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No meu Palato

No meu Palato

Dona Matilde Colheita Porto 2013 | O teu Porto a teu jeito

"Trago-te em mim, mesmo que chova no verão. Queres dizer sim, mas dizes não ... vamos fazer o que ainda não foi feito." Pedro Abrunhosa

Dona Matilde Porto 2013A história do vinho do Porto, começa em ... Inglaterra. ;) Como o Reino Unido não possuía as condições climatéricas adequadas para o cultivo da vinha, os seus cidadãos, normalmente, importavam vinho da França. Mas durante as guerras franco-britânicas (séculos XVII e XVIII) a Inglaterra boicotou o vinho francês de modo a tentar enfraquecer economicamente o inimigo. Havia então a necessidade de importar vinho de outro lugar...

Dona Matilde Porto 2013Naquela época, os vinhos portugueses eram sobretudo vinhos baratos, sem grande complexidade e, muitas vezes, sem a robustez que lhes permitisse uma longa viagem de barco até Inglaterra. Diz-se na tradição popular que o processo de fabricação do vinho do Porto foi inventado nessa altura, acidentalmente, por dois irmãos que fortificaram o vinho com aguardente vínica para manter sua vivacidade, fruta e qualidade durante tão desafiante viagem. 

Dona Matilde Porto 2013Deste modo o vinho ganhava alguns aromas provenientes do carvalho, mantinha uma fruta muito fresca e uma doçura genuína, passando também a exibir aquela pujança extra resultante da adição aguardente que os ingleses tanto gostavam. Este método foi aperfeiçoado por Portugueses e Ingleses nos séculos seguintes, e é também por isso que muitos Porto carregam nomes britânicos (Taylor, Croft, Graham's, Cockburn's, Dow's, entre muito outros).

Dona Matilde Porto 2013Deste trabalho conjunto resultaram 4 perfis de Porto distintos, muito genericamente: os Rubis (tintos) exibem uma cor profunda e incluem as categorias Vintage, Late Bottled Vintage, Crusted e Rubi, não passando mais de 3 anos em barrica; os Tawnys são envelhecidos em barricas por mais de 4 anos e usualmente são mais doces que os rubi e com sabores a frutos secos e caramelo; os Brancos são feitos com uvas brancas indígenas incluindo Rabigato, Viosinho, Gouveio e Malvasia; os Rosés são um estilo mais recente (e controverso) feito a partir de uvas tintas e com sabores a morango e caramelo.

Dona Matilde Porto 2013Nos Tawnys, as categorias superiores são os Tawny 10, 20, 30 e 40 anos ( são produzidos a partir da mistura de vinhos do Porto de diferentes anos e o número exibido no rótulo, que os distingue, representa apenas a média de idade desses vinhos) e os Colheita (produzidos a partir de um único ano, normalmente provenientes de lotes especiais e mantidos em barrica por um período mínimo de sete anos). 

Dona Matilde Porto 2013Normalmente, não são "lançados" muitos Colheita com apenas sete anos de envelhecimento em barrica, um bom exemplo deste estilo é o Dona Matilde Colheita Porto 2013 (88 pts., 34 €). Resultante de uvas colhidas nas vinhas de baixa altitude da quinta e de uma posterior selecção dos lotes com maior qualidade e envelhecidos em cascos (de 600 litros) com dezenas de anos, exibe um traje vermelho-romã aloirado e aromas deliciosos a fruta vermelha compotada (ameixa, morango e cereja), doce de amora silvestre, cassis, figos secos, chocolate, caramelo, baunilha e pinhão tostado. 

Dona Matilde Porto 2013Se  o deixarmos um pouco mais de tempo no copo surgem umas notas deliciosas a iodo, que o tornam muito complexo. Na boca é denso, longo, largo e com uma acidez muito equilibrada. Foi o parceiro ideal para um Fondant de Chocolate e cassis com gelado de baunilha e pimenta preta

Dona Matilde Porto 2013O número de aromas que lhe encontrei no nariz faz com que este vinho tenha uma alma muito própria, pois carrega a fruta intensa e pura dos Rubis e as notas deliciosas da madeira dos Tawnys. Algo que, nesta gama, ainda não havia sido feito com esta qualidade, parabéns!!!  Foi por isso que "roubei" umas frases ao grande Pedro Abrunhosa para caracterizar este Porto, um vinho feito a seu jeito. 

Fondant de Chocolate e cassis com gelado de baunilha e pimenta preta:

-Pré-aqueçam o forno a 180ºC e untem com manteiga 6 formas de queque. Polvilhem com chocolate em pó as paredes previamente barradas com manteiga e disponham as formas num tabuleiro de ir ao forno;

-Coloquem 90 g de manteiga e 100 g de chocolate (preto com mais de 70% de cacau) numa tigela que suporte temperaturas altas;

-Coloquem a tigela referida anteriormente numa panela de água quente (mas sem estar a ferver). Mexam frequentemente até que os ingredientes derretam e formem uma mistura aveludada. Retirem a tigela da panela e esperem até que arrefeça;

-Enquanto esperam que a tigela arrefeça, batam (usando uma batedeira eléctrica) numa tigela grande 2 ovos grandes, 2 gemas de ovos grandes e 50 g de açúcar em pó. Batam até esta mistura triplicar o volume inicial;

-Com cuidado incorporem na mistura anterior o preparado de chocolate e depois 20 g de farinha e 1-2 gotas de aroma de cassis. Distribuam esta mistura pelas formas;

-10 minutos antes de servirem coloquem o tabuleiro com as formas no forno por 7-8 minutos (este tempo depende do vosso forno e das formas que usarem, se for a primeira vez convém ir testando a partir dos 6 minutos);

-Sirvam com um gelado de baunilha e pimenta preta.

Vila Galé Braga | O berço segundo S. Marcos

"Tudo é pequeno e transitório neste mundo, excepto a humanidade, a cadeia ininterrupta, por onde as sucessivas gerações vão aprendendo, transmitindo e acrescentado a reliquia comum da civilização." José Latino Coelho 
 Vila Galé Collection Braga S. Marcos, o Evangelista, é o autor do primeiro evangelho escrito, o Evangelho de S. Marcos, que apareceu cerca de 30 anos após a crucificação de Jesus Cristo (no final do ano 60). É um santo historicamente importante, quer como escritor do Evangelho mais antigo, quer como santo padroeiro de Veneza. S. Marcos não foi um dos 12 apóstolos iniciais, mas fez parte do grupo mais alargado de 70 discípulos a quem Jesus pediu ajuda na divulgação da Sua palavra.

 Vila Galé Collection Braga A tradição cristã afirma que S. Marcos nasceu em Jerusalém e que foi um dos criados que serviu no casamento em Caná da Galileia, aquele em que Jesus Cristo transformou água em vinho (o primeiro sinal, pouco discutido, que Aquele "tipo" era mesmo porreiro ;)).

 Vila Galé Collection Braga Depois passou por Chipre, Éfeso e Roma onde ajudou S. Paulo a espalhar a sua fé, até que mais tarde fundou a Igreja cristã no Egipto, tornando-se bispo de Alexandria, um importante centro de comércio, cultura e poder político dos tempos antigos. S. Marcos morreu, violentamente, aos 54 anos, algures entre os anos 68 e 74, como mártir, no dia da Páscoa, durante o sacrifício da missa, tendo o seu corpo sido arrastado por uma parelha de cavalos pelas ruas de Alexandria, durante três dias, até desaparecer.

 Vila Galé Collection Braga Uns anos mais tarde, comerciantes venezianos provenientes de Alexandria, transportaram as relíquias do santo (objectos pessoais preservados para efeitos de veneração) no ano de 828, ficando a partir daí como padroeiro da cidade de Veneza. Há quem defenda que parte destas relíquias, foram sorrateiramente desviadas para Portugal, mais concretamente para Braga.

 Vila Galé Collection Braga

Na Igreja do Hospital também conhecida por Igreja de São Marcos, perto do altar mor, existe um sarcófago que se diz conter algumas das relíquias do evangelista S. Marcos trazidas para Braga, no século XI, pelo arcebispo Maurício Burdino, embora exista, para não variar, outra versão que defende que o responsável por este feito foi o cavaleiro templário D. Gualdim Pais, na segunda metade do século XII.

Vila Galé Collection Braga O certo é que no espaço onde existe nos dias de hoje a igreja de São Marcos e o hotel Vila Galé Collection Braga havia uma albergaria e convento da Ordem dos Templários. A partir de 1312 surgem alguns textos que referem a presença das relíquias de S. Marcos por aquelas bandas. Em 1508 os antigos edifícios são reconvertidos no Hospital S. Marcos de Braga por D. Diogo de Sousa.

Vila Galé Collection Braga Em 2011 o Hospital de S. Marcos é desocupado devido à inauguração de um novo hospital público na cidade dos arcebispos.  Felizmente, todo este legado de memórias, ganha nova vida em 2018 através do Vila Galé Collection Braga, hotel que é contiguo à igreja S. Marcos. No interior do hotel há um corredor que permite contemplar o interior da igreja e o altar mor, com as respectivas relíquias. 

Vila Galé Collection Braga A coabitação entre esse património histórico de valor incalculável, o extremo bom gosto na adição de detalhes contemporâneos, a serenidade dos espaços, o ambiente "tropical" da zona das piscinas e um serviço exemplar, fazem com que o Vila Galé Collection Braga seja muito especial e tenha uma alma muito própria, terrivelmente sedutora. 

Vila Galé Collection Braga Celebra, de forma muito bonita e autêntica, temas como a fundação de Portugal, a história dos arcebispos e a própria vida de D. Diogo de Sousa. Curiosamente, na suite em que ficámos (número 106), encostada à Capela de S. Bentinho (um local de grande devoção), crê-se que D. Diogo lá pernoitou. Todos os quartos do hotel são adornados por tons roxos relembrando os trajes dos arcebispos que foram dirigindo os destinos da arquidiocese da cidade, ao  longo dos últimos séculos.

Vila Galé Collection Braga O hotel contém ainda detalhes históricos fascinantes... Uma réplica da Cruz de Cristo utilizada na primeira missa celebrada no Brasil, uma tela funerária de homenagem a um escravo do tempo dos romanos e as placas de 1919 (terrivelmente actuais) em memória do pessoal hospitalar vítima de epidemias no exercício da profissão.

Vila Galé Collection Braga Há ainda "modernidades" óbvias e importantes, que fazem uma bela ponte com o passado, como as diversas salas de reunião, os tratamentos de spa,  o ginásio, a piscina interior aquecida, as piscinas exteriores (para adultos e crianças) com bar de apoio, para além de um parque infantil que é a alegria da pequenada. Onde antigamente se localizava a capela do hospital foi construída a adega Santa Vitória onde os vinhos são guardados e onde se podem celebrar jantares especiais. 

Vila Galé Collection Braga Foi ainda criado o bar Euforia e dois restaurantes. O Fundação, com serviço buffet, e o Bracara Augusta, à carta. Para mim este último, é, de longe, o melhor restaurante de Braga. Tivemos o prazer de jantar no claustro com jardim que serve de esplanada.

Vila Galé Collection Braga Iniciamos a degustação com uma Amuse-boucheBacalhau algarvio em cama de agrião com redução de vinagre balsâmico e azeitona desidratada. Marítimo, vegetal, untuoso, fresco e fumado. Teve o condão de despertar as diferentes zonas do palato para o que se seguiria...

Vila Galé Collection Braga O nosso Caldo Verde: É preparado na mesa, sendo os diferentes elementos, inicialmente separados, combinamos à vista dos comensais. Cada colher carregava todo o sabor do típico caldo português, desde a couve até à batata, passando pelo chouriço. 

Vila Galé Collection Braga Ao fecharmos os olhos não imaginamos que temos à frente uma versão gourmet e teatrilizada do caldo verde. Complexo, voluptuoso e intenso, o aroma que emanava daquele prato parecia saído de uma panela com o caldo a ser agitado enquanto era preparado.  

Vila Galé Collection Braga Os tentáculos do Polvo à Lagareiro, cozinhados no forno com grelos, alho e bom azeite estavam crocantes por fora, quase que levemente fumados, e por dentro gulosamente tenros e suculentos, uma delicia...

Vila Galé Collection Braga Seguiu-se o Naco de novilho com legumes grelhados e esmagada de batata que escondia um suco delicioso carregado de untuosidade, gosto e luxúria. Os acompanhamentos acrescentaram frescura, elegância, surpresa, texturas e largura aromática.

Vila Galé Collection Braga Um prato que termina com sabores verdes e da terra, num doce gordo quase floral, numa adstringência e numa voluptuosidade, que nos pincelaram o palato de uma forma muito agradável.

Vila Galé Collection Braga Nas sobremesas destaco o Crocante tépido de mexidos com redução de vinho do Porto (isto apesar do fondant de chocolate estar irrepreensível). Passeia-se na boca entre o quente e o frio, numa experiência glorifiada pela canela. É muito saboroso, bem pensado e estrategicamente ponderado, como uma roda-viva de sensações e texturas que celebra o final da refeição. 

Vila Galé Collection Braga Por tudo isto, é fácil perceber que o restaurante está assente no receituário tradicional português, mas com uma apresentação tão moderna quanto original. Uma cozinha de autor, que merece, por si só, uma visita.

Vila Galé Collection Braga Curiosamente, o edifício no qual durante 5 séculos, a maioria dos bracarenses teve o seu primeiro berço, adquiriu agora uma nova "cara", promovendo uma bela evocação de uma boa parte do legado histórico da cidade, num hotel que oferece, também, um berço para os turistas que a visitam. Isto sim, é uma relíquia ;) Se o Vila Galé Braga não é um bom exemplo do aproveitamento da iniciativa privada na gestão do património público abandonado, não sei o que será. Parabéns!!!

 

Herdade do Moinho Branco Antão Vaz 2018 | O mar que lhe traçou a estrada

"E tragam os lençóis de seda pois não sou mulher de usar os de algodão." Marilyn Monroe

Herdade do Moinho Branco A definição mais aceite de terroir pode ser resumida na forma como o meio ambiente da vinha ajuda a moldar a qualidade do vinho. Factores químicos como a composição dos solos, o seu aspecto, a sua drenagem, o tipo de clima e até mesmo o declive têm uma forte influência não só sobre o modo como a videira cresce mas também no tipo de uvas que estas produzem. O clima é obviamente um factor determinante na qualidade final do vinho, mas as diferenças organolépticas detectadas em vinhos produzidos em vinhas vizinhas, onde existe apenas uma pequena variação no tipo de solo (a Borgonha é um caso muito particular disto), mostra que o clima não é tudo. 

Herdade do Moinho Branco A segunda definição assume o terroir como resultado de uma espécie de "sabor local": quando um vinho, ano após ano, evidencia sentido de pertença a um determinado lugar. Isto vem trazer o factor humano para a ribalta, dado que as práticas tradicionais vão influenciar, evidentemente, o sabor do vinho. Uma terceira definição resulta do termo francês goût de terroir. Aplica-se quando conseguimos "provar" o terroir do vinho. 

Herdade do Moinho Branco Sendo um pouco mais rigoroso, esta expressão era usada apenas para descrever vinhos rústicos ou terrosos, e não era um termo normalmente usado para vinhos finos. Por último, e de modo, na minha opinião, redutor, o termo terroir pode ser utilizado para descrever geograficamente o local onde se encontra plantada a vinha, independentemente do vinho que produz, de quem o produz e como é produzido. Expressões como "este é um bom terroir" ou '"o terroir desta quinta é argila e daquela é calcário" resultam dessa visão limitada. 

Herdade do Moinho Branco Para mim, no entanto, a melhor definição é a do terroir ser uma espécie de estrada, construída simbioticamente pelo clima, pelo solo, pela flora, pelas técnicas e pelas pessoas de uma determinada região, que "força" um vinho a direccionar-se segundo um determinado perfil. Isto faz com que os vinhos, ano após ano, apesar de reflectirem as condições particulares de um determinado ano, possam manter uma "herança sensorial" que permanece inalterada, vindima após vindima. Um bom exemplo deste legado de aromas e sabores é o Herdade do Moinho Branco Antão Vaz 2018 (93 pts., 39.90 €).  

Herdade do Moinho Branco

Nascido à sombra da Serra do Mendro e influenciado pelas particularidades inigualáveis da região da Vidigueira (clima mediterrânico com grande influência Atlântica, assim como uma ligeira "continentalidade" no período Primavera-Verão), apresenta-se como um vinho branco de qualidade superior, feito a partir da casta Antão Vaz, ex libris e autóctone da região da Vidigueira. Um perfil único e diferente, extraído das vinhas velhas, que possuem uma concentração muito forte, mas também fruto de uma vinificação muito cuidada em barricas novas de carvalho francês de 500L. Este é, sem dúvida nenhuma, um belo terroir ;) 

Herdade do Moinho Branco De cor cristalina amarelo citrina exibe deliciosos aromas a flor de laranjeira, casca de laranja cristalizada, papaia, pimenta branca, caixa de tabaco e uma mineralidade assertiva (xisto molhado). No palato é denso e elegante, entrando  com uma acidez firme e vibrante, com uma textura  cremosa e crocante, e com uma (muito) subtil alma salina que me conquistou. Vai evoluir bem e por muito tempo em garrafa. Combinou na perfeição com uns Lombos de robalo, puré de batata doce e papaia, cogumelos confitados, chia e bróculos baby.

Herdade do Moinho Branco AntãoTive ainda o prazer de conversar um pouco com o rubi-límpido Herdade do Moinho Branco Alicante Bouschet 2015 (92 pts., 39.90 €). No nariz é denso e complexo com notas equilibradas a frutos silvestres, ameixa preta, mirtilos, café, melaço e alcaçuz. Na boca, e ao contrário do Antão Vaz, está prontíssimo a beber com taninos redondos, boa frescura, uma elegância envolta em lençóis de seda e uma mineralidade salina inebriante. 

Herdade do Moinho Branco Estes são vinhos sedosos cujo sabor e características únicas expressam de forma muito bonita as castas criteriosamente seleccionadas, o microclima da região de Vidigueira e a paixão de toda a equipa: o tal “terroir”, no qual o mar, apesar de longínquo, também teve uma palavra a dizer, ajudando a traçar a tal estrada, através de uma salinidade tão subtil quanto agradável e generosa. Parabéns pela originalidade, pela memória e pela qualidade.

 

 

Lombos de robalo, puré de batata doce e papaia, cogumelos confitados, chia e bróculos baby:

Le Monument Restaurant | A vontade que os ata ao leme

“Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas. Não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens vegetando num cantinho do mundo a vida inteira.” Mark Twain

Le Monument RestaurantNum mundo onde a "profissão de blogueiro de lifestyle e viagens" está muito em voga, com cada vez mais influencers, que de um modo ou de outro, se acham a última bolacha do pacote, e pensam que ditam as tendências do sector, não deixa de ser  irónico, o facto pouco conhecido, de que o livro de viagens mais vendido de sempre tem mais de ... 150 anos. Innocents Abroad de Mark Twain, que narra com humor corrosivo a viagem de Twain (e de um grupo de turistas americano) pela Europa e Palestina a bordo de um barco a vapor, o Quaker City, foi publicado pela primeira vez em 1869. 

Le Monument RestaurantO itinerário incluiu paragens na Exposição Mundial de Paris de 1867, viagens pelos Estados Papais até Roma e pelo Mar Negro até Odessa. Este guia em forma de novela foi o livro mais vendido das obras de Twain durante a sua vida, continuando, nos dias de hoje, a ser fonte de inspiração para viajantes. Além de entusiasmar, com doses colossais de wanderlust, gerações de fãs literários com as suas descrições muito particulares, o livro defende a ideia de que devemos viajar para expandirmos nossos próprios horizontes. 

Le Monument RestaurantMark Twain, o pai da literatura americana e indiscutivelmente o maior humorista da sua época, defendia a ideia que viajar abre a nossa mente para visões de mundo que só nos estão acessíveis se as experimentarmos no terreno. Curiosamente a ciência confirmou, já nesta década, esta tese.  Tive o prazer de me deparar com o Innocents Abroad no ínicio da pandemia, enquanto procurava absorver um conhecimento mais profundo de alguns clássicos. 

Le Monument RestaurantNa altura li as palavras, entendi o significado, continuei, achei genial a passagem que agora escolhi para adornar esta crónica, terminei a história, fechei o livro. Lição aprendida, venha outro livro. Só quando visitei mais recentemente o Le Monument Restaurant é que essas palavras vieram, de novo, à tona e me atingiram com uma compreensão tão profunda que me fizeram compreender, finalmente e completamente, o livro. Intolerante não sou, de ideias limitadas, também acho que não. No entanto, tenho os meus preconceitos, sejamos sinceros, todos temos os nossos. 

Le Monument RestaurantIsso torna-se particularmente importante quando tecemos opiniões ou "julgamos" outros povos. Viajar ajudou-me a perceber que via o mundo de forma, por vezes,  um pouco miópica. Algumas das coisas que considerava certas foram postas em causa, desafiadas e testadas. Conheci inúmeras pessoas com uma infinidade de ideias que diferiam das minhas, e isso é bom. Passei igualmente a ter uma visão sobre coisas que nunca preveria antes de viajar. Ao perceber o quão vasto o mundo realmente é, eu percebi o quão estreito eu realmente era. Essa lição estava também aprendida. 

Le Monument RestaurantA experiência de viajar para o outro lado do mundo para ver algo completamente diferente tem sido das experiências mais gratificantes da minha vida. Como é óbvio, nem todas as viagens correm bem e sem dificuldades. Muito pelo contrário, na verdade, estar fora da nossa área de conforto é imensamente desafiador e pode ser totalmente frustrante, e é nesses momentos de relativo desconforto que, se estivermos disposto a isso, podemos reflectir nos nossos preconceitos e sentimentos mais profundos. 

Le Monument RestaurantHá muito a ser dito sobre a vontade de ver o mundo com nossos próprios olhos, de testemunhar eventos à medida que eles se desenrolam, de viver hábitos e culturas de outros povos, em vez de, irónica e paradoxalmente, apenas ler sobre isso em livros. Fotos ou relatos escritos conseguem passar as emoções ... apenas até um certo ponto. Por exemplo, a magia e a beleza do Grand Canyon não podem ser replicadas nem sentidas através das palavras e imagens contidas num livro ou blogue, por muito bonitas que elas sejam (já passaram 7 anos do momento em que o visitei, e há coisas que continuam muito belas!!! :P).

Le Monument RestaurantOlhar para o horizonte e para suas profundezas é a única maneira de apreciar e sentir plenamente a magia, a imensidão e a maravilha que o Grand Canyon possui. Viajar permite-nos ter essa vista panorâmica, não só de lugares mas também de hábitos, sociedades e culturas, permitindo-nos adicionar novas camadas de compreensão aos nossos (pre)conceitos. Esta filosofia "Twainiana" da vida e das viagens, que nos permite ter uma visão mais ampla, mais abrangente e mais generosa, também se aplica à gastronomia. 

Le Monument RestaurantComer é um dos grandes prazeres da (minha) vida. E para os viajantes, é ainda mais do que isso. Quando viajamos, a comida não se trata apenas de uma necessidade básica ou até pura diversão. É cultura, é autenticidade, é experiência, é interacção com outros modos de olhar o mundo. É a vida da forma mais pura, (por vezes) simples (outras nem tanto), e emocionante. 

Le Monument RestaurantO contrário também acontece, no confinamento em que vivemos, a comida pode-nos fazer viajar. E é aqui que chegamos ao Le Monument Restaurant. Depois de vários anos no Le Restaurant do L'Hotel em Paris (onde conquistou uma estrela Michelin) e de passar dois anos a perceber, visitar e conhecer Portugal, o chefe Julien Montbabut reinventou-se para nos passar a contar, de forma muito bonita, as suas histórias, aventuras e descobertas através de um menu de 14 momentos.  

Le Monument RestaurantComeça com o reconfortante Sentir-se Português com pão de batata e oregãos e azeite exclusivo Le Monument Vale de Vasco, que antecede uma trilogia que nos remete para a origem e diversidade dos sabores: A descoberta dos produtos. Nela encontramos a frescura citrina, o sal e a untuosidade do Rolo de bacalhau fumado; o fumado, ligeira amargura e toque final doce da Alcachofra e alcaparras; e as notas herbáceas, riqueza aromática e diversidade de texturas da Tartelete de tomate e flores.

   Le Monument RestaurantDo Mar chegaram dois momentos, a Corvina selvagem, óleo de sésamo e azeda e a Sapateira, mostarda Savora e yuzu. O primeiro com notas terrosas (da beterraba), com a maresia do lingueirão, com a textura carnuda da corvina e com um jogo delicioso entre adstrigência, acidez, voluptuosidade e crocância.  O segundo é uma criação genial, muito complexa (quer nos sabores quer nas texturas) e que nos remete para a riqueza do marisco, para a acidez adocicada do yuzo e para a cremosidade da mostarda. O abacate coloca todas estas sensações a dançarem "no mesmo tom" no nosso palato. Foi a segunda vez que provei este prato e pela segunda vez fiquei maravilhado ;) 

Le Monument RestaurantParagem seguinte, uma Aula de Surf, com Água de sabor marítimo, marisco e algas. Servida numa garrafa de vidro, este momento é construído através da combinação, bastante original, de uma  infusão de algas de Aveiro, berbigão, ouriço do mar e ulva. O resultado transporta-nos para a beira-mar, numa manhã de tempestade.  Quase que nos apetece retirar a água do mar do nariz :P

Le Monument RestaurantDos Açores, chegou a Curgete, anchovas e queijo da Ilha. O queijo com cura de 24 meses, tem o seu sabor realçado pela pungênia da anchova e subtileza da curgete. Mais uma vez, fui movido através da comida para o mar, mais concretamente para os dias de férias de Verão, em que esperava a chegada dos barcos de pesca no porto da Póvoa do Varzim.   

Le Monument RestaurantO meu mercado favorito - Matosinhos trouxe Lulas salteadas, puré de aipo e tinta de choco. Uma dicotomia entre terra e mar muito engraçada, fresca e gulosa.  Com o Ex-líbris chegou o Lavagante azul cozido em rama de videira, alface e molho de vinho tinto do Douro, defumado na hora do serviço na mesa e que carregava ... tudo: mar, terra, originalidade, dedicação ... e sabor, muito sabor. É assente em produtos locais e sazonais com a intenção de promover inesperadas conjugações e contrastes de sabores que no final se equilibram e ficam agarrados aos rochedos das nossas memórias. 

Le Monument RestaurantA harmonização com o tinto Horácio Simões Reserva Vinhas Velhas Castelão 2017 tão certeira quanto inusitada, potenciada pela adstringênia, groselha e bom volume de boca,  é uma marca indelével da excelência que por ali se pratica.  D'A Terra surgiu outro prato grandioso e o melhor momento enogastronómico do ano: Gema de ovo confitada, cogumelos selvagens e caldo de cerveja preta acompanhado pelo Quinta do Cardo Vinha Castelo Tinta Roriz 2014

Le Monument RestaurantA cremosidade do ovo, o amargo adocicado do caldo, o umami dos cogumelos e todas as sinopses entre todos os elementos do prato foram engrandecidos pela resina, pinho, sous-bois e notas balsâmicas do vinho. Vinho esse, cuja frescura ajudou a equilibrar o "exagero voluptuosamente feliz e guloso" desta Terra. Este é um daqueles pratos que não deveria sair da carta, devido à sua mestria e execução exemplar.

Le Monument RestaurantSeguiu-se um salto a Trás-os-Montes através do Cabrito de Trás-os-Montes, beringela e molho de carne com segurelha. O cabrito estava carregado de sabor, intensidade, tenrura e suculência. O fumado do puré de beringela conjugado com a concentração e perfume a lavanda-menta do molho, foram a guarda de honra perfeita deste delicioso prato. 

Le Monument RestaurantDepois da Mistura de Culturas com Salada do Douro, queijo amanteigado e vinagre de framboesa, uma espécie de corta-sabores gourmet e de uma Água revitalizante, era chegada a altura da Mistura de culturas através da leveza delicada do Pêssego e groselha da orientalidade suave e jogo de texturas do Chocolate, café e noz pecã e da acidez adocicadamente graciosa e alma vínica das caves de Gaia da Cereja e Vinho do Porto.

Le Monument RestaurantAssim terminou, esta sublime viagem gourmet que combinou diversos sabores, texturas, aromas, produtos e produtores regionais, viagens, inspirações, estórias, contrastes e surpresas. Houve ainda uma bonita invocação das tradições gastronómicas lusitanas alicerçada no melhor savoir-faire da cozinha francesa. Um menu em que cada prato conta uma história e que no final nos deixa com algo bem característico do nosso país ... a saudade. Destaque ainda para o serviço exemplar, com chancela Diogo Matos, para a atmosfera ecléctica do restaurante e para a excelente harmonização vínica proposta pelo Marco Pereira. Há ali muita vontade de fazer bem, de fazer diferente, de fazer com requinte e de fazer com orgulho. 

Le Monument RestaurantA vontade, que me ata ao leme é uma das expressões mais bonitas que podemos encontrar num dos poemas mais conhecidos da Mensagem de Fernando Pessoa. Aquando das suas duas primeiras publicações este poema chamava-se "O Morcego" e referia "o morcego que está no fim do mar..." mas o ser simbólico foi dignificado pela posterior transformação em mostrengo, na revisão anterior à edição de A Mensagem em livro. O poema simboliza, claro está, o medo do desconhecido (o "mostrengo") que os navegadores portugueses tiveram que vencer enquanto viajavam e davam novos mundos ao mundo.

Le Monument RestaurantQuer o Diogo, quer o Marco, quer o Chefe Julien poderiam permanecer na sua zona de conforto, a viver à sombra do passado, com reconhecimento, prémios e estabilidade, vegetando num cantinho (seguro) do mundo a vida inteira. Arriscaram tudo para se entregarem, de corpo e alma, a um novo projecto, a um novo leme, a uma outra pele, que num contexto não-pandémico teria tudo para ser um sucesso, levando a uma "casa cheia", diariamente. Não é isso, que, infelizmente, está a acontecer.

Le Monument RestaurantNessa procura por uma visão mais ampla, abrangente e generosa da gastronomia encontraram o monstrengo do nosso século. Sei que são pessoas cuja vontade, cujo amor, cujo comprometimento, cuja dedicação não os vai fazer largar esse leme e que os vai levar, com certeza, a navegar em segurança e sem medo porque, afinal, a tormenta ignota que vivemos, vai ser "apenas" uma tempestade de má memória, que se transformará numa Boa Esperança.

Le Monument RestaurantNão sei se é neste ano que vão ter, finalmente, uma "estrelinha" no horizonte, sei que pelo menos andaram lá perto e que sem dúvida nenhuma, e mais importante que tudo, a merecem. Esta bonita viagem através dos sabores é não só uma extraordinária, surpreendente, inovadora e epifânica experiência gastronómica, mas também uma das melhores ideias que tenho visto nos últimos tempos neste sector. Parabéns.

Força amigos ;)

 

Vinhos XXVI Talhas | O carpinteiro que parou o tempo

"Escava dentro de ti. É lá que está a fonte do bem, e esta pode jorrar continuamente, se escavares sempre. Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de ruídos, que na alma." Marco Aurélio

Mestre DanielO vinho cresceu sempre de mãos dadas com o barro, ao longo de milénios. Este sedimento facilmente maleável, existente em todos os continentes e ao alcance de quase todos os povos, aliou-se, umbilicalmente ao sucesso do elixir dos deuses. Essa união, virtuosa, dura até os dias de hoje, dando origem a vinhos que procuram a originalidade olhando para o passado, com olhos postos no futuro. Vinhos que procuram encontrar a sua máxima expressão mediterrânica na conjugação entre a argila e a uva. Mas como surgiu este "casamento feliz"?

Mestre DanielA história diz-nos que os primeiros reservatórios vínicos foram construídos em barro no Neolítico. Naquele preciso (e precioso) momento em que os humanos começaram a domesticar animais, cultivar plantas e a estabelecer-se de forma mais ou menos estável nas primeiras aldeias, vilas e cidades. O acaso, ou talvez mais que isso, fez com que esses reservatórios de barro fossem encontrados na Geórgia, não muito longe do Monte Ararat, onde, segundo a Bíblia, Noé, afortunadamente, após o dilúvio, plantou a primeira vinha.

Mestre DanielEm Gora, a sul do Cáucaso, actual Geórgia, investigadores da Universidade da Pensilvânia encontraram vestígios de vinho (até hoje os mais antigos), em potes de barro de há 8.000 anos. Esses recipientes, com um metro de altura e com capacidade para cerca de 300 litros, teriam sido utilizados no processo de fermentação das uvas cultivadas perto dos assentamentos onde as pessoas de então viviam. O vinho, usado como remédio, como alucinogénio ou simplesmente como alimento, espalhou-se mais tarde por todo o Oriente.

Mestre DanielO barro, especialmente na forma de ânfora, devido à sua resistência mecânica, impermeabilidade e facilidade de transportar/esvaziar/armazenar tornaram-no na forma padronizada do mundo antigo transportar vinho. Esses vasos de cerâmica revestidos de cera (cera de pinho e de abelha eram muito comuns) foram gradualmente adoptados por quase todas as civilizações bebedoras/produtoras de vinho, nas regiões do Mediterrâneo e da Mesopotâmia, atingindo o pico de utilização na Grécia e Roma antigas, onde o vinho se começou a tornar naquilo que é hoje.

Mestre DanielEm Portugal a ânfora é conhecida por talha e chegou ao nosso território através dos romanos. No ano 60 AC, Julio César, o então general e futuro imperador romano, marchou com 30 mil soldados para a Península Ibérica, conquistando-a. Surge aí a Lusitânia romana que incluía quase todo o actual território português a sul do rio Douro, mais a Estremadura espanhola e parte da província de Salamanca, que ficou sob controlo romano até à entrega aos Alanos em 411. Júlio César após esta sonante conquista, regressa a Roma, torna-se imperador e corteja Cleópatra (coloquei os acontecimentos por ordem crescente de relevância :). Outros romanos, ficaram por cá, e ainda bem... ;)

Mestre DanielEnquanto Júlio César conhecia os cantos às pirâmides (;)), os seus conterrâneos deixavam para trás, naquilo que hoje é Portugal, muitos apontamentos arquitectónicos, cultura, artefactos, comida, vinho e modo como o fazer e armazenar: a talha. Em Portugal, o Alentejo tem sido o grande guardião dos vinhos de talha, tendo sabido preservar até aos dias de hoje este processo de vinificação desenvolvido pelos romanos, sendo mesmo, com a excepção da Geórgia,  a única região do mundo com uma história tão longa na produção deste tipo de vinhos.

Mestre DanielProduzido em talhas ou em potes, herdeiros das grandes vasilhas romanas, o vinho de talha, tanto o branco como o tinto, resulta de um processo de fermentação que acontece juntamente com a massa vínica, na gíria designada "mãe", onde este vinho permanece, pelo menos, até ao dia de São Martinho (11 de Novembro), adquirindo aí as características que o distinguem de todos os outros vinhos. Neste dia, as adegas enchem-se de gente, da terra e de fora, que para ali se deslocam para conviver e provar o vinho da nova colheita, que sempre gozou de grande fama na região. Para além do aroma característico das adegas, é também inspirador o cantar do vinho no alguidar, no jarro ou mesmo no pequeno copo, que se vai encher, uma e outra vez, directamente à talha.

Mestre DanielInfelizmente, nos últimos anos, esta prática tem-se vindo a reduzir drasticamente. Sentindo a responsabilidade de dar continuação a este legado milenar,  um grupo de amigos, naturais de Vila Alva, juntou-se para criar o XXVI Talhas, reactivando a antiga adega do Mestre Daniel, com 26 talhas, onde produzem vinho de talha segundo os métodos tradicionais. Daniel António Tabaquinho dos Santos (1923-1985) para além de produzir vinho, utilizava também este local para trabalhar como carpinteiro e, por esse motivo, era conhecido localmente como o "Mestre Daniel". 

Mestre DanielO Mestre Daniel produziu vinho de talha durante 30 anos, seguindo a tradição familiar que herdou de seus pais e avós. Após a sua morte seguiram-se ainda alguns anos de produção. Contudo, em 1990, a adega encerrou actividade. Em 2018, após quase trinta anos de interregno, a adega volta a funcionar, pelas mãos do XXVI Talhas, retomando a tradição local e familiar de produção de vinho de talha. É sobre os vinhos que de lá saem que vos vou falar hoje...

Mestre DanielComeçando pelo XXVI Talhas Mestre Daniel Branco 2019 (87 pts., 20 €), de cor citrina-âmbar cristalina exibe no nariz muita rusticidade, pureza e autenticidade com casca de laranja cristalizada, xila, papaia, calda de ananás e uma mineralidade muito vincada (granito molhado). Na boca é seco, fresco, directo e surpreendentemente esguio. Nos tintos, o rubi XXVI Talhas Mestre Daniel Tinto 2019 (88 pts., 20 €) emana compota de morango, frutos silvestres, pimento vermelho, alfarroba e sous-bois. Todos estes aromas são confirmados no palato, fazendo-se notar ainda uma agradável secura, uma acidez bem integrada e um final guloso, longo e elegante. 

Mestre DanielPara acompanhar um Coelho agridoce com frutos secos e arroz basmati escolhi o XXVI Talhas Mestre Daniel Talha Tinto 2019 (91 pts., 35 €). Com uma cor rubi muito bonita e levemente pálida, carrega notas deliciosas a amora, compota de mirtilo, bergamota, erva seca, pinho, cogumelos, sous-bois e uma mineralidade intrigante (granito partido). Na boca não é tão seco como os anteriores,  é muito complexo, super equilibrado, dócil, elegante e muito longo. Gostei muito. No conjunto achei os vinhos XXVI Talhas muito originais, com pedigree, com alma, com memória, com autenticidade e com simplicidade de espírito, sem ruídos, e que por tudo isto, exprimem, de forma indelével, o terroir e o legado que carregam desde o berço.

Mestre DanielNum pequeno caderno de apontamentos encontrado na adega do projecto XXVI-talhas, o “Mestre Daniel”, descreve assim o seu fabrico: “...quando se começa a fazer o vinho novo, esmaga-se as uvas brancas ou tintas numa ciranda ou num moinho esmagador. Depois deita-se a massa da uva e o mosto na talha dando-se-lhe primeiro uma mecha boa; não deixar a talha cheia demais para não entornar... Mexe-se duas vezes ao dia de manhã e à noite até baixar a fermentação e depois pode-se mexer só uma vez por dia. O tempo de fermentação depende das uvas... isto é como se faz o vinho.”

Uma receita que faz parar o tempo com olhos postos no futuro e viajar ao passado, passando, agradecidamente pelo Mestre Daniel, estoicamente pelos Lusitanos, marotamente por Júlio César e Cleópatra até chegarmos, nostalgicamente, aonde tudo começou, na Geórgia. 

 

Coelho agridoce com frutos secos e arroz basmati:

-Alourem o coelho em azeite, alho e um pau de canela, temperando com sal e pimenta;

-Retirem o coelho da frigideira, separem a carne dos ossos, pele e cartilagem e voltem a introduzir a carne na frigideira, cozinhando durante mais cinco minutos;

-Adicionem mel, brandy, vinagre de vinho Madeira e sumo de limão. Cozinhem durante 5 minutos, retirem do calor e adicionem alguns amendoins com sal;

-Sirvam com arroz basmati aromatizado com anis acompanhado por algumas nozes.

Quinta da Pacheca | Que nunca vos faltem vírgulas

"Isso de querer ser, exactamente aquilo, que a gente é ... ainda nos vai levar além."  Paulo Leminski 

Pacheca 2020O enquadramento cultural da publicação de hoje leva-nos de encontro a um daquele tipo de ensaios que aparecem apenas de tempos a tempos, como pérolas reluzentes num mar de acessórios opacos. Uma jóia literária que cativa desde a primeira página e seduz até à última.

Pacheca 2020Estou-vos a falar de uma viagem fantástica pela história dos livros escrita por Irene Vallejo. A obra  El infinito en un junco (O infinito num junco) está para a história dos livros, como o Sapiens - Uma Breve História  da Humanidade de Yuval Noah Harar está para a evolução da espécie humana. O assunto pode parecer "uma seca" se não formos leitores vorazes, mas asseguro-vos que basta abrirem o livro e lerem as primeiras 5 linhas para a vossa mente se soltar em direcção ao infinito...

Pacheca 2020O Infinito num junco é, acima de tudo, pura literatura e puro amor pelas palavras. Irene Vallejo é dona de uma voz literária muito pessoal, cheia de imagens poderosas, daquelas que explodem nos nossos cérebros e nos encantam com o seu brilho narrativo. E é também uma voz próxima, quase íntima, que se vai despindo de segredos ao longo das páginas, que nos agarra com as palavras e que nos faz sentir uma necessidade umbilical de querer continuar a ler.

Pacheca 2020Ao longo das suas 443 páginas a autora parece cultivar peças soltas e desconexas que vagueiam pelo nosso pensamento, ideias perdidas, concepções opostas e memórias esquecidas, que no final, se materializam num todo sólido que é muito mais do que a simples soma de todas as peças iniciais.

Pacheca 2020No prólogo, Irene Vallejo segreda-nos que o livro superou a prova do tempo, demonstrando ser um corredor de maratonas. Sempre que acordámos do sonho das nossas revoluções ou do pesadelo das nossas guerras, o livro continuava lá, a registar tudo. Irene, citando Umberto Eco, defende que o livro pertence à mesma categoria da colher, do martelo, da roda ou da tesoura, uma vez que depois de inventados, não conseguimos fazer nada melhor.

Pacheca 2020Li uma vez, já não me recordo onde, que mais importante que elogiar a genialidade de um Leonardo da Vinci, de um Monet ou de um Van Gogh, seria termos o desejo de tentar perceber o contexto que permitiu o surgimento de cada um deles. É precisamente isso que Irene Vallejo faz, a respeito de um dos objectos mais extraordinários jamais criados: o livro.

Pacheca 2020Neste, provamos deliciosos detalhes da história da escrita, arte que inventamos para que as palavras pudessem viajar no tempo, no espaço e nas mentes. Inicia com o nascimento do primeiro "livro", para mais tarde, ao longo de 30 séculos, discutir os diferentes veículos que as palavras encontraram para se expressarem:  o fumo, as rochas, a argila, o papiro, a seda, a pele, as árvores, o plástico e, mais recentemente, a luz.

Pacheca 2020Este é, também, um magnífico livro de história que nos leva a passear pelo mundo antigo com uma confiança e uma proximidade que, às vezes, nos faz sentir que estamos na presença de um guia de viagens.  Viagens por bibliotecas, das mais antigas até as mais actuais, com paragens nos campos de batalha de Alexandre o Grande; na Villa Papyrus, momentos antes da erupção do Vesúvio; nos palácios de Cleópatra; na cena do assassinato de Hipátia (a primeira mulher matemática); nas primeiras livrarias; nas casas dos escribas; nas fogueiras onde os livros proibidos foram queimados; no gulag (um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer outra pessoa que se opusesse ao regime na União Soviética); na biblioteca de Saraievo e num peculiar labirinto subterrâneo em Oxford.

Pacheca 2020O titulo do livro faz uma referência, genial, à origem etimológica da palavra Cânone, que significa cana ou junco (uma vara para medir comprimentos na antiguidade e que, mais tarde, passou a significar "padrão"). O cânone literário é, assim, o conjunto de todas as obras (e de todos os seus autores) social e institucionalmente consideradas "grandes", "geniais", perenes, que comunicam valores humanos essenciais, e que por isso, são dignas de serem estudadas e transmitidas de geração em geração. 

Pacheca 2020Esse junco é o que faz com que cada livro, pessoa, sociedade, país ou cultura possa ser original, autêntico, coerente e honesto, mas ao mesmo tempo, heterogéneo, incompleto e em constante mutação. É aquilo que nos faz ser, exactamente aquilo que somos, mas também, aquilo que nos vai levar mais além. E é aqui que chegamos à Quinta da Pacheca ;)

Pacheca 2020Um espaço camaleónicamente encantador e sedutoramente incompleto (nunca está acabado, parece a Sagrada Família de Barcelona ;)) e que conta agora com um SPA de verão, uma piscina exterior, um barril de desinfecção COVID-19 por ozono, um novo edifício (com quartos mais modernos e confortáveis), piqueniques nas vinhas e inúmeras outras mais-valias.

Pacheca 2020

De todas estas novidades destaco a Prova à boca da barrica com o simpatiquíssimo Rui, na qual podemos provar diferentes castas, em diferentes barricas com diferentes tostas, a solo ou em blend. Muito fixe e provavelmente a melhor "conversa vínica" que tive este ano.

Pacheca 2020No entanto, esta constante metamorfose, permanente crescimento e inacabada oferta, não faz com que a Pacheca, no seu todo, deixe de ser original, autêntica, coerente e honesta, pois a alma abnegada e amiga, a boa energia, a excelência no serviço, o ambiente sereno, os bons vinhos com provas fantásticas e a gastronomia sedutora e de autor, esses, continuam os mesmos e im...pe...cá...veis!!

Pacheca 2020Nas novas colheitas gostei muito do chá Earl Grey, do anis, das flores silvestres intensas (urze), das ligeiras notas vegetais e da mineralidade (xisto molhado) do Pacheca Reserva Branco 2018 (90 pts., 32 €); das violetas, bergamota, ameixa vermelha, acidez e elegância do Pacheca Grande Reserva Touriga Nacional 2017 (89 pts., 29 €); das amoras pretas, mirtilos, cacau, complexidade, equilíbrio e largura  Quinta da Pacheca Lagar nº1 2016 (91 pts., 40 €) e das rosas, esteva, mirtilos, groselhas, amoras, chocolate, acidez, intensidade e taninos redondos do Pacheca Vale de Abraão Colheita Seleccionada 2016 (92 pts., 60 €).

Pacheca 2020Gostei igualmente do damasco, nectarina, mel, urze, flor de laranjeira doçura e elegância do Pacheca Late Harvest 2015 (90 pts., 24 €). Já nos Porto, houve tempo para rever o caramelo, o chocolate, as especiarias, as nozes, a pêra confitada e o mel do Quinta da Pacheca 40 anos Tawny (92 pts., 100 €) e para os apontamentos de cacau, ameixa vermelha,  amoras pretas, esteva, urze, violeta, intensidade, estrutura e acidez do Pacheca Vintage Port 2017 (93 pts., 65 €). Como novidade surgiu o Pacheca Vintage Port 2018 (91pts., 65 €). De côr  retinta escura e densa, exibia no nariz  esteva, mirtilos, ameixa madura, menta e eucalipto. Na boca era fresco, elegante, harmonioso e com taninos sedosos.  

Pacheca 2020No restaurante reencontramos um menu variado e tentador, que respeita o conceito de cozinha tradicional portuguesa e utiliza os produtos típicos do Douro. Conceito que o virtuoso Chefe Carlos Pires trabalha com uma inspiração muito particular, dando-lhe uma nova roupagem, mais vistosa, mais moderna e mais charmosa. Como não poderia deixar de ser, cada prato é harmonizado com os vinhos da casa, promovendo uma montanha russa de emoções e sabores. 

Pacheca 2020A viagem enogastronómica iniciou com o exagero voluptuosamente delicioso do  Ovo em meia cozedura com molho de cogumelos e foie gras, prosseguiu com o sabor a mar inspirador,  a frescura dos cominhos, o ligeiro picante do caldo, a delicadeza do bacalhau e com a textura carnuda do feijão da Feijoada de língua de bacalhau, descansou com a frescura irreverente do Sorvet de maçã verde e atingiu o apogeu com a intensidade do Naco de vitela com molho de rabo de boi

Pacheca 2020O molho deste último prato estava delicioso e superiormente reduzido, no inicio sobrepondo-se ao resto, mas depois os cogumelos, a carne e os vegetais ganham destaque, despertando todos os diferentes aromas do prato. Todo esta untuosidade é equilibrada pela acidez dos temperos e ervas, que faz com que não nos cansemos do prato. 

Pacheca 2020Quer a noite, quer o jantar, finalizaram com a dicotomia acidez/doçura da original Triologia de doces conventuais sobre carpaccio de ananás com raspas de lima, portadora de uma voracidade tradicional inebriante. 

Pacheca 2020A manhã seguinte amanheceu solarenga, bem disposta, divertida e, depois de um passeio pelas vinhas da Quinta da Pacheca, foi pincelada com um excelente pequeno-almoço. Diversificado, assente em produtos de máxima qualidade, num ambiente requintado, seguro e com vista para o Douro...

Pacheca 2020E isto não é apenas um pormenor, apesar da Quinta ter crescido, os seus serviços não se desvincularam da serenidade, requinte, exclusividade e finesse de que um espaço como este exige.

Pacheca 2020Voltando ao pequeno almoço, para além dos prazerosos, e já habituais, ovos mexidos com bacon e cogumelos, tive a oportunidade de conhecer o espumante Pacheca Pinot Noir Grande Reserva 2009 Bruto  (93 pts., 65 €). 

Pacheca 2020Amarelo dourado na cor e com bolha super fina, este espumante seduz no aroma com toques de framboesa, cereja, leves citrinos e um pouco de brioche. No palato passeia com uma acidez frenética, uma textura mineral intensa, um corpo enorme e uma crocância que o faz ganhar muita complexidade. Para além de todos estes predicados, é um espumante que claramente pede comida. Fiquei fã ;)

Pacheca 2020Para a Clarisse, enquanto eu me deliciava com o espumante, a etapa seguinte foi uma reconfortante, serena e revitalizante  massagem com uma vista arrebatadora para as vinhas e para o Douro, tudo isto na companhia de um belo Vintage 2018 ;) Existem imensos contextos e "panos de fundo" para este género de terapias, do corpo e da alma, vai ser difícil bater este da Pacheca.

Pacheca 2020Depois de mais uns belos momentos eno-gastronómicos ao almoço (por favor quando forem à Pacheca, não deixem de provar o polvo, é divinal), era chegada a hora do regresso a casa, com excelentes memórias na bagagem.

Pacheca 2020Este será, quiçá, o sitio onde nos sentimos melhor em família... Visitamos a Pacheca antes de casar, depois de casar, antes da Bia nascer, depois da Bia nascer, antes do Gui nascer e depois do Gui nascer!!! Esta crónica diz respeito à nossa última visita, no final de Agosto passado. 

Pacheca 2020A ideia do contexto literário com que iniciei esta publicação surgiu lá. Nestes 2 meses, o Infinito num Junco foi considerado o melhor livro do ano pelo El Mundo, pelo La Vanguardia e pela edição espanhola doThe New York Times. Irene Vallejo venceu também o Prémio Nacional de Literatura em Espanha. A Quinta da Pacheca acumulou prestigiadas distinções como o de Best of Wine Tourism pelo Great Wine Capitals Global Network. Até aqui, há elos comuns banhados a tons de sucesso e reconhecimento. 

IMG_3739.JPGQuerem outra semelhança entre O infinito num junco e a Quinta da Pacheca? Ambos nos mostram a relevância das vírgulas nos diferentes mundos que compõem as nossas vidas. A vírgula é importante na literatura para marcar as pausas e inflexões nos textos, para enfatizar ou separar ideias e para impedir qualquer ambiguidade na escrita. Na Pacheca, a virgula que separa cada estado, anterior, de obra concluída, de outro estado, posterior, de obra iniciada; marca o empreendedorismo incessante focado no diversificar da oferta turística de uma região cada vez mais procurada;  enfatiza o compromisso com a excelência no serviço e impede qualquer ambiguidade com qualquer vizinho. Que nunca vos faltem vírgulas ;)