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No meu Palato

No meu Palato

Titan of Douro | Pedras que falam

"O carácter é como uma árvore, sendo a reputação a sua sombra. A sombra é o que nós pensamos dela, a árvore o que ela é realmente." Abraham Lincoln

Titan of DouroPara vos falar de um produtor do Douro, vamos embarcar numa viagem (necessariamente mental) para ... Champagne!!! ;) Apesar do seu porte altivo e reputação suntuosa, este vinho espumante guarda alguns "segredos" bastante sérios e aguerridos. Champagne, a região que dá nome ao vinho, perdeu inúmeras vidas, vinhas e até catedrais, em resultado dos combates violentos que lá se travaram durante as duas guerras mundiais.

Titan of DouroChampagne viu-se empurrada para a linha da frente, como fronteira entre os alemães e os aliados no Outono de 1914. A partir de então, esteve no centro da 1ª Guerra Mundial, que durou quatro anos. As colheitas de Champagne durante estes anos tornaram-se famosas por terem sido realizadas por mulheres e crianças, enquanto os homens combatiam a umas escassas centenas de metros das vinhas. Insolitamente a colheita de 1914 é tida como umas das melhores de sempre em Champagne, isto apesar de não ter sido de fácil execução. A ofensiva aliada que forçou os alemães a abandonar as regiões onde se pretendia vindimar ocorreu apenas uma semana antes do início da colheita, tendo a vindima sido efectuada por entre tiros e bombardeamentos.

Titan of DouroEm 25 de Setembro de 1915, ocorre a segunda batalha, desta primeira guerra, que começou logo após um ataque francês às linhas alemãs orquestrado pelo marechal Joffre. Curiosamente a "arma secreta" que faz de Champagne um dos vinhos mais prestigiados do mundo foi também aquela que fez a região ganhar esta segunda batalha ... o seu solo. Centenas de quilómetros de pedreiras,  cavidades e túneis, escavados nas rochas calcárias e que deram abrigo, segurança e movimentos estratégicos aos seus habitantes. A 1ª Guerra Mundial termina em 1918. Champagne teria então 21 anos para se recompor antes que as hostilidades recomeçassem, noutra guerra.

Titan of DouroAdolf Hitler tornou-se chanceler da Alemanha em 1933, prometendo fazer da Alemanha uma das maiores potências mundiais, novamente. Em Março de 1938, a Áustria foi anexada pela Alemanha. Embora a anexação não tenha sido (demasiado) violenta, a tristemente célebre tirania de Hitler começou ali. A 2ª Guerra Mundial começou oficialmente em 1939, quando Hitler invade a Polónia. Seguiu-se a França em 1940. A área de Champagne não se transformou num campo de batalha tão sangrento como havia acontecido na 1ª Guerra Mundial, ainda assim, a região  foi tomada pelas forças alemãs durante quatro anos tumultuosos (estações de caminho de ferro destruídas, vilas incendiadas e pontes inutilizadas). 

Titan of DouroUma das lições que os habitantes de Champagne aprenderam na Primeira Guerra Mundial foi a de estarem preparados. Antes do exercito alemão chegar já haviam escondido o vinho atrás de paredes falsas construídas no calcário. À medida que a guerra avançava, a manutenção da vinha e a produção do vinho foram, mais uma vez, delegadas às mulheres, às crianças e aos idosos. Foi produzido algum vinho durante os quatro anos de ocupação alemã, mas pouco. Houveram algumas colheitas muito boas (como a de 1943), mas apenas em quantidades limitadas.

Titan of DouroÉ nesta altura que é proferida a frase "lembrem-se senhores, não é apenas pela França que estamos a lutar, é pelo Champagne" por Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, num discurso motivacional para o seu exército. Como é óbvio, este género de motivações fez com que os alemães começassem a perceber, que também não seria desta que ganhariam uma guerra. Por isso, planearam destruir todo o vinho que encontrassem em Champagne (estes "gajos" eram mesmo má onda). Antes que este sacrilégio pudesse ter sido concretizado, os aliados libertaram a região em 1944. Era chegada, finalmente, a hora de comemorar e muito do vinho escondido foi aberto. 

Titan of DouroHá quem defenda, os mais românticos,  que o terroir de Champagne (que empresta aos seus vinhos as peculiares frescura, riqueza, delicadeza, vivacidade picante e sabor estimulante) não é afectado apenas pelo calcário, pela latitude que lhe dá acidez, pela longitude que lhe dá "atlanticidade",  mas também por este legado bélico que lhe dá memória. Curiosamente, é esta conjugação de viticultura de excelência, tipo de solo, localização precisa, batalhas sangrentas e aromas elegantes que me faz associar Champagne aos vinhos Titan of Douro.

Titan of DouroSenão vejamos, Paredes da Beira, onde nascem os Titan,  foi conquistada aos mouros por D. Tedon e D. Rauzendo, cavaleiros cristãos (descendentes do Rei de Leão e ascendentes dos Távoras), que já haviam corrido com os mouriscos de Lamego, de Resende, da Granja e do Tedo. Foi-lhes dado o apelido de Távoras pela bravura como se bateram contra os mouros na batalha do Vale dos Mil. Segundo alguns relatos, mataram tantos mouros, mais de mil, que fizeram com que as águas do rio Távora ficassem vermelhas de tanto sangue derramado. Ainda hoje esse lugar é conhecido por Vale dos Mil, berço das vinhas centenárias dos vinhos Titan of Douro.

Titan of DouroVinhas essas com mistura de várias castas tintas e brancas, em pé-franco, a altitudes de 750 – 850 metros, com orientação sudeste e solo de granito, quartzo e calhau rolado. O granito, tal como o calcário em França é poroso o suficiente para permitir que as videiras desenvolvam as suas raízes até uma boa profundidade, retendo a humidade, servindo de humidificador natural da videira e ajudando o solo a manter uma temperatura mais uniforme. Tudo isto, aliado à genialidade vínica de Luís Leocádio, faz com que estes vinhos tenham uma enorme frescura, carácter singular e forte identidade. 

Titan of DouroFui conhecendo estes vinhos durante o confinamento do ano passado. Ganhei ainda mais curiosidade após ter estado na apresentação dos Fragmentado. Posso confidenciar-vos que foram os vinhos que mais me surpreenderam neste ano, sobretudo os brancos.  Foram também os vinhos que seleccionei para a noite de consoada, a noite de passagem de ano e também para alguns presentes de Natal. :)

Titan of DouroDepois de tamanha (e acredito que para alguns de vós inusitada) introdução, vamos lá falar dos vinhos, começando pelo Titan of Douro Reserva Rosé 2019 (20.00 €, 91 pts.). De cor rosa-salmão é um vinho de aromas contidos mas elegantes a tília, flor de pessegueiro, cereja, groselha, framboesa, granito partido, fumo e caramelo muito subtil. Na boca é um vinho intenso, fresco e irreverente. Igualou a melhor pontuação que dei a um rosé. 

Titan of DouroTitan of Douro Branco 2019 (10.00 €, 85 pts.), amarelo-citrino com laivos esverdeados exterioriza uvas frescas, lichias, damasco, pera, limonete e um ténue anisado. O palato é fresco e com muita estrutura, intensidade e corpo. Tem uma excelente relação qualidade/preço. 

Titan of DouroJá o seu irmão, o rubi-violeta Titan of Douro Tinto 2019 (10.00 €, 83 pts.), é menos vincado no nariz, mais rico e com mais arestas. Os aromas transmitem mineralidade (grafite), cerejas, framboesas, mirtilos, violetas, caixa de tabaco e algum cacau. Tem uma boca com taninos redondos, bastante gulosa, fresca e assertiva.  

Titan of DouroO Titan of Távora Varosa Daemon 2018 (20.00 €, 92 pts.) é o mais "champanhês" de todos eles. De cor amarelo-palha bastante viva e cristalina, exibe notas contidas mas expressivas (conceitos aparentemente contraditórios, mas que neste vinho não o são) a fumo, pão torrado, brioche, granito molhado, noz moscada,  esteva e tília. Na boca é um vinho super completo e equilibrado, onde a enorme estrutura está assente numa acidez poderosíssima. Estou curioso em perceber como este Daemon vai evoluir...

Titan of DouroTitan of Douro Vale dos Mil Branco 2018 (30.00 €, 93 pts.), amarelo-citrino, tem um ataque persuasivamente sedutor com loureiro e zimbro. Surgem também notas frutadas (toranja, lima e damasco), minerais (sílex), fumadas (caixa de tabaco e pão torrado) e florais (espinheiro). No palato passeia-se com um bonita dicotomia untuosidade-frescura. Tudo com muito equilíbrio, elegância, carácter e uma tensão que é comum a todos os brancos Titan.  Foi um excelente comparsa do Bacalhau à minha moda (uma espécie de mistura de bacalhau com natas e bacalhau com broa).

Titan of DouroPara acompanhar uma Bolacha de foie gras, tempura de legumes e gelado de beterraba nada melhor que o Titan of Douro Vale dos Mil Tinto 2018 (30.00 €, 92 pts.). De porte rubi muito denso, e embora tendo o nariz menos excêntrico que o branco,  é muito rico e complexo. Surgem primeiro as notas a esteva, flores brancas, pinheiro, cedro e a eucalipto. A fruta aparece depois com groselha, cereja e amoras silvestres.  

Titan of DouroNa boca é mineral (granito partido), crocante, volumoso, estruturado e longo.  A introdução "afrancesada" pretendeu destacar a particularidade destes vinhos que por vezes nos parecem querer enganar, fazendo-nos sentir na presença de um Chablis, Borgonha ou Champagne (sem bolhas ;)). A prova de toda a gama mostra que isto não é apenas uma coincidência, mas algo característico, quer do terroir quer do modo engenhoso como o Luís gosta de esculpir os vinhos. 

Titan of DouroVinhos esses que dão a "palavra" às pedras, ao terroir que lhes serve de berço. Aquilo que nos dizem, está a transbordar de originalidade, frescura, identidade e carácter. Termino dizendo que, por tudo isto, gostava de ver o Luís Leocádio fazer um bom espumante, o ponto de partida, pode muito bem ser o Daemon ;)

 

Bacalhau à minha moda:

-Cozam as postas de bacalhau sem nunca deixar ferver (fervam previamente a água, adicionem o bacalhau e desliguem o fogão, o calor residual vai cozer o bacalhau);

-Cortem a cebola, o alho e o alho-francês em rodelas finas e refoguem em azeite, até estarem transparentes;

-Escorram o bacalhau, desfaçam-no em lascas e juntem ao preparado do ponto anterior. Deixe refogar lentamente. Acrescentem sal, pimenta, noz-moscada, uma folha de louro e um pouco de leite. Deixem engrossar, mexendo de vez em quando;

-Descasquem e cortem as batatas em cubos e levem ao forno a 210º (até as mesmas estarem alouradas), polvilhando-as previamente com paprika e noz-moscada;

-Juntem as batatas ao bacalhau. Rectifiquem o sal, a pimenta e a noz-moscada.

-Coloquem tudo num tabuleiro untado com manteiga para ir ao forno. Espalhem por cima as natas e polvilhem com queijo mozzarella ralado;

-Polvilhem a parte superior com uma mistura de miolo de broa de milho, ovo cozinho e bacon e coloquem algumas azeitonas;

-Levem ao forno a 210ºC até o pão tostar. 

 

Bolacha de foie gras, tempura de legumes e gelado de beterraba:

-Partam uma batata doce (de preferência de polpa laranja) em rodelas grossas e levem ao forno a 210ºC, apenas com sal, pimenta e oregãos, até as rodelas estarem alouradas. Esta vai ser a base da bolacha;

-Partam o foie gras com a mesma espessura (e diâmetro) da rodela de batata doce;

-Façam uma tempura com alho francês, cebola, pimento, cenoura e beringela;

-Para o gelado cozam as beterrabas já descascadas em água e sal (reservem uma para levarem ao forno). Triturem-nas e juntem um pouco de ginja, açúcar mascavado, natas magras, sal e sumo de um limão e cozinhem por 2 minutos. Levem ao congelador para usarem mais tarde (necessita de pelo menos 4 horas antes de ser servido);

-Montem a bolacha (base de batata doce, depois foie gras, depois a tempura e por último umas batatas fritas finíssimas). 

 

 

The Yeatman | A 10ª sinfonia em amor maior

“A vida é como um piano. As teclas brancas representam a felicidade e as pretas a angústia. Com o decorrer do tempo percebemos que as teclas pretas também fazem parte da música.” Nicholas Sparks

The YeatmanPoderá um génio musical ajudar a acabar uma sinfonia, mesmo estando morto?  Ludwig van Beethoven, nascido em 1770, era conhecido em Viena como o músico mais importante que havia aparecido desde Wolfgang Amadeus Mozart (outro grande génio). Por volta dos seus 20 anos, Beethoven já havia estudado com Haydn (um dos maiores compositores do período clássico) e assumido para si o título de pianista mais virtuoso de sempre.

The YeatmanNa transição para os 30 anos, compôs alguns concertos para piano, seis quartetos de cordas e a sua primeira sinfonia. Tudo parecia estar a correr de feição para este jovem compositor, com a perspectiva de uma carreira longa e carregada de sucesso. É então que repara no aparecimento de um pequeno zumbido nos seus ouvidos. Tudo estaria prestes a mudar... Em 1800, com 30 anos, escreve, desde Viena, para um amigo de infância médico em Bonn, revelando-lhe que estava a sofrer muito: 

The Yeatman"Nos últimos 3 anos, a minha audição ficou cada vez pior. Para te dar uma ideia desta surdez peculiar, quando estou num teatro tenho que me aproximar muito da orquestra para conseguir entender os seus intérpretes. A partir de uma certa distância, pequena, não consigo ouvir as notas agudas dos instrumentos e as vozes dos cantores ... Às vezes também quase que não consigo ouvir as pessoas que falam baixinho. O som que ouço, sei que é verdadeiro, mas não as palavras."

The YeatmanCom a excepção deste amigo médico, Beethoven tentou ocultar o seu problema das pessoas mais próximas, pois temia que sua carreira fosse comprometida caso alguém se apercebesse daquilo que se passava com ele: "Por 2 anos, evitei quase todos os encontros sociais porque é-me impossível dizer às pessoas: «Estou a ficar surdo!!!» Se eu tivesse qualquer outra profissão seria mais fácil, mas na minha, este é um estado terrível."

The YeatmanCerto dia, Beethoven saiu para um passeio pelo campo com seu amigo e compositor Ferdinand Ries, algo que fazia frequentemente. Enquanto caminhavam, repararam num pastor que estava a tocar flauta. Beethoven apercebeu-se no rosto de Ries que havia uma bela música a passear-se no ar, mas ele não a conseguia ouvir. Diz-se que Beethoven nunca mais foi o mesmo depois deste incidente...

The YeatmanHá quem defenda que Beethoven ainda fosse capaz de ouvir alguns barulhos e certas notas musicais até 1812. Mas todos concordam que aos 44 anos, ele estaria perto da surdez completa e incapaz de ouvir vozes ou os sons rurais da sua bela e amada região. A causa exacta deste problema permanece desconhecida. 

The YeatmanNo entanto, e para não variar, existem inúmeras teorias que vão desde a sífilis ou tifo até ao envenenamento por chumbo, passando pelo seu hábito, peculiar, de mergulhar a cabeça em água fria para se manter acordado. Para Beethoven, a causa era outra, certo dia ele afirmou a alguns amigos próximos que em 1798 havia sofrido um ataque de raiva, quando alguém interrompeu abruptamente o seu trabalho. 

The YeatmanTendo caído no chão com o susto/surpresa provocado pelo barulho do bater na porta, levantou-se e percebeu que estava surdo. Curiosamente na sua afamada Sinfonia nº 5, escrita em 1804, procurou retratar esse momento infeliz. A sua fase inicial é frequentemente denominada como "O destino batendo à porta"; do outro lado estava a cruel perda de audição que o afligiria para o resto da sua vida. Coloquei o link desta composição para que possam perceber a carga dramática que a mesma comporta, chega mesmo a ser emocionalmente cansativa... 

The YeatmanAté esta fase de perda gradual de audição, Beethoven havia passado 30 anos a ouvir e a tocar música, quase 18 horas por dia. Toda esta "bagagem musical"  fez com que ele soubesse perfeitamente (e detalhadamente), mesmo quase surdo, como os instrumentos e as vozes iram soar, assim como se os mesmos funcionariam quando em conjunto. No entanto, esse processo degenerativo, ficou bem vincado nas suas melodias. 

The YeatmanNos seus primeiros trabalhos, quando Beethoven conseguia ouvir quase toda a gama de frequências, ele utilizou sobretudo notas mais altas. Quando começou a perder audição, ele passou a usar notas mais baixas para que as pudesse ouvir mais claramente.  Obras primas que incluem a Sonata ao Luar e seis sinfonias, foram escritas neste período.

The YeatmanAs notas altas voltaram, felizmente, a fazer parte das suas composições, numa possível Sinfonia nº 10, já na parte final da sua vida, o que parece querer indicar que ele estava a conseguir ouvir mentalmente as suas novas criações, usando não os ouvidos, mas a sua imaginação (aqui fica uma dessas composições, que Beethoven só conseguiu "ouvir" interiormente). Morre aos 56 anos antes de poder terminar esta última sinfonia, a sinfonia do (seu) adeus... Passados quase 194 anos da sua morte, as nove sinfonias de Beethoven continuam a ser maior/melhor colecção desta forma musical alguma vez criada. Para muitos, isso é o suficiente: nove peças magníficas reconhecidas como a maior conquista daquele género musical. 

The YeatmanPara outros, continua a faltar uma, provavelmente a melhor, a do adeus do génio... Esta sinfonia inacabada de Beethoven foi surpreendentemente acabada, em sol maior, através de inteligência artificial, usando um supercomputador que "aprendeu" (por machine learning) tudo aquilo que Beethoven fez, contando ainda com a preciosa ajuda dos rascunhos que o alemão deixou para esta 10ª Sinfonia.  A sua apresentação estava planeada para Dezembro passado no âmbito das celebrações do 250º aniversário do nascimento do compositor, em Viena. 

The YeatmanO COVID não deixou que isso acontecesse e a sua "primeira audição" pública foi adiada para Setembro deste ano, o que faz sentido, uma vez que é o mês no qual se celebra o aniversário de outro grande génio. :P A história da vida de Beethoven mostra-nos que tempos difíceis, como os que vivemos, exigem atitudes resilientes e persistentes, que demonstrem capacidade de adaptação e inovação, capacidade essa que transformará as adversidades em algo recompensador, viável e quiçá até vencedor. 

The YeatmanAo contrário do que a maioria das pessoas faria, Beethoven materializou a sua experiência em acção, não a escrever comentários azedos nas redes socias (até porque as mesmas não existiam ;)) ou gritar com os filhos do vizinho, mas a compor músicas que universalizaram não só os seus problemas com também as possíveis soluções. Mostra-nos ainda, que mesmo em tempos complicados, aliás, sobretudo em tempos complicados, como os que vivemos, a alegria, a vida e o amor, não devem, não podem, deixar de ser celebrados...  

The YeatmanFoi para vangloriar tudo isso e recuperar (boas) energias (e sinceramente também para fugir com as crianças desta rotina pandémica que já leva uns bons meses) que passamos uns dias maravilhosos e recompensadores no The Yeatman. O hotel vínico, ofereceu-nos uma experiência verdadeiramente epicurista, cumprindo sempre e rigorosamente todas as normas/recomendações exigidas pela Direcção-Geral de Saúde e Turismo de Portugal, de modo a nos manter seguros.

The YeatmanQuem me conhece sabe que fico sempre com umas "borboletas na barriga" quando visito o The Yeatman devido à sua essência de sempre: prazer, bem-estar, luxo casual, os vinhos portugueses, a gastronomia de excelência, o serviço exemplar e uma vista privilegiada para as margens do rio Douro. Podemos ainda usufruir da icónica piscina interior, e assistir ao pôr-do-sol sobre o rio, que pinta o céu e a cidade em tons mágicos. 

The YeatmanEm complemento, desfrutamos de um momento de pura tranquilidade e bem-estar, com os tratamentos de assinatura Caudalie no SPA do hotel, ideais para recuperar não só o corpo como também a mente. A jornada de puro prazer continuou com um momento gastronómico. Depois de já conhecermos o Restaurante Gastronómico e o The Orangerie, desta vez tivemos o prazer de experimentar o Dick’s Bar & Bistrô, com os seus generosos terraços, de onde é possível ir acompanhando o cair da noite sobre a cidade e a sua iluminação muito particular. 

The YeatmanA acompanhar os pratos de abordagem mais tradicional e com a assinatura do Chefe Ricardo Costa, a carta de vinhos abre as portas da premiada garrafeira do hotel, com mais de 1.300 referências, das quais destacamos o assombroso Croft Vintage 1960... Se achavam que os momentos gastronómicos já haviam chegado ao fim, é porque ainda não conhecem o The Yeatman. ;) Depois de uma reconfortante noite na Suite Murganheira (com um duplo terraço privado mobilado, uma espaçosa casa de banho e inúmeros sofás e poltronas), bastante luminosa, requintada e com vistas deslumbrantes sobre o rio Douro e o centro histórico da cidade do Porto, era chegada a hora do pequeno-almoço... 

The YeatmanEm sintonia com a estupenda vista sobre o Porto, o The Yeatman ofereceu um pequeno-almoço variado e rico em produtos locais, que vão desde compotas caseiras até uma apetitosa tábua de queijos, passando por uma criteriosa selecção do que de melhor se faz ao nível de pastelaria. 

The YeatmanNo entanto, e como não poderia deixar de ser, os meus pratos preferidos foram os Ovos Mexidos com espargos e bacon tostado e Ovos Benedict com molho holandês. Para finalizar de forma única e em plena consonância com o requinte do hotel, o leve aroma a peixe fumado e caviar criam o ambiente ideal na hora de brindar com uma flute de espumante, no final deste delicioso pequeno-almoço.

The YeatmanVoltando a Beethoven, o génio alemão deixou-nos ainda como legado a Ode à Alegria (criada na fase em que já sentia as complicações auditivas), com uma mensagem de alegria, esperança e optimismo, mesmo em épocas de crise, como a que vivemos. Ode essa que serviu para nos unirmos, 250 após o seu nascimento e em tempos de confinamento, para celebrar o seu aniversário, a alegria e a vida... 

The YeatmanContinuemos na nossa busca permanente pelas teclas brancas da vida como as que encontramos, felizmente, nestes dias no The Yeatman, percebendo que as teclas pretas, infelizmente, também fazem parte da música, o que importa é que não a deixemos parar de tocar, nem que seja só na nossa cabeça e executada por quem amamos ... ;)

 

Quinta de S. Sebastião | Quanto do teu sal é frescura transversal?

"O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar." Carlos Drummond de Andrade

Quinta de S. SebastiãoOs nossos antepassados caçadores-colectores, tiveram o seu primeiro contacto com o sal, muito provavelmente, enquanto saboreavam a carne de um animal que haviam caçado momentos antes. Mais tarde, quando se viraram para a agricultura, a sua dieta mudou, e perceberam que o sal dava aos vegetais a mesma nota salgada a que estavam acostumados com a carne.

Quinta de S. SebastiãoIsso permitiu que fossem alargando os seus horizontes gastronómicos para novos sabores, sempre com algo familiar, o sal, como companheiro de descoberta. Desde então, o sal ganhou destaque, transformando-se num artigo valioso, motivando de guerras, ajudando a erguer impérios e estimulando o comércio entre os diferentes povos. 

Quinta de S. SebastiãoA história do mundo "segundo o sal" é bastante simples e rápida de ser contada: Os animais ancestrais criaram caminhos para poderem lamber o sal dos mares e os Homens foram atrás deles. Esses pequenos caminhos tonaram-se estradas junto das quais pequenas povoações começaram a crescer. Quando a nossa alimentação voltou a mudar (em função da dificuldade/perigo em obter carne de caça) para os cereais, foi necessário conseguir o sal através de fontes alternativas. 

Quinta de S. SebastiãoA elevada procura e baixa oferta (pois não estavam disponíveis as técnicas de extracção de hoje em dia), fizeram do sal um mineral precioso. À medida que a civilização se espalhou, o sal tornou-se uma das principais e mais valorizadas mercadorias comerciais. Ao longo dos diferentes milénios fomos aprendendo que o sal ajudava também a preservar alimentos, a curar peles e a sarar feridas, razão pela qual a palavra que o denomina é uma prima-irmã de Salus, a deusa da saúde. 

Quinta de S. SebastiãoPor causa de seu uso como conservante, o sal tornou-se também um símbolo de purificação para os judeus do Antigo Testamento e o seu uso nos sacrifícios hebraicos passou a representar a aliança eterna entre Deus e Israel. Já no Novo Testamento, no Sermão da Montanha, Jesus serviu-se do sal para incentivar a fidelidade dos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se corromper, com que se há-de salgar, Não serve para mais nada, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens”.

 Quinta de S. SebastiãoNa era romana, de todas as estradas que levavam a Roma, uma das mais movimentadas era a Via Salaria, a rota do sal, sobre a qual os soldados romanos marchavam e os mercadores conduziam carros de bois carregados de cristais preciosos das salinas de Ostia. O pagamento de um soldado romano era em parte sal, ficando conhecido como solarium argentum, de onde derivou a palavra salário. Palavra essa da qual, todos, gostamos muito. ;) 

Quinta de S. SebastiãoGregos, Egípcios, Fenícios e Chineses também o veneravam, pena que estes últimos não tenham aprendido a purificar a carne dos animais antes de os comerem, tínhamos evitado muitas "chatices". Porém, a invenção do frigorífico, já no século XIX, acabou com o reinado milenar do sal, que acabou por se tornar em algo barato e corriqueiro, ainda assim, essencial à nossa sobrevivência (precisamos diariamente de 5 gramas desta antiga preciosidade e companheiro de evolução). 

Quinta de S. SebastiãoSem ele o nosso organismo não seria capaz de transportar os nutrientes ou o oxigénio, transmitir impulsos nervosos ou mover músculos, inclusive o mais importante (se não for o primeiro é com certeza o segundo ;)) de todos ... o coração. O sal, por vezes, também está também presente no vinho, e em alguns casos é a marca mais evidente de pertença a um determinado terroir. Há uma corrente romântica (defendida por alguns críticos) que defende que a brisa do mar pode transmitir alguma salinidade às uvas. A explicação para o sal no vinho, é, no entanto, um pouco mais complexa. 

Quinta de S. SebastiãoA geografia, como não podia deixar de ser é um dos factores-chave nesta equação; muitas das vinhas estão localizadas perto de grandes massas de água e alguns minerais da água salgada do mar podem ser transportados pelo vento ou então por osmose para os lençóis de água vizinhos e que "regam" as vinhas. Os próprios solos, especialmente os vulcânicos e os calcários, podem contribuir para esse perfil salgado. Por último, uvas mais ácidas contribuem para uma certa percepção de sal no palato. 

Quinta de S. SebastiãoEssa sensação picante, enrugada e indutora de saliva pode ser interpretada pelo nosso cérebro como sal. Acreditando na explicação mais cientifica ou então na mais romântica, o que é certo é que o sal dá ao vinho aromas e sabores (ou pelo menos realça os mesmos) de um modo que o torna mais complexo e mais elegante. São disto exemplo os vinhos da Quinta de S. Sebastião.

Quinta de S. SebastiãoA Quinta de S. Sebastião, fundada em 1755, tem um longo historial na produção de vinhos de qualidade, alavancados nos solos argilo-calcários, na Arruda dos Vinhos, que tem um clima mediterrâneo com forte influência Atlântica.  Tem agora duas gamas de vinhos: Os ‘Quinta de S. Sebastião’ que são os "puro sangue" e os ‘S. Sebastião’ com um estilo moderno e clean, orientada para um público mais jovem. 

Quinta de S. SebastiãoOs vinhos da gama ‘Quinta de S. Sebastião’ são produzidos com uvas apenas de parcelas localizadas na Quinta. Já a gama ‘S. Sebastião’ tem uvas da Quinta, mas também provenientes das melhores parcelas de parceiros viticultores. Quer uns quer outros, são irreverentes, frescos e com alma salina. Começo pelos vinhos totalmente produzidos com uvas da Quinta, deixando de lado a nota salgada, comum a todos.  

Quinta de S. SebastiãoO Quinta de S. Sebastião Reserva Tinto 2017 (20 €, 90 pts.) de cor rubi-grená transporta aromas a frutos silvestres, ameixa preta madura, violetas, flor de laranjeira, cacau, pimenta preta e algum fumo. Na boca é denso sem deixar de ser elegante, mineral (rocha partida) complexo e equilibrado. 

Quinta de S. SebastiãoPor sua vez o Quinta de S. Sebastião Reserva Branco 2017 (17.50 €, 88 pts.) trajando um amarelo-cítrico muito cristalino e sedutor, tem notas a damasco,  lima, maçã verde, melão e uma caixa de tabaco muito discreta. O palato é vigoroso, fresco e mineral (rocha molhada). A sua acidez fez um contraste delicioso com uma Sopa de cogumelos e tomate confitado.  

Quinta de S. SebastiãoMudando de gama, o amarelo-palha S. Sebastião Sauvignon Blanc 2019 (6 €, 81 pts.) tem um nariz cheio de pimento verde, maçã verde e relva cortada de fresco. Na boca é estruturado, fresco e muito directo.  Simples e descomplicado.  Por sua vez, o S. Sebastião Touriga Nacional 2017 (6 €, 81 pts.), vermelho grená, tem aromas a fruto do bosque, amoras, pinheiro e algumas notas fumadas. Na boca é denso, rico, levemente untuoso e muito fresco. 

Quinta de S. Sebastião

Por último, o S. Sebastião Syrah e Touriga Nacional 2017 (8 €, 85 pts.) de cor rubi intensa exibe aromas muito equilibrados a frutos silvestres, cereja, ameixa vermelha, pimenta preta, caixa de tabaco e espinheiro. Na boca está cheio de frescura, de taninos redondos, com excelente volume e a implorar por uma Barriga de porco confitada com especiarias e ervas...

Quinta de S. SebastiãoCuriosamente, apesar de não ter sido o mais pontuado, foi o que mais me surpreendeu e que mais prazer me deu à mesa, quererá isso dizer que sou jovem? ;)

Da prova de todos os vinhos fica a convicção de que apesar de estarem obviamente pensados para consumidores com perfis diferentes, os vinhos de ambas as gamas têm denominadores transversais, como a já falada salinidade, a frescura assertiva, a harmomia e em que todos eles pedem ... comida.   

A Companhia - Museu do Douro | A 100 passos do desassossego

"«Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui? - perguntou a Alice». «Isso depende muito de para onde queres ir» - respondeu o gato. «Preocupa-me pouco aonde ir» - disse Alice. «Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas» - replicou o gato." Lewis Carroll

A Companhia - Museu do DouroO Livro do Desassossego é uma história, quase autobiográfica, que nos fala da sombria grandeza dos méritos que ninguém (re)conhece, servindo de inspiração consoladora para sonhos aparentemente modestos. Nesse conjunto de textos (em que não se sabe muito bem a ordem pela qual ler), Fernando Pessoa através do guarda-livros de um escritório da baixa de Lisboa, Bernardo Soares,  regista impressões intimistas que não espera ver publicadas. 

A Companhia - Museu do Douro"Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar", diz ele a certa altura, máxima essa que lhe parece dar uma certa esperança melancólica para encarar a sua vida. Pena é que, ao que tudo indica, essa esperança pareça ser apenas literária. Qualquer pessoa que já tentou escrever algo ou  iniciou um projecto novo e importante, sabe que a esperança em si, por vezes,  pode ser paralisante. 

A Companhia - Museu do DouroA maneira ideal de descrever esse estado de "ansiedade" criativa poderia assumir uma forma avulta, distante mas observadora, que inibe a proactividade inspirada através do medo da não realização.  Fernando Pessoa oferece-nos uma abordagem totalmente polémica para a encarar: aceitar que os sonhos não precisam ser convertidos em conseguimentos, o que não significa que devamos desistir deles.

A Companhia - Museu do DouroSoares é uma personagem literária, pensada como tal e com o objectivo de dar prazer a quem a lê, com um conjunto detalhado de crenças, geralmente contraditórias. Depois de se declarar um sonhador, ele diz que “despreza” os sonhadores. Depois de se considerar isento de vaidade e orgulho, toma o seu próprio trabalho como um dos mais interessantes do país. 

A Companhia - Museu do DouroNo entanto, a maior ironia de todas é a de o próprio Soares ter a maior ambição (literária) que alguém pode desejar: “sentir tudo em todos os sentidos”. Bernardo Soares, contudo,  é apenas uma máscara que Fernando Pessoa usa para fazer confissões pessoais, como num diário por interposta Pessoa, que oscila entre a inquietação, o tédio, a angústia e uma grande lucidez e capacidade analítica. 

A Companhia - Museu do DouroÉ por todos estes motivos que Bernardo Soares é considerado "apenas" um semi-heterónimo. Ninguém o descreve melhor que o próprio Pessoa:  "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade." Na poesia de Fernando Pessoa, como na relação esquizofrénica de Pessoa com Soares, é constante o conflito entre o pensar, o sentir e o agir, que em boa parte revela a dificuldade em conciliar o que se idealiza com o que se consegue realizar.

A Companhia - Museu do DouroConflito esse que é resolvido num outro livro de Pessoa, na Mensagem, mais concretamente nos 7º e 8º versos do poema Mar Português: "Valeu a pena? Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena". Por outra palavras, tudo vale a pena se o Homem tiver a coragem e a força necessária para seguir as suas convicções, perseguir sonhos e trilhar o seu próprio caminho. 

A Companhia - Museu do DouroSe não tivermos muito claro que meta queremos alcançar, a nossa maneira de encarar a vida vai ser pouco ambiciosa e na maior parte das vezes vai decorrer ao ritmo do que a maré ditar.  A partir do momento em que definimos um destino, podemos, persistentemente, procurar caminhos para lá chegar, pensando em algumas paragens, pontos de passagem e até planear alguns desvios. 

A Companhia - Museu do DouroÉ aqui, precisamente aqui,  que a nossa mente se foca na busca de soluções para ultrapassar as barreiras encontradas e em que a esperança deixa de ser a castradora do Livro do desassossego para passar a ser a proactiva do Mar Português.  Encontrei essa esperança, que se cultiva diariamente, no restaurante A Companhia - Museu do Douro. Um museu vivo, no qual também podemos treinar o nosso nariz com os diferentes aromas do vinho, fazer diversas provas que enriquecem o nosso palato e visitar um dos melhores e mais recentes restaurantes da região.

  A Companhia - Museu do DouroO Chefe Fábio Paiva orquestrou um menu com alma duriense e corpo de autor irreverente. Depois de umas boas vindas em forma de Trufa, queijo Cheddar, amêndoa e doce de pimento, intensa, rica, fresca e com muitas camadas de texturas seguiu-se um Ovo mal cozido com terra de azeitona, bolacha de cogumelos marron e folha de shiso, surpreendentemente fresco, untuoso q.b., com a azeitona a acrescentar uma inusitada acidez e os cogumelos a contribuir com uma ligeira terrosidade e um toque de mar. 

A Companhia - Museu do DouroSeguiu-se um dos cartões de visita desta casa,  Gambas ao molho de vinho do Porto com rebentos de aipo, amores-perfeitos e tosta ao alho. Provoca uma sensação picante-salgada, com uma espécie adstringência achocolatada e uma voluptuosidade salina.  Muito rico, muito bem executado e assente em contrastes que se complementam.  

A Companhia - Museu do DouroO Bacalhau com crosta de amêndoa e castanha, rebentos de coentros, beterraba, courgette, cenoura, milho e alho francês, tinha o peixe cozinhado no ponto, carregado de suculência, maresia, ligeiro picante e sabor. Com as lascas a separarem-se uma das outras, promovia uma excelente combinação com a adiposidade da crosta e com a crocância dos vegetais.   

A Companhia - Museu do DouroApós um corta-sabores super refrescante (sumo de lima, rosé D. Graça, hortelã e morango desidratado) seguiu-se o Medalhão de vitela com queijo da Serra, puré de batata Vitelotte, espargos e redução de vinho do Porto.  A doçura e acidez da redução,  os aromas fartos a frutos secos do puré (impecável e a estrela do prato!!!) e a intensidade do queijo foram excelentes anfitriões para a consistência firme, suculência e incrível sabor da vitela.  

A Companhia - Museu do DouroAs sobremesas como o Pastel de Leite Creme e Gelado de Canela (com uma harmonia de sabores abastados subtilmente quebrada pelo contraste de temperaturas) e a Mousse de Chocolate Branco e Morango, tapioca e pérolas de limão (a minha preferida com uma textura elegantemente cremosa, sabores equilibrados, texturas suplementares e alguma dose de surpresa com a saborosíssima calda de manga aprisionada no interior) mostraram que a arte e engenho do Fábio crescem, passo a passo,  com um objectivo bem definido. 

15.JPGMas mais importante que isso é perceber que foi construído um menu que no final faz sentido, deixando sempre evidentes pinceladas de cozinha de autor em todos os pratos. Os Chefes que aprecio conseguem criar essa marca identitária, presente em tudo o que fazem, seja num menu executivo ou num menu de degustação como este.

A Companhia - Museu do Douro O constante e camaleónico jogo de temperaturas, aromas, sabores e texturas, por vezes assente na comunhão e noutras no contraste, que agrada tanto ao palato como ao intelecto, promovido neste almoço, fez com que o Fábio já pertença a esse restrito grupo, pois está longe, a 100 passos, da esperança (que apesar de promissora) ainda limitava (a que encontrei no Longroiva) e cada vez mais perto, aí a uns 20 passos (;)) do objectivo que sei que ele traçou para si mesmo, que merece e que não o faz parar. 

A Companhia - Museu do DouroNo poema "Qualquer caminho leva a toda a parte" Pessoa refere que "Ir é ser. Não parar é ter razão". Depende apenas do Fábio fazer com que ambos tenhamos razão. ;) Que nunca te desvies desse caminho, sempre com grande lucidez, inovação e incessante capacidade analítica...

 

 

 

Herdade Grande | Uma questão de carácter

"Um monte de pedras deixa de ser um monte de pedras no momento em que um único homem o contempla, nascendo dentro dele a imagem de uma catedral." Antoine de Saint-Exupéry

Herdade GrandeA possibilidade de que o tipo de rochas sobre as quais está assente uma determinada vinha poder afectar os aromas do vinho que lá é produzido, conferindo-lhe a chamada mineralidade, já é debatida há algum tempo. É certamente uma ideia romântica poder contemplar uma vinha, olhar para o solo e ser capaz de lhe atribuir certos aromas e sabores. É por isto que há algo mágico na natureza temperamental do solo e que a ciência não consegue explicar.

Herdade Grande Alex Maltman, professor da Universidade de Aberystwyth (País de Gales) publicou um estudo ("Por que é que a mineralidade não tem o sabor dos minerais da vinha") no qual decidiu testar se os minerais que temperavam um determinado solo também estavam presentes nos vinhos lá produzidos, descobrindo que essa relação não existia.Herdade GrandeÉ com base neste estudo (e noutros que lhe sucederam) que chegamos à conclusão que não podemos definir a mineralidade como um determinado composto simultaneamente presente no solo/vinho, nem como a capacidade das videiras "sugarem" os minerais do solo, mas sim como uma combinação de muitos factores diferentes (ésteres, minerais, nível de acidez e nível de álcool) que acabam por dar ao vinho uma certa "noção" dos compostos químicos que existem no solo. Sendo assim, quando críticos de vinho se referem à “mineralidade”, estão na realidade a tentar aludir a uma característica multifacetada para a qual a ciência não tem uma definição.

Herdade GrandeÉ por isso que alguns enófilos, entre os quais eu, defendem que classificar um vinho simplesmente como 'mineral" é demasiado genérico, podendo/devendo ser dividido nos aromas onde a mineralidade parece estar dissimulada: no sal, na pedregosidade, na grafite, no iodo, na pólvora, no querosene ou na dureza. Um facto que demonstra, de forma indelével, que o conceito de "mineralidade" não deve ser usado de forma individual é o de verificarmos que o principal guia dos aromas vínicos (Le Nez du Vin - The Masterkit 54 aromas de Jean Lenoir, que aproveito para dizer que aconselho vivamente, um dia falo-vos sobre ele...) exclui esses ideia de mineralidade autocentrada e redutora. 

Herdade GrandeO que é certo é que esse conjunto de aromas/sabores que estão por baixo do guarda-chuva "mineralidade", quando conjugados com as castas certas e uma vinificação não evasiva, permite que as características de um determinado local possam ser expressas num vinho, dando-lhe pertença, identidade e carácter. Encontrei essa "relação simbiótica", nos quais um monte de pedras deixa de ser um monte de pedras para passar a ser um factor identitário, nos novos vinhos da Herdade Grande, o Herdade Grande Clássico Branco 2019 e Herdade Grande Clássico Tinto 2017.

Herdade GrandeO nome da propriedade onde a família Lança chegou há precisamente 100 anos, transformou-se numa das mais antigas marcas de vinho do Baixo Alentejo. Os primeiros rótulos criados, a partir de 1997, viriam a inscrever um nome que se tornaria reconhecido, colheita após colheita, pelos vinhos distintos, pela expressão de ousadia e de terroir  (um semi-planalto com diferentes exposições, marcado por solos de xisto incomuns na sub-região da Vidigueira) .

Herdade GrandeO Herdade Grande Clássico Branco 2019 (6.50€, 81 pts.) exibe uma cor amarela-cítrica cristalina e aromas a  damasco, limão, ananás, casca de tangerina, melaço e um pão torrado muito suave. No palato é fresco, elegante, ligeiramente untuoso e ... mineral (xisto molhado). Acompanhou muito bem umas Cavalas com batata assada e beurre blanc.

Herdade Grande

Por sua vez o Herdade Grande Clássico Tinto 2017 (6.50€, 83 pts.), de traje rubi intenso e límpido,  tem notas muito ricas a sous-bois, frutos silvestres, cereja, violetas, cassis, caramelo e espinheiro e um palato carnudo com taninos redondos,  frescura vincada e uma mineralidade quente (xisto partido)... Estes são mais 2 vinhos "à Diogo Lopes", vinhos com carácter e que nos dão muito mais do que aquilo que o preço possa fazer transparecer...

 

Cavalas com batata assada e beurre blanc:

-Cozam as batatas (sem descascar) em água temperada com sal;

-Cortem a cebola às rodelas finas e coloquem-nas no fundo da assadeira. Juntem tomates triturados, pimento vermelho em tiras, paprika, sal e pimenta branca;

-Temperem a cavala com sal e pimenta-branca. Façam uns cortes na cavala e coloquem paprika e noz-moscada. Coloquem a cavala na assadeira juntamente com as batatas;

-Misturem tomate triturado com a massa de pimentão, um pouco de Porto Tawny e os alhos picados, e reguem o peixe. Coloquem um pouco de louro entre as batatas.

-Levem ao forno durante 15 minutos a 220ºC;

-Sirvam com as batatas regadas com beurre blanc.

The Yeatman com programa de SPA e prova de vinhos | A vida é bela

"Apenas vivemos uma vez, mas da maneira que eu vivo, uma vez é suficiente." Frank Sinatra

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosNão, não vos vou falar da comédia dramática dirigida por Roberto Benigni (que por acaso é um dos filmes da minha - jovem - vida ;)), mas sim de como a voz, soletrou a vida.  Será difícil imaginar que ocasiões tão diferentes como um conjunto de assassinatos nas Filipinas, o baile relativo à tomada de posse do (felizmente quase ex-) presidente americano Donald Trump ou o funeral do rapper Nipsey Hussle, possam ter algo em comum.

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhos O certo é que em todas elas foi tocada a mesma música. Uma canção gravada em 1968 por Frank Sinatra, que passou a representar uma ideia particular de um individualismo moderno e que, de certa forma, parece ganhar ainda mais relevância nos tempos que correm. Lançada no ano seguinte, "My Way" é uma canção "esquisita" para quem, como eu, gosta de Sinatra.

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosNão é uma canção de amor sobre uma menina, um menino ou até mesmo uma cidade - é sobre o eu e como o eu vê a vida que levou. É quase uma carta de despedida em forma de legado musical, um canto do cisne. Will Friedwald, autor do livro "Sinatra! A canção és tu: a arte de um cantor", referiu que esta canção certamente não estaria nas TOP10 de alguém que se considerasse, verdadeiramente,  um grande fã de Sinatra. 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosMas se é assim tão diferente, porque é que Frank Sinatra a cantou? A resposta vai revelar que o "quando" é bem mais importante que o "porquê". Anka foi um ídolo adolescente da década de 60 do século passado que cresceu à sombra de cantores como Sinatra. Numa visita a França, Anka deparou-se com uma música especial chamada "Comme d'habitude", interpretada e co-escrita pelo cantor francês Claude François e que despertou a sua atenção. 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosDecidiu por isso comprar os direitos dessa música, reescrevendo a sua letra ... com seu herói musical em mente. O maestro Don Costa completou a equação, arranjando "My Way" para uma orquestra completa com um som largo e exuberante. Certo dia,  Anka recebeu um telefonema de Frank Sinatra e os dois saíram para um jantar, no qual Sinatra lançou uma "bomba": a de que se iria reformar por estar cansado da indústria e também porque Anka nunca lhe haveria escrito uma música, como havia prometido já há alguns anos.

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosE é aqui, neste preciso momento, que ambas as histórias se cruzam e surge a "My Way" que hoje conhecemos.  O impacto foi quase imediato, mas nem todos gostaram. Enquanto a crítica especializada e o público ficaram loucos por "My Way", a editora de Anka ficou furiosa por ele ter dado a sua obra-prima a outro cantor. No entanto, a atitude abnegada de Anka estava certa. O sucesso de "My Way" não se deve apenas à sua letra ou à sua melodia, mas também ao homem que a cantou pela primeira vez.

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhos"My Way" não era simplesmente o canto do cisne perfeito, era o canto do cisne perfeito para Frank Sinatra. Só Sinatra poderia ter conseguido a arrogância cool (tipo a do Mourinho das canções) necessária para dar à música todo o seu poder.  Só ele tinha autoridade moral para dizer: “Os registos mostram que sofri vários golpes mas que o fiz do meu jeito", introduzindo assim, uma espécie de individualismo moderno e abnegado, conceitos que aparentemente são contraditórios. 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosMas não o são... Se na antiguidade os nossos antepassados tiveram de lutar contra um meio exterior hostil para sobreviver (onde era necessário um individualismo puro e duro), nos nossos dias a maior parte dessas lutas passaram a ser travadas no nosso interior com o surgimento de uma espécie de “superego” que nos ajuda a controlar as emoções, egoísmos e individualismos em beneficio de uma simbiose colectiva.  

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosEsta individualidade constitui um dos primeiros fundamentos do bem-estar de uma sociedade, isto porque, como todos somos distintos uns dos outros,  só através da cultivação de um "bom eu" poderíamos desenvolver um "bom coletivo".  Haverá sítio melhor para cultivar um "melhor eu" que um SPA?  

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosOs SPAs de hoje são um centro de cura/nutrição da mente, do corpo e do espírito, e é por isso que as pessoas os procuram, na busca por uma boa forma, por paz de espírito, por mimos, por prazer, por saúde e por bem-estar. Se a tudo isto juntarmos um copo (quem diz um, diz alguns) de um (quem diz um, diz alguns ;)) bom vinho, o ramalhete fica completo no que diz respeito ao desenvolvimento de um "bom eu", eu pelo menos, não encontro melhor maneira de o fazer. :P 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosFoi exactamente nisto que os responsáveis do The Yeatman pensaram ao criarem o  'Wellness & Wine Day Retreat' que inclui uma massagem a dois e uma degustação de vinhos e aperitivos no Dick’s Bar & Bistro.  Neste Wellness & Wine Day Retreat a harmonia e o "bom eu" estabelecem-se com uma massagem de trinta minutos (que combina as propriedades terapêuticas das vinhas) e uma prova de três vinhos e aperitivos portugueses no bar do hotel. 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosTudo isto com vista panorâmica para as margens do rio Douro e a zona histórica do Porto, para desfrutar também a partir da icónica piscina interior ou da sala de relaxamento do SPA. Este programa está disponível de segunda a quinta-feira (excepto feriados), das 10h às 16h30 pelo valor de 105€ por pessoa.

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosPara as famílias há ainda a opção de babysitting, de modo a que o amor também possa ser vivido, calmamente, a 2. 😉 Esta é uma experiência ALTAMENTE recomendada pelo blogue e uma das das melhores ideias que vimos surgir ultimamente no sector!!!

 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosEm tempos difíceis como os que (infelizmente) estamos é ainda mais importante motivos que nos façam olhar para o copo com a perspectiva "meio-cheio" e que nos mostrem que a vida merece ser celebrada, apesar de, por vezes, "golpes" como um vírus possam surgir. A vida é uma aventura verdadeiramente emocionante, que apesar de todas as condicionantes, ocorre em apenas um acto, não havendo nem espaço, nem tempo, para um segundo "take" ou repetições. 

The Yeatman cria programa de spa e prova de vinhosAproveitemos, também por isso, estes tempos de confinamento, para sermos felizes com aquilo que normalmente negligenciámos, como a beleza de um pássaro, a jornada atarefada de uma abelha, uma boa música com significado filosófico, o sorriso de uma criança traquina, o planeamento de um jantar diferente, um bom livro que nos faz pensar, o cheiro da chuva ou o arrepio que nos provoca o vento gelado. Vivam a vossa vida com o máximo potencial que ela vos permitir a cada momento, continuem a lutar pelos vossos sonhos e planeiem o regresso a um "mundo normal" com experiências que vos ajudem a cultivar o vosso "bom eu" (a 2) como esta. Que daqui a uns anos, uns bons e longos anos, espero eu, também nós possamos dizer que vivemos a vida à nossa maneira.  A vida continua a ser bela, não a desperdicemos...

Quinta do Convento Reserva Branco 2018 | A batalha pelo amor e pelo vinho

"A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no adormecimento das encostas... E tudo aquilo — toda esta frescura lenta da manhã leve, era análogo a uma alegria que ele nunca pudera ter." Fernando Pessoa

Quinta do ConventoNum sector onde, aparentemente, existem apenas duas opiniões que realmente contam (sobretudo no sector internacional), as da Wine Spectator e as de Robert Parker (que frequentemente, demasiadas vezes, estão de acordo),  é um verdadeiro prazer descobrir alguém com uma visão diferente deste mundo que nos apaixona. É por isso que sigo regularmente as opiniões de outros monstros vínicos como Jancis Robinson e Sarah Ahmed, e de outras personalidades menos conhecidas do grande público, como  Madeline Puckette, Jean Lenoire e Alice Feiring.

Quinta do ConventoDiverti-me imenso enquanto li o último livro de Alice Feiring: "A batalha pelo amor e pelo vinho, ou como eu salvei o mundo da Parkerização". O mundialmente influente crítico americano Robert Parker preferia vinhos (sobretudo tintos) altamente extraídos que passassem por longos períodos de maturação em barris de carvalho e com elevado teor alcoólico. Por causa dessas preferências (que levavam consequentemente a melhores pontuações), muitos produtores começaram a criar vinhos Parkerizados,  densos, compotados, muito alcoólicos e não olharam a despesas quando necessitaram de comprar novas barricas de carvalho francês e americano, elevando consideravelmente o preço dos vinhos. 

Quinta do ConventoEste método de mudar um estilo de vinho para atender às preferências de Robert Parker, na esperança de obter uma pontuação mais alta é vulgarmente conhecida como Parkerização. Apesar, de também eu, por vezes, gostar de um tinto extraído e encorpado, esta não pode ser a bitola usada para medir a excelência de um vinho.  Foi por isso, que por diversas vezes, dei comigo a  aplaudir mentalmente os comentários/críticas de Feiring sobre o que ela chama de vinhos "falsificados": "fruta exagerada", "frutas chatas", "mais frutas", "fruta despropositada e sem sentido", "carvalho que enjoa", "carvalho opressor"  e "carvalho, carvalho, e mais carvalho!!!". A certa altura, ela cita uma nota de Parker de um Napa Cabernet de 95 pontos:

Quinta do Convento«Uma besta taninica primordial com uma concentração semelhante a sangue bovino, uma enorme cor púrpura opaca e notas de terra queimada, amoras, chocolate, cera, carne fumada e cassis. É como se eu pegasse num bife de Porterhouse, um famoso restaurante de Peter Lugar, o cozinhasse e envelhecesse em carvalho novo." A resposta de Feiring é tão corrosiva quanto fulminante: "Essa é uma óptima descrição de um vinho que eu rapidamente despejaria no ralo".

Quinta do ConventoFeiring é uma adepta confessa de vinhos puros, com arestas, com evidências genuínas de terroir e elegantes, desprezando muitas facetas do mundo moderno do vinho: leveduras cultivadas, barricas novas com muita tosta, fertilizantes químicos, viticultores não produtores, osmose inversa e o que ela vê como um excesso de confiança na ciência ao invés de uma abordagem mais empírica. Tudo isto, a propósito de um vinho que teria boa nota com Alice Feiring e que enervaria Robert Parker, o Quinta do Convento Reserva Branco 2018 (18€, 91 pts.).

Quinta do ConventoA vindima ocorreu a 23 de Setembro de 2018. Aquele dia impunha-se como o tempo certo para colheita uma vez que as uvas estavam num ponto de maturação ideal, o objectivo passava por salvaguardar a acidez, diferenciadora, verdadeira “espinha dorsal” de um vinho branco, traço de identidade, de origem, ou do que é o terroir de altitude da Quinta do Convento de São Pedro das Águias. Depois, a evolução na adega e nos dez meses de barrica de carvalho francês viriam a confirmar o seu enorme potencial. Este é o primeiro Reserva Branco com assinatura Kranemann Wine Estates, propondo a máxima expressão de elegância e frescura desse Douro tão especial que é o Vale do Távora.

Quinta do ConventoExibe uma sedutora cor amarelo-cítrica, clara e cristalina e aromas muito puros a limonete, flor de laranjeira, cardamomo e tília. A fruta quase que é preciso procurar em segundo plano, surgindo o limão e o damasco. No palato está cheio de elegância, de frescura lenta e alegre e de uma mineralidade (xisto molhado) bem vincada.

Quinta do ConventoQuer a sua acidez, quer as notas subtis da barrica dão-lhe uma aptidão gastronómica invejável, sobretudo em pratos mais untuosos como o "Risoto" de bulgur, pimentos, cogumelos Shimeji e ervilhas com 3 texturas.  Este é um excelente exemplo do que um vinho branco do Douro deve ter: elegância, mineralidade, frescura, e identidade. Toda essa frescura, lenta da manhã leve, era análoga a uma alegria que Parker nunca pudera ter. ;)

 

"Risoto" de bulgur, pimentos, cogumelos Shimeji e ervilhas com 3 texturas:

-Num tacho levem a ferver um grande volume de água com sal. Juntem a Quinoa e Bulgur (usei a mistura da Tipiak) e deixem cozer, fervendo durante 12 minutos. Decantem de modo a ficarem com a quinoa e bulgur sem água;

-Noutro tacho façam um refogado com alho, cebola, pimentos, ervilhas e cogumelos Shimeji;

-Façam um puré de ervilhas e guardem parte dele para fazerem umas "pequenas moedas" de ervilha que vão levar ao forno para desidratar e fazer umas chips de ervilha;

-Voltem a introduzir no tacho o bulgur, acrescentem manteiga, queijo parmesão, pimenta preta, um pouco de noz-moscada e brandy. Cozinhem 5 minutos;

-Ao empratar coloquem na camada de inferior o puré de ervilha, depois o risoto de bulgur e no top as chips de ervilha. 

Casa Chef Victor Felisberto | Uma jangada entre o ontem e o amanhã

"Sempre notei que as pessoas falsas são sóbrias, e a grande moderação à mesa geralmente anuncia costumes dissimulados e almas duplas." Jean-Jacques Rousseau

Casa Chef Victor FelisbertoA jangada de Pedra de José Saramago é um romance extraordinário com um enredo fantástico e envolvente, personagens carismáticas (até sedutoras), juntamente com umas noções políticas e filosóficas bastante profundas. Interpretar o Brexit, depois de ler este livro publicado em 1986(!!!), faz-nos perceber a genialidade deste escritor. A narrativa é muito imaginativa. A Península Ibérica separa-se da Europa e começa a flutuar no Oceano Atlântico. Cinco pessoas e um cão, que passaram por acontecimentos bizarros e que podem (ou não) estar relacionados com a península separatista, encontram-se nessa jangada peninsular e iniciam uma bela aventura juntos.

Casa Chef Victor FelisbertoUm desses personagens faz constantemente uma linha mágica na ilha e que é impossível de apagar,  outro torna-se um sismógrafo, outro é perseguido por pássaros, outro exibe uma capacidade de lançamento de pedras invejável e outra desfaz uma meia ... infinitamente. O cão também revela capacidades de percepção extraordinárias.  Os cinco, mais o cão (não quero ter problemas com o PAN ;)) iniciam assim a procura por uma explicação para o comportamento rebelde da península. Durante o percurso errante desta no oceano Atlântico, percebe-se que a mesma está em rota de colisão com o arquipélago dos Açores.

Casa Chef Victor FelisbertoPosteriormente e de forma inexplicável, a Península Ibérica desvia-se dos Açores e desloca-se para Norte, permitindo o regresso a casa das populações deslocadas. O estilo de escrita de Saramago, que o vai tornar mundialmente famoso, tem neste livro uma etapa muito peculiar. Não há aspas ou quebras de linha para o diálogo. Às vezes, as frases e os parágrafos têm muitas palavras, misturando-se nas falas dos personagens com as do narrador.

Casa Chef Victor FelisbertoApesar de todos estes predicados e da (assustadora) actualidade da mensagem, o que mais gostei n'A jangada de pedra é o motivo do "desprendimento" da península, no qual é traçado um paralelismo interessante com o movimento transformador que por vezes ocorre nas pessoas. A interpretação da viagem ibérica, de uma península transformada em jangada por Saramago, mostra-nos a importância da busca de um sentido para a mudança e do questionamento quanto aos motivos que nos fazem estar presos a certos lugares. 

Casa Chef Victor FelisbertoO trajecto dessa jangada pelo mar, não simboliza apenas a viagem existencial da nação portuguesa que procura (a)firmar-se noutro ponto do mundo com uma nova autonomia política, económica e social, através do mar "déjàvunamente" desconhecido, mas também da nossa própria viagem, enquanto indivíduos, que devemos promover sempre que sentirmos a necessidade de conhecer novos horizontes, de quebrar velhas fronteiras e cimentar novas alianças. Trajecto esse que é bastante familiar ao Chefe Victor Felisberto, do qual vos vou falar hoje.  

Casa Chef Victor FelisbertoQuem se interessa por estas coisas da gastronomia sabe que o Chefe Vitor Felisberto é uma enciclopédia culinária, um mentor de alguns dos mais afamados Chefes do país e uma lenda viva da melhor gastronomia portuguesa. Nascido na Golegã, correu mundo a lavar pratos, estudou na prestigiada Cordon Bleu, conquistou uma estrela Michelin em cada um dois restaurantes por onde passou (Aquarius Caldea - Andorra e Portal - Reino Unido) e vendeu a sua receita de fondant de chocolate à Nestlé. Deste 2018 está em Abrantes, a 100 metros da EN2, no Restaurante Casa Chefe Victor Felisberto a "passear-se" com a excelência do seu currículo.

Casa Chef Victor FelisbertoPratica uma cozinha aparentemente simples, mas refinada, carregada de sabor e potenciador das mais valias dos ingredientes frescos e locais. Comi lá dos melhores pratos do ano passado, umas Ovas de Choco com azeite, alho e coentros divinais, carregadas de mar, untuosidade e sabor. Valem, por si só, uma viagem a Abrantes. O Bacalhau no forno com batata a murro estava cozinhado no ponto, era fino, delicado, vegetal e ligeiramente fumado, provocando uma explosão de voluptuosidade salina e sabores apurados, simplesmente  ... delicioso!!!

Casa Chef Victor FelisbertoNas carnes o Pernil confitado em forno a lenha estava super rico, e sedoso (fica a cozinhar durante a noite para adquirir esta textura de veludo), com imenso sabor e carregado de aromas, sucos e memória. Por sua vez o aromático Assado Misto com naco de vitela e cachaço de Porco preto estava tão intenso quanto prazeroso.

Casa Chef Victor FelisbertoQuem me conhece sabe que não sou muito de doces, sobretudo depois de um repasto intenso, epifânico e sem moderação como o anterior, no entanto,  a Tarte Tatin com crumble e gelado de baunilha, o Pastel de Nata Fondant com shot gelado de canela e nata e o Cremoso de Brownie com gelado de caramelo e nozes são propostas às quais não se consegue ficar indiferente. 

Casa Chef Victor FelisbertoSobranceria nos aromas, luxuria na apresentação, riqueza nos sabores, originalidade nas texturas e genialidade na confecção. Do melhor que se faz no nosso país!!! Esta doçaria tem ainda o condão de promover um contraste conceptual muito engraçado com os pratos principais, tornando qualquer refeição numa viagem frenética por entres diferente eras, estilos, técnicas e inspirações. 

Casa Chef Victor FelisbertoEste almoço demorou mais de 3 horas, foi regado com alguns dos melhores vinhos regionais e teve sempre um serviço muito próximo e amigo. Abrantes é um daqueles lugares pelos quais, sempre que passei, foi em viagem para outro sitio qualquer, mas descobri, neste dia, que é uma cidade muito atraente e interessante, com um centro histórico muito bem conservado, um castelo e uma fortaleza, que valem, sem dúvida nenhuma, uma visita.

Casa Chef Victor FelisbertoAinda assim, na minha memória, ficou mais vincada a excelência gastronómica que promove uma bonita relação entre a tradição de ontem (nos salgados) e a inovação do amanhã (nas sobremesas), levada a cabo pelo estrelado Chefe Victor Felisberto, que não teve dúvidas nem hesitações em seguir o seu coração (e estômago ;)), pegar na sua jangada, deixar os prémios, reconhecimento e fama, e voltar a começar tudo de novo, numa pequena cidade na planície ribatejana.  Parabéns e obrigado por um dos melhores momentos que o blogue teve no ano passado.

Novas colheitas Costa Boal | Uma nuvem na toca do coelho

"«Mas o que quer dizer este poema?» - perguntou-me alarmada a boa senhora. «E o que quer dizer uma nuvem?» - respondi triunfante. «Uma nuvem?» - disse ela - «umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...»" Mário Quintana

Novas colheitas Costa Boal150 anos após o seu lançamento, Alice no País das Maravilhas permanece um clássico, desde a cultura pop até ao cinema, passando até pela gastronomia. Popularidade essa que é resultante do seu elenco criativo, poemas fantásticos e cenas inusitadas, muito apreciados ao longo de diversas  gerações. A história desafia a lógica da maneira mais fantástica possível: bebés que se transformam em porcos, lagartas que distribuem conselhos, flores que insultam, lagostas que dançam e croquetes que brincam com flamingos. Devido a todo este cenário encantado podemos ser levados a pensar que este conto de Lewis Carrol é apenas mais uma história infantil e que por isso não deve ser levada muito a sério. 

Novas colheitas Costa BoalNo entanto, quando lemos com mais cuidado e atenção, percebemos que existe lá mais filosofia, espiritualidade, política, economia, normas sociais e metáforas culturais que em muitos livros (tidos como) para adultos. Nesta narrativa, os diferentes elementos do enredo cruzam-se com as diferentes etapas do crescimento de Alice, por entre a sua infância e a sua adolescência. Devido a isto, a criança-adolescente vê-se embrulhada numa busca romântica pela sua própria identidade, através da compreensão da lógica/regras dos diferentes jogos e que lhe vão dar noções de autoridade, de tempo e de vida. Uma das metáforas mais felizes que podemos encontrar nesta obra tem a ver com a toca do Coelho Branco. 

Novas colheitas Costa BoalA descida por esse buraco na verdade significa uma subida significativa na busca por um conhecimento verdadeiro. Será que essa toca, é um buraco filosofal? Poderá ele conduzir-nos a um mundo onde podemos voltar ao cérebro "não moldado" de uma criança?  Quando abordamos o livro com isto em mente, as suas páginas oferecem-nos interpretações interessantes e significativas de diversos aspectos da nossa vida, sendo uma delas relativa ao tempo e o modo como o passamos, ou deixamos passar. O tempo no País das Maravilhas parece ser algo turbulento e confuso. As personagens correm a todo o momento, ansiosas,  predominando uma sensação de pressa. 

Novas colheitas Costa BoalTudo parece acontecer na hora certa ou então abruptamente. É exactamente aqui que o tempo começa a ser questionado por Lewis Carroll. Quando o Coelho Branco chega atrasado logo no início da história (dando início às principais aventuras), Alice questiona-o sobre a duração da eternidade — algo imensurável, mas recebe uma das respostas mais marcantes do livro: “Às vezes dura apenas um segundo”. O Coelho Branco é, em muitos aspectos, uma metáfora do burocrata moderno desgastado pelo tempo e pela pressão implacável a que a falta dele inevitavelmente conduz. É claro que ninguém na sociedade contemporânea acredita, verdadeiramente, que esteja mais ocupado do que a geração anterior, preferimos acreditar que estamos antes "constantemente ligados" e conectados, através de uma nuvem digital,  a mais pessoas nas diferentes vidas da nossa vida. 

Novas colheitas Costa BoalSe pensarmos na diferença entre a vida pré-primeira Guerra Mundial (onde 90% da população vivia da agricultura); e a vida pós-primeira Guerra Mundial (onde essa situação foi revertida com a imergência da vida urbana), percebemos que o tempo na nossa vida deixou de ser medido pelo relógio sazonal da agricultura para passar a ser consultado num relógio, sempre atrasado e veloz, de um Coelho Branco. Numa determinada etapa da nossa vida, longe da altura em que desejávamos que os dias passassem rápido e que os anos se sucedessem rapidamente, parece que começamos a sentir a necessidade de segurar o tempo: queremos deixar de ser o Coelho Branco. 

Novas colheitas Costa BoalÉ aqui que os segundos passam a ter um valor incalculável. A maturidade é algo que nos faz ter não só a capacidade mas também a coragem de nos desfazermos do ímpeto de querer alcançar o máximo de tudo no mínimo de tempo possível. Com esse "desprendimento" o passar dos dias passa a ter um outro significado.  E nesse caso, sim, um segundo pode ter a duração de uma eternidade. Mas isso não é magia, é maturescência, aquela que nos faz saber esperar e dar valor ao tempo e às coisas que só o tempo permite alcançar. 

Novas colheitas Costa BoalNo mundo dos vinhos, por vezes, este modo coelho-brancamente ansioso de encarar o "negócio", de produzir para ontem, do imediato, do hoje, predomina, mas noutras vezes, há quem tente entrar na toca e abrandar as coisas, acrescentando valor através do tempo. Os novos vinhos do Douro da Costa Boal são por isso uma lufada de ar fresco que sai dessa toca. São estruturados, com uma acidez viva e marcas de pertença ao lugar onde nasceram, características essas que honram a sua origem.

Novas colheitas Costa BoalNo entanto, e apesar de já darem uma prova bonita, não foram pensados, apenas, para consumo imediato. São vinhos para se ir conversando de vez em quando, sem olhar para o relógio, com tempo e paciência: vinhos com longevidade. Começo por vos falar acerca do Costa Boal Tinto Cão 2017 (35 €, 87 pts.). De cor retinta, carrega notas delicadas e subtis de frutos vermelhos, groselha, framboesa espinheiro, urze, cedro e pimenta preta. 

Novas colheitas Costa BoalNo palato passeia com taninos redondos, elegância, frescura e equilíbrio. A percepção vegetal retronasal faz com que ganhe uma maior largura. Por sua vez, o rubi denso Costa Boal Sousão 2017 (35 €, 89 pts.) exibe no nariz, mirtilos, amoras, violetas, cassis, tabaco, cacau e açafrão. Na boca é mais fresco que o Tinto Cão e conta também com taninos mais austeros. É encorpado, complexo, longo e carnudo.

Novas colheitas Costa BoalPara o final, o melhor (e um que não vai agradar a todos): Costa Boal Homenagem Grande Reserva 2015  (35 €, 90 pts.),  produzido a partir de uvas colhidas numa vinha da Costa Boal localizada em Cabêda, Alijó. É um vinho de parcela e de lote, incluindo no conjunto as castas Códega de Larinho, Rabigato, Gouveio e Arinto. Teve estágio de 18 meses em barrica de carvalho francês e foi refrescado com um lote da colheita de 2017, da mesma parcela.

Novas colheitas Costa BoalDe cor amarela-palha tem um nariz tão bonito quanto subtil, com limão, pêssego, maçã-verde, melão, avelã tostada, acácia e borras. É um vinho muito vivo, moderno, ligeiramente "verde", fresco e super elegante, características que lhe garantem a ambicionada longevidade. Há que não ser Coelho Branco e saber esperar pelo seu melhor. Acompanhou, na perfeição, um arroz caldoso de lavagante.

Novas colheitas Costa BoalComo a alarmada e boa senhora de Mário Quintana referiu, a nuvem por vezes quer dizer chuva, noutras vezes bom tempo. Nos tempos, digitais, que correm é um conceito que engloba os grandes sistemas (redes de dados online) que estão distantes demais para haver interacção física, mas que ainda assim, nos afectam e nos fazem estar sempre ligados uns aos outros. Segundo uma antiga tradição chinesa, a nuvem simboliza outra coisa, a transformação que devemos sofrer, renunciando ao nosso ser perecível imediato de modo a alcançarmos uma maior longevidade, por vezes, até a eternidade, algo que quem pensou estes vinhos tem em mente.

Arroz caldoso de lavagante:

-Num tacho façam um refogado com azeite, cebola, dentes de alho e pimentos, previamente descascados, lavados e picados finamente (deixem cozinhar até que fiquem douradinhos);


-Reguem com polpa de tomate, vinho branco, brandy e tabasco,  acrescentando uma folha de louro e um ramo de coentros. Deixem refogar mais um pouco. Adicionem água e rectifiquem os temperos.


-Juntem o marisco (usei ameijoa, camarão e lavagante) e o arroz e deixem cozinhar durante cerca de 20 minutos (até que tudo fique cozido). 

Cais da Villa | Assim Nasce Uma Estrela

"A boa comida é como a música que se saboreia, como a cor que se cheira. Há excelência em seu redor." Gusteau 

Cais da VillaA apreciação final do crítico gastronómico Anton Ego, personagem do filme Ratatouille, fornece-nos aquilo que pode ser uma visão surpreendente sobre a gastronomia e tudo aquilo que a rodeia. No filme, Ego enamorado pelo facto das suas críticas poderem cimentar ou destruir a fama de um determinado restaurante, repreende publicamente Gusteau pela democratização da gastronomia gourmet perpetrada por este Chefe no seu restaurante em Paris, o Gusteau's. Depois da morte de Gusteau, Ego quase que se alegra com a sua partida, em parte porque um novo Chefe, terá agora, forçosamente, de atrair o mediatismo que Gusteau havia conseguido, e Ego estaria na linha da frente, para o permitir ... ou não.

Cais da VillaCerta noite, o poderoso crítico, decide ir jantar ao Gusteau's e pede ao novo Chefe que o surpreenda. Remy, esse chefe, sabendo aquilo que está em jogo, o prestígio do restaurante, decide arriscar e preparar ratatouille, um prato tradicional francês feito com vegetais. Quando Anton Ego o experimenta, o seu sexto sentido entra em acção, aquele que resulta da importância das nossas memórias ao saborear uma refeição. É o toque pessoal de Remy que consegue impressionar Ego, fazendo-o recuar à sua infância no campo e à deliciosa ratatouille que a sua mãe lhe havia preparado. Graças a este sucesso, o restaurante Gusteau's recupera todo o seu prestígio no mundo da cozinha, levando Anton Ego a fazer o seguinte discurso:

Cais da Villa"De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamos pouco e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas negativas, que são divertidas de escrever e ler, mas a dura realidade que, nós críticos, devemos encarar, é que no quadro geral, a mais simples porcaria, talvez seja mais significativa do que a nossa crítica. Mas, há vezes em que um crítico arrisca, de facto, alguma coisa, como quando descobre e defende uma novidade. O mundo costuma ser hostil aos novos talentos, às novas criações. O novo precisa ser incentivado. Ontem à noite eu experimentei algo novo; um prato extraordinário de uma fonte inesperadamente singular. Dizer que tanto o prato, quanto quem o fez, desafiam minha percepção sobre gastronomia, é extremamente superficial. Eles conseguiram abalar minha estrutura... Nem todos podem se tornar grandes artistas, mas um grande artista pode vir de qualquer lugar."
Cais da VillaEu, uma espécie de crítico gastronómico, tal como os mais consolidados, também gosto da descoberta de algo novo, e é isso que, por vezes, me faz correr um país por causa de um Chefe ou de um restaurante. Em busca de algo que não estou à espera. Um dos mais recentes momentos inusitadamente Anton Ego foi no Cais da Villa com o Chefe Daniel Gomes

Cais da VillaOuvi falar do restaurante há uns anos através da sua ex-relações públicas, a Celeste Pereira. Por um motivo, ou por outro, fui sempre adiando a visita a este restaurante. A roadtrip pela EN2, estrada que passa a apenas 50 metros do restaurante, foi a desculpa ideal para honrar o compromisso que havia feito com a Celeste.   O Cais da Villa é um espaço de memória e modernidade edificado num espaço com valor histórico, elegância e conforto, resultado de uma reabilitação cuidada do centenário armazém ferroviário da estação de Vila Real. 

Cais da VillaNeste espaço de ambiente informal funciona o restaurante à carta, o wine bar com serviço de tapas e bifes, a garrafeira, uma esplanada (para os dias de sol) e um balcão a toda a largura, aberto sobre a cozinha do restaurante, que deixa antever um festival de sabores, texturas e cheiros.  A conduzir este comboio gastronómico, como já vos havia referido, está o Chefe Daniel Gomes que criou um menu de degustação sedutor, rico, complexo e que na sua heterogeneidade, no final, faz sentido nos sentidos que nos desperta.

Cais da VillaUm menu fino, elegante, inteligente que, com certeza, orgulha Douro e a gastronomia da região transmontana. Um menu que democratiza a comida ecléctica no interior do país e que é harmonizado com a mestria do escanção Luís Ferreira, que retira o melhor de cada vinho para fazer sobressair os sabores no palato.  Esse menu começou com as boas-vindas do Chefe: Esparguete de pepino, sashimi de salmão, funcho, figo caramelizado com vinho do Porto, brioche,  presunto e gel de beterraba. Muito rico ao nível das texturas e sabores e com uma untuosidade fresca, muito assertiva e prazerosa.

Cais da VillaSeguiu-se um Tataki de Atum crocante de Húmus de grão de bico, puré de abacate, gel de salsa,  chicória , vinagrete de citronela e gengibre. O peixe era tão amanteigado e fresco que na verdade não precisava de grande tempero. No entanto essa dose extra de sabor deu-lhe mais camadas de texturas e gostos, fazendo com que cada garfada provocasse pequenas explosões de sabor no nosso palato.

Cais da VillaEste prato que mistura de forma muito bonita e singela diversas origens, técnicas e ingredientes, é um bom resumo daquilo que é o Cais da Villa: modernidade e inovação, assente no produto e tradição. Para o Gaspacho de Tomate Coração de Boi, melancia e vieira braseada, foi usado o tomate ex-libris do restaurante e umas das paixões do Chefe, talvez resultante do tempo passado com a Celeste. ;) 

Cais da VillaExibia uma frescura, uma acidez e uma intensidade de sabores viciantes. A combinação com a alma salina e delicada das vieiras fizeram o prato crescer ao nível do equilíbrio e complexidade. Este é um daqueles que não deveria sair da carta, quando o tomate o permitir. 

Cais da VillaCom o Supremo de corvina com lulas salteadas em manteiga de citrinos e coentros com creme de espargos chegou um peixe super suculento com um toque a fumo delicioso, umas lulas ligeiramente amargas e com os temperos na dose precisa e um creme de espargos tão voluptuoso quanto pecunioso. Em conjunto uniram-se nas suas heterogeneidades provocando uma sensação organoléptica muito rica.

Cais da VillaAinda nos peixes, Polvo grelhado com batata ao alho e migas de couve, pimento e azeitonas. Com os tentáculos crocantes por fora, quase que levemente confitados, e por dentro gulosamente tenros e suculentos, o polvo estava irrepreensível.  Para além de um nota ligeiramente picante e doce, o pimento conferiu um pano de fundo vegetal, fresco e adstringente ao polvo. As especiarias contribuíram para seduzir o palato e a originalidade das migas de couve para apaixonar o intelecto.

Cais da VillaNas carnes, tivemos o prazer de saborear a untuosidade requintada da Presa de Porco Bísaro, favas guisadas com cuscos Transmontanos e fumeiro tradicional. Essa untuosidade era conjugada com a acidez, intensidade e riqueza aromática dos restantes ingredientes, provocando um jogo de sabores incrível, que apesar de ter uma apresentação mais eclética, no final nos transportava para sabores tradicionais. 

Cais da VillaOs cuscus também são dignos de destaque, um prato de conforto, cozinhado com tempo e favas, pareciam um risotto, com alma duriense, inebriantes. Se os cuscus me fizeram recordar um risotto, o próximo prato assemelhava-se a um petit gâteau transmontano. Posso-vos já relevar que é a sobremesa do ano para o blogue .;) 

Cais da VillaDenomina-se Pão-de-ló à CAISDAVILLA e é servido com uma base de creme de ovos, frutos silvestres e sorvete de limão. Passeia-se sedutoramente na boca entre o quente e o frio, numa experiência glorifiada pelos contrastes. É muito saboroso, bem pensado e estrategicamente ponderado, como uma roda-viva de sensações e texturas que celebra o final da refeição. Tão bom que não acrescento muito mais sobre ele, apenas sugiro que o provem...

Cais da VillaSobre o papel dos críticos, Theodore Roosevelt disse certa vez que: “não é o crítico que importa, nem aquele que mostra como o homem forte tropeça, ou onde o realizador das proezas poderia ter feito melhor. Todo o crédito pertence ao homem que está de facto na arena”.

Cais da VillaO grande homem que se encontra nesta arena gastronómica é Daniel Gomes, e não arrisco nada, nadinha mesmo, ao dizer, uns anos antes de isso se materializar, que estamos a assistir ao nascimento de uma estrela, daquelas estrelas que contam para os Chefes, é só dar tempo ao tempo e condições ao homem. Alma, conhecimento e capacidade já ele os tem. Há excelência em redor deste grande artista. ;)

Parabéns e obrigado pelo menu incrível que concebeste.