios de água.
Dia 1:
Mas essa é a história que, provavelmente, já ouviram contar. A nossa vai ser um pouco diferente. Aproveitando o facto desta estrada nos permitir conhecer a diversidade de um país mais interior, vamos "usa-la" para descobrir os sítios, os aromas e os sabores que normalmente ficam fora das luzes dos holofotes (neste caso, dos faróis dos carros ;)).
Vamos na estrada, mas não nos vamos cingir a ela. Se houver qualquer coisa a descobrir a 30 minutos de viagem dela, com certeza que lá iremos. Este é um "guia de viagem", em nove etapas, para quem gosta de viajar devagar, sem pressas, para quem não consegue não sair do caminho e experimentar a vida quotidiana em cidades e vilas autênticas, longe das multidões de turistas e perto das pessoas que nela (dela) vivem. Esta é a nossa EN2, vivida, sentida, cheirada e provada...
Sendo nós de Guimarães, o primeiro dia ficou reservado para sair da antiga e imaculada capital do reino, berço da nação, alugar uma carrinha de 9 lugares (aconselhamos a Discover Cars, desaconselhando completamente, energeticamante e veemente a SurPrice) e chegar a Chaves. Para além dos 4 do costume, "levamos" connosco os nosso cunhados Luís e Sylvie, que por vezes se juntam a estas nossas aventuras.
O "toca a reunir" da viagem deu-se na novíssima Quinta Dona Adelaide Olive Nature Hotel & Spa, em Valpaços. Um local surpreendente (tenho a certeza que vão ouvir falar muito dele), pitoresco, agradável e com um restaurante ... impecável.
Com um ambiente clássico e simultaneamente confortável, onde os ex-libris são os fumeiros produzidos na Quinta este restaurante é verdadeiramente inesperado, pois promove uma combinação perfeita e deliciosa com os outros produtos da região, como o azeite e a castanha.
Fica a apenas 20 minutos do km0 da EN2 e com os seus jardins, piscinas, SPA e conforto é o local ideal para ultimar os últimos detalhes da viagem, guardando sempre espaço para algum inesperado ;)
Dia 2:
Depois de uns ovos mexidos com bacon e cogumelos acompanhados por um belo espumante da região (basicamente este inicio de dia manteve-se inalterado durante toda a viagem ;)) fizemos os primeiros quilómetros da EN2. Chaves tem um centro histórico encantador com edifícios medievais ao redor do castelo.
O muito fotografado marco do km 0 situa-se numa rotunda do outro lado da ponte romana que conduz a esse centro histórico. Há lá perto um bar, o km 0, que merece a visita e um brinde para marcar o inicio da viagem. São precisas 2-3h para visitarem Chaves.
As curvas seguintes levaram-nos a Vila Real e à bela região vinícola do Douro. Vila Real é uma cidade agradável e (ainda) não (demasiado) turística, com alguns edifícios históricos interessantes e uma atmosfera agradável e muitas lojas e restaurantes.
Há ainda uma catedral gótica, algo sombria, do século XV, a Igreja de São Domingos, que é um contraste arquitectónico gritante com a Igreja da São Pedro, iniciada no século XVI, mas com tratamento barroco completo no século XVIII. E claro, há ainda as avassaladoras vistas do Douro.
Paramos para almoçar no magnífico Cais da Villa. Um espaço de memória e modernidade edificado num espaço com valor histórico, elegância e conforto, resultado de uma reabilitação cuidada do centenário armazém ferroviário da estação de Vila Real.
Neste espaço de ambiente informal funciona o restaurante à carta, o wine bar com serviço de tapas e bifes, a garrafeira, uma esplanada (para os dias de sol) e um balcão a toda a largura, aberto sobre a cozinha do restaurante, que deixa antever um festival de sabores, texturas e cheiros.
A conduzir este comboio gastronómico está o Chefe Daniel Gomes que criou um menu de degustação sedutor, rico, complexo e que na sua heterogeneidade, no final, faz sentido nos sentidos que nos desperta.
Um menu fino, elegante, inteligente que, com certeza, orgulha Douro e a gastronomia da região transmontana. É harmonizado com a mestria do escanção Luís Ferreira, que retira o melhor de cada vinho para fazer sobressair os sabores no palato.
Não posso deixar de destacar a frescura e acidez viciante do Gaspacho de Tomate Coração de Boi, melancia e vieira braseada, a untuosidade requintada da Presa de Porco Bísaro com favas guisadas, couscus transmontanos e fumeiro tradicional e o "petit gâteau" com alma duriense materializado no Pão-de-ló à CAISDAVILLA, uma das melhores sobremesas deste ano.
Qualquer um destes pratos, merece por si só uma viagem, no entanto o Cais de Villa está apenas a 500 metros da EN2, é um crime não o visitar. Peçam uma garrafa do Quinta dos Lagares Reserva 2017, apaixonem-se pela cozinha de excelência que por lá se pratica e sejam felizes ;)
O final de tarde foi passado no Pena Park Hotel onde abraçamos a natureza. Um desvio de 15 minutos da EN2 (a partir de Vila Pouca de Aguiar) justificado pelo contexto autóctone do hotel, pelo seu conforto, pelos espaços de lazer, pelas piscinas reconfortantes e pelo bem estar induzido pelo SPA Natureness com vista fantástica para a floresta.
Como é óbvio e não poderia deixar de ser, a gula também teve algo a ver com esta escolha ;) O restaurante do hotel, o Biclaque com a assinatura do Chefe Vítor Miranda é super afamado pelas suas sobremesas.
A paisagem natural envolvente proporciona-nos um enquadramento perfeito para desfrutar dos sabores da região enquanto desfrutamos dos paladares mediterrânicos reinventados numa oferta gastronómica única e enriquecida pelos sabores de S. Tomé e Príncipe, como resultado de uma viagem recente do Chefe.
Apesar de todo o menu apresentar sentido, alma e tradição, destaco a frescura dos peixes (salmonete e robalo), a riqueza, sabor e originalidade na apresentação da alheira, a textura da suculenta Costela de Novilho maturada e claro, o alto nível das sobremesas:
Desde o Irashaimase (uma espécie de bola de Berlim gourmet e fina), até ao S. Tomé com espuma de baunilha de S. Tomé, calda da polpa de cacau, macarons com café arábica, base de chocolate a 100% e sementes de cacau (e mais uns 10 elementos... ;)) passando pela deliciosa e abastada Tarte sablé de framboesa com gelado de morango e pimentão e espuma de morango, tudo é genuinamente electrizante.
Dia 3:
Altura de retomar a EN2 em Vila Pouca de Aguiar e voltar ao Douro, fazendo uma paragem no Peso da Régua. Deu tempo para passearmos junto ao rio, atravessar a ponte pedonal e visitar o Museu do Douro, onde aprofundamos conhecimentos sobre a história fascinante desta região.
Este é um museu vivo, no qual também podemos treinar o nosso nariz com os diferentes aromas do vinho, fazer diversas provas que enriquecem o nosso palato e visitar um dos melhores e mais recentes restaurantes da região: A Companhia.
O Chefe Fábio Paiva orquestrou um menu com alma duriense e corpo de autor irreverente: Cogumelos recheados com queijo e alheira, Ovo mal cozido, Gambas ao molho de vinho do Porto, Bacalhau com crosta de amêndoa e castanha e o Medalhão de vitela com queijo da Serra são cartões de visita cujos nomes são aparentemente demasiado simples, para a complexidade, riqueza e originalidade daquilo que nos chega à mesa.
Um constante e camaleónico jogo de temperaturas, aromas, sabores e texturas que agrada tanto ao palato como ao intelecto ;)
As sobremesas, o Pastel de Leite-Creme com Gelado de Canela e a Mousse de Chocolate Branco e Morango com Tapioca e Pérolas de Limão, confirmaram aquilo que eu já achava, que o Fábio vai muito longe, é só dar tempo ao tempo e ... condições ao "rapaz" ;)
Depois de uma pausa para o café ( e para uns copitos de Porto, como não poderia deixar de ser ;)), foi tempo de dizer "até já" ao Douro e deixar as suas curvas, socalcos e vinhas património mundial para trás. Paragem seguinte, já do outro lado do rio: Lamego. Cidade famosa pelo santuário da Nossa Senhora dos Remédios no topo de uma colina.
Dá para ir de carro, mas é muito mais agradável a subida pela escadaria monumental. Há ainda inúmeros restaurantes, cafés e muitas mesas de piquenique ao longo da avenida principal. Se tiverem tempo dêem um salto ao Museu de Lamego, que fica situado no antigo Palácio do Bispo e que possui alguns azulejos maravilhosos (pintados à mão) e outras obras de arte notáveis. Tirem 3 horas para Lamego.
Regressando à EN2, o percurso entre Lamego e Vila Nova de Poiares torna-se mais sinuoso, demorado e pitoresco. Reservem duas horas para este percurso e aproveitem para irem conversando com a estrada.
Saímos da EN2 em Vila Nova de Poiares para visitar Gondramaz (viagem de 30 minutos), uma graciosa, inusitada e misteriosa aldeia de xisto, para mim, um dos pontos que recordo com mais saudade da viagem.
Miguel Torga, em 1935, enquanto médico em Vila Nova de Poiares, retratou no seu diário o constrangimento que sentia aquando das visitas a Gondramaz, retratando a dureza do isolamento e da vida nesta altura, não só para quem lá vivia como, no seu caso, para quem as circunstâncias da vida levavaram a sentir a vida dura da serra.
Este é um retrato vivo do Portugal de há meio século. Precisam de 3 horas para se perderem no tempo e visitar a Cascata da Ribeira e o Penedo dos Corvos. De Gondramaz ao Hotel Parque Serra da Lousã, onde iríamos pernoitar são 15 minutos de carro. Tanto este hotel, como o da próxima noite (o Conimbriga Hotel do Paço) pertencem à Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional.
A fundação que possui ainda o Parque Biológico da Serra da Lousã, o restaurante Museu Da Chanfana e o Templo Ecuménico Universalista é uma Instituição Sem fins Lucrativos que apoia mulheres/mães em situação de pobreza, crianças “sem família“, jovens e adultos com deficiência ou doença mental, idosos doentes em fim de vida, refugiados e pessoas “sem abrigo”, fomentando um conceito de turismo com propósito onde todo o saldo positivo gerado é reinvestido na acção social da instituição.
No restaurante Museu Da Chanfana provei a melhor chanfana de sempre e um doce surpreendente: a nabada, uma espécie de chila feita com nabos, mais vegetal, adstringente, intensa, e claro, com um insólito travo a nabo.
Dia 4:
Depois de um dia animado como o anterior, demos um pouco de descanso à carrinha e começamos a desgastar mais as sapatilhas. Iniciamos com uma visita ao Parque Biológico da Serra da Lousã, com mais de 400 animais (águias, corujas, ursos-pardos, linces, lobos, raposas, javalis, mas também vários herbívoros como gamos, veados, corços e cabras) e onde nos é permitido conhecer, detalhadamente, a vida selvagem do nosso país.
Há ainda um museu, uma quinta pedagógica, visitas guiadas, um centro hípico e ao longo do percurso é possível descansar à sombra de castanheiros, carvalhos, medronheiros, entre outras espécies de flora existentes na matas e florestas circundantes.
Após 10 minutos de carro, chegamos ao Templo Ecuménico Universalista (sim, há uma pirâmide em Portugal ;)). Este é um sitio destinado à reflexão espiritual de pessoas de diferentes religiões, aberto a não crentes, promovendo valores fundamentais da humanidade e das religiões, como a Verdade, a Bondade e a Moral.
O Templo salienta ainda a tolerância e o respeito pelos que nos são diferentes, representando a criação da humanidade pelo Homo Sapiens, inventor da espiritualidade, da fraternidade e da busca da verdade.
Um sitio, para conversarmos, em silencio, com o nosso interior sobre a relação que temos com os outros e com as diferentes interpretações religiosas que existem do mundo. Para quem, como eu, gosta de ciência, também há umas coisas engraçadas a descobrir ;)
Como já vos disse anteriormente, a paragem seguinte foi o Conimbriga Hotel do Paço. Situada a poucos minutos das históricas ruínas de Conimbriga, do centro da histórica cidade universitária de Coimbra e das Aldeias de Xisto esta unidade é local único para desenvolver turismo histórico, de natureza e gastronómico.
Um hotel nobre, desde a romântica e singela escadaria em madeira, às salas com tetos altos, passando pelas peças de arte (quadros, tapeçarias e esculturas) e pelas grandes portadas com vista para o parque e para as árvores centenárias do jardim. Nesse jardim há ainda um piscina reconfortante rodeada por natureza e aristocracia.
No restaurante do hotel, o Gavius são servidos os mais deliciosos pratos da gastronomia regional, acompanhados por bons vinhos locais e um serviço acolhedor e qualificado (um obrigado especial ao Chefe de sala Carlos pelo carinho com que nos tratou).
O seu universo mágico aliado ao secular património arquitetónico transformaram este hotel numa lenda viva que completa uma oferta de excelência, assumindo-se, indelevelmente, como uma referência hoteleira incontornável na região.
Como a publicação já vai longa, fazemos aqui uma pausa nesta enriquecedora viagem. Parafraseando o celebre e saudoso José Saramago e completando a citação com que iniciei esta crónica, a viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam.
E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativas como esta. E para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já, com o resto da nossa história pela EN2, ainda esta semana ;)