Antónia Adelaide Ferreira 2016 | O ouro dos 300 mil
"O Douro visto daquele píncaro é o Paraíso prometido em todas as lições de catequese. É grandiosamente belo! As montanhas entrelaçam-se, magníficas, para, de repente, se escancararem em vales matizados com toda a paleta de verdes e castanhos que Deus inventou. E pelas encostas, as quintas vão pintalgando de branco o silêncio majestoso por onde o Rio serpenteia." Francisco Moita Flores
Há quase 160 anos (decorria o dia 12 de Maio de 1861) Dona Antónia, a Ferreirinha, quase perdeu a vida (ironicamente) nas águas do Douro, um rio que tanto adorava e que tanto acarinhou. Saída de barco da Quinta do Vesúvio, uma das suas inúmeras quintas, na companhia do seu segundo marido, Francisco Torres, e de um grupo de amigos, entre os quais o Barão Forrester (dono da casa de Vinho do Porto Offley), Dona Antónia enfrentou a morte quando a embarcação em que seguia naufragou à passagem pelo então traiçoeiro Cachão da Valeira, no troço onde actualmente se encontra a barragem.
Reza a lenda que Dona Antónia se terá salvo devido ao facto das suas saias rodadas terem formado uma espécie de balão que a manteve a flutuar até que o socorro tivesse chegado. A mesma sorte, já não tiveram, infelizmente, a cozinheira Gertrudes e um criado de Francisco Torres, bem como o Barão de Forrester, que se afundou para nunca mais ser encontrado. Uma versão popular do naufrágio contada pelo Douro diz-nos que o Barão talvez não se tivesse salvo devido a um cinto especial com uma grande quantidade de moedas de ouro que transportava sempre consigo.
Para romantizar ainda mais a história, diz-se ainda que ele andava sempre com todo aquele peso em moedas de ouro para impressionar Dona Antónia e quem sabe tornar-se seu marido. Durante a sua vida Dona Antónia ajudou a acabar com a filoxera, modernizou a produção de vinho, investiu em novas plantações de vinhas em zonas mais expostas ao Sol, criou estoques de vinho do Porto a aproximou o seu Douro do seu país, através do incentivo que deu ao desenvolvimento da ferrovia.
Investiu ainda, de forma apaixonada e intensa, na sua região, sem esperar pela protecção ou apoio do Estado (será que Dona Antónia votaria Iniciativa Liberal? ;)). Da Ferreirinha diz-se que era generosa com os pobres e mais fracos, mas altiva com os mais ricos e poderosos (será que votaria PCP? ;)); e que estava com a mesma naturalidade tanto em casa dos trabalhadores mais modestos como no Palácio Real (será que votaria Marcelo? ;)). Todo este carinho que deu ao Douro e às suas gentes foi sendo retribuído. Um bom exemplo disso ocorre quando a Ferreirinha morre a 26 de Março 1896. Ao longo dos cerca de quatro quilómetros que o cortejo fúnebre percorreu (entre a Quinta das Nogueiras e a Igreja da Régua), 300 mil durienses (!!!) ladearam a estrada e ajoelharam à passagem dos restos mortais da "santa" e da "mãe dos pobres", como também era conhecida Dona Antónia Adelaide Ferreira, em reconhecimento do ouro mais importante e metaforizado na sua generosidade, integridade, ética e alma abnegada.
Deixou uma fortuna considerável com 35 quintas e foi a maior produtora de vinho da sua época. Mas deixou muito mais que isso... Foi para homenagear todo este legado (não só vínico mas também cultural, arquitectónico, paisagístico e humano) que a Casa Ferreirinha (pertencente actualmente à Sogrape) criou um vinho de grande qualidade, complexo e elegante, de edição limitada e do qual vos "falo" hoje: o AAF Antónia Adelaide Ferreira Tinto, neste caso a colheita de 2016.
O Dona Antónia Adelide Ferreita Tinto 2016 (75.00 €, 95 pts.) é um vinho enorme!!! É vinificado na Adega da Quinta da Leda, com tecnologia apurada, a partir de lotes de uvas provenientes das quintas da Leda, Seixo, Caêdo, Sairrão e Porto. As uvas são vinificadas por castas ou em lotes escolhidos na vinha.
Depois, realiza a fermentação maloláctica em barricas de carvalho francês. Segue-se a maturação, durante cerca de 24 meses, em tonéis de carvalho francês. O lote final é elaborado com base na selecção dos melhores vinhos, resultantes das inúmeras provas e análises efectuadas durante esse período.
De cor rubi-granada densa e bonita, tem um nariz muito intenso e com muitas dimensões, é complexo e harmonioso com ameixa vermelha fresca, frutos silvestres, pimenta preta, urze, resina e uns balsâmicos deliciosos (são estes balsâmicos belíssimos aliados às notas arbustivas e a alguma pedregosidade, que na minha opinião ajudam a definir a alma dos vinhos de topo de Luís Sottomayor). No palato é untuoso e exibe um excelente equilíbrio entre volume, textura, acidez e secura. É um vinho que não acaba. ;) Acompanhou de forma magistral umas Presas de porco preto.
O prazer de beber um vinho destes não está relacionado apenas com a "conversa" bonita que podemos ter com um dos grandes do Douro (este 2016 é das edições mais bem conseguidas) e apercebermo-nos de toda a complexidade e notas equilibradas que carrega. É também o de prestar uma justa homenagem (nem que seja apenas a recordarmos histórias como as que vos contei hoje) a uma mulher, a um mito, a um legado, que se tornou um símbolo não só do empreendedorismo e da viticultura duriense, mas também um exemplo maior do altruísmo, da "porreirice" e da generosidade para com os mais necessitados.
Sou daqueles que não acredita em coincidências e que a bondade (ou a falta dela) com que vivemos influencia episódios determinantes da nossa história/vida. Naquela noite de tempestade de 12 de Maio de 1861, houve um ouro que poderá ter puxado para baixo, mas houve outro tipo de ouro, bem mais valioso, que com certeza, ajudou a puxar a Ferrerinha para cima. ;)
Presas de porco preto:
-Grelhem em azeite, alho e loureiro os pedaços de presa de porco ibérico. Depois de estarem bem tostados de ambos os lados acrescentem brandy, vinho do Porto Rubi, um pouco de sumo de limão e uma rodelas de chouriça de porco preto e deixem cozinhar lentamente por 30 minutos até o molho reduzir bastante;
-Acompanhem com um puré de grão e uns legumes salteados com pimenta e noz-moscada.