Herdade da Lisboa | Do Alentejo, com espendor
"O erro vulgar consiste em confundir o desejar com o querer. O desejo mede obstáculos, a vontade vence-os. Querer é quase sempre poder: o que é excessivamente raro é o querer." Alexandre Herculano
Todos nós, aqueles que são pais ou então aqueles que contactam regularmente com crianças, já fizemos aquela brincadeira de dar a provar limão aos pequenotes, para nos deliciarmos com a sua expressão de espanto, no preciso momento em que o azedo é apresentado ao seu palato. Essa percepção é uma das mais vincadas que podemos ter ao provarmos algo. Aliás, para alguns de vós, só o simples facto de estarem a ler estas palavras, deve de ter provocado uma pequena salivação extra. É essa mesma sensação que nos pode ajudar a inferir o nível de acidez de um vinho.
Essa acidez vínica é bem mais importante do que aquilo que possamos inicialmente pensar. Ela faz com que (tal e qual como acontece quando colocamos sumo de limão no gin, num pudim ou num peixe grelhado) os outros sabores sejam realçados, criando uma sensação de maior harmonia. Sem essa acidez, o vinho podia tornar-se demasiado pesado, plano, sem vida, desequilibrado e chato.
Mas uma maior acidez detectada no nosso palato não significa obrigatoriamente um menor pH. (Caso não tenham estado atentos nas vossas aulas de Física e Química, relembro que o pH é uma escala numérica utilizada para especificar a acidez ou basicidade de uma solução aquosa. Entre 0 e 7 a solução é ácida, 7 é neutra, e entre 7 e 14 a solução é básica. Quanto menor este valor mais ácida é a solução).
Sem entrar em muitos detalhes podemos resumir que a acidez total indica a concentração total de ácidos presentes no vinho, enquanto o nível de pH indica a intensidade desses mesmos ácidos. Por exemplo, se na ficha técnica de um vinho lermos que ele tem 6 g/l de acidez total e um pH de 3.2, ele levará a uma percepção de acidez mais vincada do que um vinho com 4 g/l de acidez total com o mesmo nível de pH.
Do mesmo modo, a acidez percebida no palato pode não estar relacionada com a acidez real (medida na concentração de ácidos ou através do pH). Se não vejamos. Entre o sumo de limão e a Coca-Cola qual vos parece ser o mais ácido? O limão? Errado!!! Tecnicamente, estas "soluções" têm o mesmo pH (cerca de 2,5) e uma concentração total de ácidos bastante próxima, mas como a Coca-Cola é muito mais doce, não sentimos tanto essa acidez.
É por isso que no mundo (fascinante ;)) dos vinhos usamos frequentemente a expressão "fresco" para caracterizar essa percepção de acidez no palato e que não advém apenas das características "cientificas e mesuráveis" como a acidez total e o pH. Nas regiões mais quentes as uvas amadurecem com mais facilidade, resultando numa menor acidez, maiores teores de açúcar e cores mais carregadas.
Pelo contrário é mais provável encontrarmos vinhos mais encorpados e frutados numa região quente do que numa região mais fria, na qual as uvas têm mais dificuldade em amadurecer. Nestes climas mais frios são induzidos níveis mais elevados de acidez, níveis mais baixos de açúcar e um corpo mais leve, resultando em vinhos mais secos, finos e refrescantes.
Virando esta discussão para o nosso Alentejo, diríamos que os vinhos lá produzidos se enquadrariam mais no grupo dos "mais encorpados e menos frescos". Se isso é verdade para a maioria dos casos, também existem felizes excepções, sendo uma delas o singular terroir da Vidigueira. Graças à sua barreira natural provocada a Norte pela Serra do Mendro, o clima mediterrânico local distingue-se pelas amplitudes térmicas elevadas, com noites consideravelmente frias para o padrão alentejano e que emprestam aos vinhos uma inusitada acidez, elegância e em alguns casos uma certa finesse aristocrata.
Os novos vinhos da Herdade da Lisboa exibem todos estes predicados, conjugando-os com um novo paradigma para os vinhos varietais alentejanos. Esta nova gama de topo da Herdade da Lisboa, na Vidigueira, assume-se como uma colecção premium de vinhos varietais, edições limitadas (não chegam a 1% do total da produção) e exclusivas do melhor de cada casta, em cada ano. Para esta estreia, a Herdade da Lisboa apresentou na semana passada o branco Viognier 2019 e o tinto Trincadeira 2019.
Integrando a marca que notabilizou a Herdade da Lisboa nos anos 80, o Paço dos Infantes Chardonnay 2020 (13.50 €, 88 pts.) foi também incluído nas novidades desta primavera. De cor amarela cítrica cristalina exibe notas muito puras a limão, maçã verde, sílex e baunilha. O estágio de 6 meses em barrica carvalho francês de 500 litros deu-lhe mais comprimento, cremosidade e complexidade. Tudo isto conjugado com uma bela acidez faz com que este vinho seja muito prazeroso na prova.
Por sua vez o Herdade da Lisboa Viognier 2019 (56,00€ a caixa com uma garrafa de Herdade da Lisboa Trincadeira 2019 + uma garrafa de Herdade da Lisboa Viognier 2019, 90 pts.) foi fermentado em barricas de carvalho francês de 500 litros durante 20 dias, sendo depois submetido a um estágio de 6 meses sobre borra fina com batônnages periódicas. O resultado foi um vinho amarelo palha límpido, com notas complexas a acácia-lima, uvas frescas, damasco, noz-moscada, alguma pedrogosidade (xisto molhado) e ligeiros apontamentos arbustivos. No palato é cheio, untuoso e muito fresco, prolongando-se de modo muito elegante.
Combinou na perfeição com um Arroz de favas e enchidos com veja dos Açores grelhada. Nesta prova, o meu preferido foi, contudo, o Herdade da Lisboa Trincadeira 2019 (56,00€ a caixa com uma garrafa de Herdade da Lisboa Trincadeira 2019 + uma garrafa Herdade da Lisboa Viognier 2019, 92 pts.), que estagiou 12 meses em barrica de carvalho francês de 500 litros. Com uma "enganadora" rubi-clara cristalina, carrega aromas frescos, complexos e sedutores a mirtilos, ameixa vermelha, pimenta preta, canela, arruda e uns ligeiros fumados. Na boca exibe uns taninos polidos e é crocante, fresco e muito complexo. É o melhor Trincadeira que provei até hoje.
Este vinho também combinou bem com o Arroz de favas e enchidos com veja dos Açores grelhada mas portou-se ainda melhor com uma Bolacha de foie gras, tempura de legumes e gelado de beterraba. Todos estes vinhos têm a particularidade de terem sido desenhados de modo a que a madeira contribuísse o máximo possível para a complexidade e textura dos vinhos, sem que isso manchasse minimamente a qualidade/beleza da fruta, a particularidade da mineralidade e a elegância da sua prova, deixando, desta forma, que o terroir da Vidigueira se expressasse todo o seu esplendor.
O que vem mostrar que nisto dos vinhos, o que existe "à nascença" não condiciona, de modo irreparável, aquilo que queremos fazer. Querer é quase sempre poder: o que é excessivamente raro é o querer. Ainda bem que na Herdade da Lisboa querem ... fazer bem, fazer diferente e fazer com sentido. ;) Parabéns!!!
Arroz de favas e enchidos com veja dos Açores grelhada:
-Partam em cubos pequenos uma linguiça, um pouco de toucinho fumado e uma chouriça, acrescentando-os a um refogado de cebola;
-Acrescentem as favas (sem peles), deixem dourar um pouco e acrescentem o quadruplo do volume do arroz que vão cozinhar, temperando com sal, pimenta, noz-moscada e um pouco de tabasco;
-Depois das favas terem cozinhado em lume brando por 10 minutos acrescentem o arroz carolino, retificando os temperos.
-Grelhem os lobos de veja (5 minutos de cada lado, começando com o lado onde estavam as escamas para baixo) em azeite e alho, temperando com sal e pimenta preta.
Bolacha de foie gras, tempura de legumes e gelado de beterraba:
-Partam uma batata doce (de preferência de polpa laranja) em rodelas grossas e levem ao forno a 210ºC, apenas com sal, pimenta e oregãos, até as rodelas estarem alouradas. Esta vai ser a base da bolacha;
-Partam o foie gras com a mesma espessura (e diâmetro) da rodela de batata doce;
-Façam uma tempura com alho francês, cebola, pimento, cenoura e beringela;
-Para o gelado cozam as beterrabas já descascadas em água e sal (reservem uma para levarem ao forno). Triturem-nas e juntem um pouco de ginja, açúcar mascavado, natas magras, sal e sumo de um limão e cozinhem por 2 minutos. Levem ao congelador para usarem mais tarde (necessita de pelo menos 4 horas antes de ser servido);
-Montem a bolacha (base de batata doce, depois foie gras, depois a tempura e por último umas batatas fritas finíssimas).