Le Monument Restaurant | A vontade que os ata ao leme
“Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas. Não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens vegetando num cantinho do mundo a vida inteira.” Mark Twain
Num mundo onde a "profissão de blogueiro de lifestyle e viagens" está muito em voga, com cada vez mais influencers, que de um modo ou de outro, se acham a última bolacha do pacote, e pensam que ditam as tendências do sector, não deixa de ser irónico, o facto pouco conhecido, de que o livro de viagens mais vendido de sempre tem mais de ... 150 anos. Innocents Abroad de Mark Twain, que narra com humor corrosivo a viagem de Twain (e de um grupo de turistas americano) pela Europa e Palestina a bordo de um barco a vapor, o Quaker City, foi publicado pela primeira vez em 1869.
O itinerário incluiu paragens na Exposição Mundial de Paris de 1867, viagens pelos Estados Papais até Roma e pelo Mar Negro até Odessa. Este guia em forma de novela foi o livro mais vendido das obras de Twain durante a sua vida, continuando, nos dias de hoje, a ser fonte de inspiração para viajantes. Além de entusiasmar, com doses colossais de wanderlust, gerações de fãs literários com as suas descrições muito particulares, o livro defende a ideia de que devemos viajar para expandirmos nossos próprios horizontes.
Mark Twain, o pai da literatura americana e indiscutivelmente o maior humorista da sua época, defendia a ideia que viajar abre a nossa mente para visões de mundo que só nos estão acessíveis se as experimentarmos no terreno. Curiosamente a ciência confirmou, já nesta década, esta tese. Tive o prazer de me deparar com o Innocents Abroad no ínicio da pandemia, enquanto procurava absorver um conhecimento mais profundo de alguns clássicos.
Na altura li as palavras, entendi o significado, continuei, achei genial a passagem que agora escolhi para adornar esta crónica, terminei a história, fechei o livro. Lição aprendida, venha outro livro. Só quando visitei mais recentemente o Le Monument Restaurant é que essas palavras vieram, de novo, à tona e me atingiram com uma compreensão tão profunda que me fizeram compreender, finalmente e completamente, o livro. Intolerante não sou, de ideias limitadas, também acho que não. No entanto, tenho os meus preconceitos, sejamos sinceros, todos temos os nossos.
Isso torna-se particularmente importante quando tecemos opiniões ou "julgamos" outros povos. Viajar ajudou-me a perceber que via o mundo de forma, por vezes, um pouco miópica. Algumas das coisas que considerava certas foram postas em causa, desafiadas e testadas. Conheci inúmeras pessoas com uma infinidade de ideias que diferiam das minhas, e isso é bom. Passei igualmente a ter uma visão sobre coisas que nunca preveria antes de viajar. Ao perceber o quão vasto o mundo realmente é, eu percebi o quão estreito eu realmente era. Essa lição estava também aprendida.
A experiência de viajar para o outro lado do mundo para ver algo completamente diferente tem sido das experiências mais gratificantes da minha vida. Como é óbvio, nem todas as viagens correm bem e sem dificuldades. Muito pelo contrário, na verdade, estar fora da nossa área de conforto é imensamente desafiador e pode ser totalmente frustrante, e é nesses momentos de relativo desconforto que, se estivermos disposto a isso, podemos reflectir nos nossos preconceitos e sentimentos mais profundos.
Há muito a ser dito sobre a vontade de ver o mundo com nossos próprios olhos, de testemunhar eventos à medida que eles se desenrolam, de viver hábitos e culturas de outros povos, em vez de, irónica e paradoxalmente, apenas ler sobre isso em livros. Fotos ou relatos escritos conseguem passar as emoções ... apenas até um certo ponto. Por exemplo, a magia e a beleza do Grand Canyon não podem ser replicadas nem sentidas através das palavras e imagens contidas num livro ou blogue, por muito bonitas que elas sejam (já passaram 7 anos do momento em que o visitei, e há coisas que continuam muito belas!!! :P).
Olhar para o horizonte e para suas profundezas é a única maneira de apreciar e sentir plenamente a magia, a imensidão e a maravilha que o Grand Canyon possui. Viajar permite-nos ter essa vista panorâmica, não só de lugares mas também de hábitos, sociedades e culturas, permitindo-nos adicionar novas camadas de compreensão aos nossos (pre)conceitos. Esta filosofia "Twainiana" da vida e das viagens, que nos permite ter uma visão mais ampla, mais abrangente e mais generosa, também se aplica à gastronomia.
Comer é um dos grandes prazeres da (minha) vida. E para os viajantes, é ainda mais do que isso. Quando viajamos, a comida não se trata apenas de uma necessidade básica ou até pura diversão. É cultura, é autenticidade, é experiência, é interacção com outros modos de olhar o mundo. É a vida da forma mais pura, (por vezes) simples (outras nem tanto), e emocionante.
O contrário também acontece, no confinamento em que vivemos, a comida pode-nos fazer viajar. E é aqui que chegamos ao Le Monument Restaurant. Depois de vários anos no Le Restaurant do L'Hotel em Paris (onde conquistou uma estrela Michelin) e de passar dois anos a perceber, visitar e conhecer Portugal, o chefe Julien Montbabut reinventou-se para nos passar a contar, de forma muito bonita, as suas histórias, aventuras e descobertas através de um menu de 14 momentos.
Começa com o reconfortante Sentir-se Português com pão de batata e oregãos e azeite exclusivo Le Monument Vale de Vasco, que antecede uma trilogia que nos remete para a origem e diversidade dos sabores: A descoberta dos produtos. Nela encontramos a frescura citrina, o sal e a untuosidade do Rolo de bacalhau fumado; o fumado, ligeira amargura e toque final doce da Alcachofra e alcaparras; e as notas herbáceas, riqueza aromática e diversidade de texturas da Tartelete de tomate e flores.
Do Mar chegaram dois momentos, a Corvina selvagem, óleo de sésamo e azeda e a Sapateira, mostarda Savora e yuzu. O primeiro com notas terrosas (da beterraba), com a maresia do lingueirão, com a textura carnuda da corvina e com um jogo delicioso entre adstrigência, acidez, voluptuosidade e crocância. O segundo é uma criação genial, muito complexa (quer nos sabores quer nas texturas) e que nos remete para a riqueza do marisco, para a acidez adocicada do yuzo e para a cremosidade da mostarda. O abacate coloca todas estas sensações a dançarem "no mesmo tom" no nosso palato. Foi a segunda vez que provei este prato e pela segunda vez fiquei maravilhado ;)
Paragem seguinte, uma Aula de Surf, com Água de sabor marítimo, marisco e algas. Servida numa garrafa de vidro, este momento é construído através da combinação, bastante original, de uma infusão de algas de Aveiro, berbigão, ouriço do mar e ulva. O resultado transporta-nos para a beira-mar, numa manhã de tempestade. Quase que nos apetece retirar a água do mar do nariz :P
Dos Açores, chegou a Curgete, anchovas e queijo da Ilha. O queijo com cura de 24 meses, tem o seu sabor realçado pela pungênia da anchova e subtileza da curgete. Mais uma vez, fui movido através da comida para o mar, mais concretamente para os dias de férias de Verão, em que esperava a chegada dos barcos de pesca no porto da Póvoa do Varzim.
O meu mercado favorito - Matosinhos trouxe Lulas salteadas, puré de aipo e tinta de choco. Uma dicotomia entre terra e mar muito engraçada, fresca e gulosa. Com o Ex-líbris chegou o Lavagante azul cozido em rama de videira, alface e molho de vinho tinto do Douro, defumado na hora do serviço na mesa e que carregava ... tudo: mar, terra, originalidade, dedicação ... e sabor, muito sabor. É assente em produtos locais e sazonais com a intenção de promover inesperadas conjugações e contrastes de sabores que no final se equilibram e ficam agarrados aos rochedos das nossas memórias.
A harmonização com o tinto Horácio Simões Reserva Vinhas Velhas Castelão 2017 tão certeira quanto inusitada, potenciada pela adstringênia, groselha e bom volume de boca, é uma marca indelével da excelência que por ali se pratica. D'A Terra surgiu outro prato grandioso e o melhor momento enogastronómico do ano: Gema de ovo confitada, cogumelos selvagens e caldo de cerveja preta acompanhado pelo Quinta do Cardo Vinha Castelo Tinta Roriz 2014.
A cremosidade do ovo, o amargo adocicado do caldo, o umami dos cogumelos e todas as sinopses entre todos os elementos do prato foram engrandecidos pela resina, pinho, sous-bois e notas balsâmicas do vinho. Vinho esse, cuja frescura ajudou a equilibrar o "exagero voluptuosamente feliz e guloso" desta Terra. Este é um daqueles pratos que não deveria sair da carta, devido à sua mestria e execução exemplar.
Seguiu-se um salto a Trás-os-Montes através do Cabrito de Trás-os-Montes, beringela e molho de carne com segurelha. O cabrito estava carregado de sabor, intensidade, tenrura e suculência. O fumado do puré de beringela conjugado com a concentração e perfume a lavanda-menta do molho, foram a guarda de honra perfeita deste delicioso prato.
Depois da Mistura de Culturas com Salada do Douro, queijo amanteigado e vinagre de framboesa, uma espécie de corta-sabores gourmet e de uma Água revitalizante, era chegada a altura da Mistura de culturas através da leveza delicada do Pêssego e groselha da orientalidade suave e jogo de texturas do Chocolate, café e noz pecã e da acidez adocicadamente graciosa e alma vínica das caves de Gaia da Cereja e Vinho do Porto.
Assim terminou, esta sublime viagem gourmet que combinou diversos sabores, texturas, aromas, produtos e produtores regionais, viagens, inspirações, estórias, contrastes e surpresas. Houve ainda uma bonita invocação das tradições gastronómicas lusitanas alicerçada no melhor savoir-faire da cozinha francesa. Um menu em que cada prato conta uma história e que no final nos deixa com algo bem característico do nosso país ... a saudade. Destaque ainda para o serviço exemplar, com chancela Diogo Matos, para a atmosfera ecléctica do restaurante e para a excelente harmonização vínica proposta pelo Marco Pereira. Há ali muita vontade de fazer bem, de fazer diferente, de fazer com requinte e de fazer com orgulho.
A vontade, que me ata ao leme é uma das expressões mais bonitas que podemos encontrar num dos poemas mais conhecidos da Mensagem de Fernando Pessoa. Aquando das suas duas primeiras publicações este poema chamava-se "O Morcego" e referia "o morcego que está no fim do mar..." mas o ser simbólico foi dignificado pela posterior transformação em mostrengo, na revisão anterior à edição de A Mensagem em livro. O poema simboliza, claro está, o medo do desconhecido (o "mostrengo") que os navegadores portugueses tiveram que vencer enquanto viajavam e davam novos mundos ao mundo.
Quer o Diogo, quer o Marco, quer o Chefe Julien poderiam permanecer na sua zona de conforto, a viver à sombra do passado, com reconhecimento, prémios e estabilidade, vegetando num cantinho (seguro) do mundo a vida inteira. Arriscaram tudo para se entregarem, de corpo e alma, a um novo projecto, a um novo leme, a uma outra pele, que num contexto não-pandémico teria tudo para ser um sucesso, levando a uma "casa cheia", diariamente. Não é isso, que, infelizmente, está a acontecer.
Nessa procura por uma visão mais ampla, abrangente e generosa da gastronomia encontraram o monstrengo do nosso século. Sei que são pessoas cuja vontade, cujo amor, cujo comprometimento, cuja dedicação não os vai fazer largar esse leme e que os vai levar, com certeza, a navegar em segurança e sem medo porque, afinal, a tormenta ignota que vivemos, vai ser "apenas" uma tempestade de má memória, que se transformará numa Boa Esperança.
Não sei se é neste ano que vão ter, finalmente, uma "estrelinha" no horizonte, sei que pelo menos andaram lá perto e que sem dúvida nenhuma, e mais importante que tudo, a merecem. Esta bonita viagem através dos sabores é não só uma extraordinária, surpreendente, inovadora e epifânica experiência gastronómica, mas também uma das melhores ideias que tenho visto nos últimos tempos neste sector. Parabéns.
Força amigos ;)