Dona Berta | O outro crime do padre Amaro
"Oh senhor pároco! dizia ele a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabidela, faça favor! Essas codeazinhas de pão ensopadas no molho! Isso! isso! Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: - Não é lá por dizer, mas a cabidela hoje saiu-me boa!" Eça de Queiroz
Eça de Queiroz defendia que o carácter de um povo podia ser inferido pela maneira como comiam e bebiam. Um lombo preparado em Portugal, em França, ou Inglaterra, talvez faça compreender melhor as diferenças intelectuais destes três povos do que o estudo das suas literaturas, dizia ele. Pegando num pensamento de Jean Antherlme Brillat-Savarin (diz-me o que comes, dir-te-ei quem és), Eça completou-o relacionando parte do que somos com muito daquilo que comemos.
Nunca ninguém conseguiu usar a comida como ferramenta literária de uma forma tão rica quanto a de Eça. Iniciou este caminho literário-gastronómico com aquele que é o seu primeiro grande romance, «O crime do Padre Amaro». Quem não se recorda, por exemplo (não, não vou falar da Soraia Chaves ;)), do célebre jantar do abade de Cortegaça, oferecido por este aos seus colegas do clero, e no qual constava uma invenção ímpar do abade: a famosa cabidela, que fazia dele "um divino artista".
Jantar esse que finalizou com um vinho do Porto de 1815 e onde foi discutido a importância da comida e do vinho na cultura e na sociedade. A escrita de Eça nessa obra, também neste aspecto, é deliciosa. Quando, aparentemente, nos descreve um jantar, louva determinado prato e caracteriza certo vinho, vai paulatinamente, discretamente e subversivamente expondo a sua visão corrosiva e muito bem humorada do mundo que o rodeia.
Enquanto nos vamos apercebendo deste jogo Queirosiano, vamos simultaneamente ficando encantados com a descrição da mesa e quase que conseguimos compartilhar o prazer dos comensais ao saborearam a cabidela e vinhos que a acompanharam. A publicação de hoje tem exactamente a ver com isso: com comida, com vinhos, com as sensações/emoções que nos provocam (sozinhos ou harmonizados) e também com uma cabidela ... e com um outro crime do padre Amaro ;)
Os vinhos sobre os quais vos irei falar são os Dona Berta. Terroir, identidade, qualidade, exigência, tradição, dedicação e inovação são os princípios basilares desta casa. O projecto iniciou-se há cerca de 40 anos, quando Hernâni Verdelho promoveu a reconversão e beneficiação do seu património vitícola de vinhas velhas, seguido da plantação de vinhas novas, a maior parte das quais localizadas na Quinta do Carrenho (Vila Nova de Foz Coa), que se encontram implantadas em terrenos de encosta de média altitude, xistosos, abrigados e com excelente exposição solar.
Todo este trabalho tornou possível a existência de um complexo vitícola com cerca de 15 hectares e com excelentes características para a produção de vinhos, implantado num terroir específico e sui generis, classificado como património mundial pela UNESCO desde o ano 2001, onde cerca de metade são vinhas com mais de meio século.
Após o falecimento do Eng. Hernâni, no ano de 2011, a casa passou a ser gerida pelos seus Herdeiros – a esposa (Maria Fernanda Verdelho) e os filhos (Isabel Andrade e Pedro Verdelho), que continuaram este projecto com a mesma dedicação e amor do seu fundador. Foi a esposa que há uns anos me apresentou os vinhos Dona Berta, no Festival do Vinho do Douro Superior 2017.
Voltei a conversar com alguns deles há uma semanas, e é sobre essa conversa intimista que vos escreverei agora. Começando pelo Dona Berta Espumante Reserva Rabigato 2017 (21 €, 88 pts.), de bolha fina e persistente e de cor amarela citrina, exibe no nariz limonete, flor de laranjeira, brioche e uma forte mineralidade (xisto molhado).
A boca é elegante, fina, segura e bastante fresca. Precisa, apenas, de uns meses em garrafa para ganhar equilíbrio e largura. Tem tudo para ser grande ;) Acompanha muito bem um bolo de bolacha.
Para acompanhar a já anunciada cabidela (feita pela senhora minha sogra, uma divina artista nestas coisas da gastronomia tradicional) escolhi o Dona Berta Sousão Reserva 2015 (16.5 €, 91 pts.). De cor rubi escura, muito densa e profunda exibe no nariz mirtilos, chocolate preto, algumas violetas, pimenta preta e uma mineralidade quente (xisto partido).
No palato mostra uma acidez vibrante, boa intensidade e uns taninos ligeiramente adstringentes que não agridem mas enriquecem. Precisa de uns bons anos em garrafa para se expressar em todo o seu esplendor. Foi optimamente bem com o "exagero voluptuoso", intensidade e acidez da cabidela.
Para último e ao contrário do anterior, um vinho que está pronto a beber: o Dona Berta Vinha Centenária Reserva Tinto 2012 (38 €, 92 pts.). Rubi não muito denso no traje, carrega aromas de mirtilos, ameixa vermelha confitada, esteva, sous-bois, baunilha e alguma pedregosidade. O palato é polido, complexo, fino, equilibrado e fresco. É um vinho "tagarela" com o qual dá muito prazer conversar.
O outro crime do padre Amaro, para além do assassinato do próprio filho e da quebra do voto de celibato clerical com a sedutora Amélia, foi o de não ter combinado a bela cabidela do abade de Cortegaça com um Sousão como o que vos falei hoje, é que a ir para o inferno, que seja pelos motivos certos (os gula-eno-gastronómicos ;)).
Arroz de Cabidela:
-Refoguem num tacho com azeite uma cebola, 4 dentes de alho picados e uma folha de louro;
- Pelem o tomate (200g), piquem em pedaços pequenos e juntem ao refogado. Deixem cozinhar, mexendo de vez em quando até o tomate estar bem macio;
-Acrescente o frango, temperem com sal e pimenta e deixem cozinhar, com o tacho tapado, durante cerca de 10 minutos, sobre calor moderado;
- Adicionem água quente até cobrir o frango, voltem a tapar e deixe ferver suavemente durante mais 20 minutos. Acrescentem um pouco mais de água a ferver de modo a ficar com o triplo do volume do arroz. Rectifiquem o sal, se for necessário, e assim que a panela retomar fervura, coloquem o arroz. Mexam e tapem.
- Passados 10 minutos, acrescentem o sangue, previamente misturado com o vinagre (3-4 colheres de vinagre). Mexam bem e deixem ferver mais 1-2 minutos. Retirem do lume e sirvam de imediato.