Barão Fladgate | Serotonina, um sonho em lume brando
"Valor é o preço que pagamos por algo que achamos ser essencial. Preço é a unidade monetária para algo essencial ao qual não damos valor.” Eliasar
Se vos perguntasse qual o motivo pelo qual comem e a vossa resposta fosse para “sobreviver” bloquear-vos-ia automaticamente. ;) Isto porque estariam a comparar o nosso corpo a um simples carro, sendo a comida o gasóleo que é queimado para produzir energia. Mas se costumam ler este blogue sabem que a comida e o acto social/cultural de comer é muito maior que a simples necessidade fisiológica.
Com certeza que já repararam na dose extra de felicidade que é distribuída pela vossa mente quando vos é apresentado o vosso prato favorito. A mim acontece-me frequentemente com uma boa feijoada, foie-gras, ostras ou tarte tatin (só para falar de alguns ;)). A simples observação de certos alimentos liberta muito mais que saliva, segrega também algumas substâncias químicas (como a serotonina) no cérebro, transmitindo uma sensação de bem estar. Mas não se preocupem, hoje, não vos vou melgar com ciência. ;)
Para encontrarmos a tal serotonina basta pegar numas gramas de concentração, uma pitada de criatividade, alguns raminhos de foco e umas colheradas de amor pelos outros. O resto da receita é fácil, misturar tudo delicadamente, levar ao forno a baixa temperatura e esperar que a felicidade suba até ao nível desejado. No final, há que desenformar e servir boa disposição em doses generosas, se bem que para algumas "personagens" doses minimalistas bastariam. ;)
Um estudo (eu sei que tinha prometido que não falava mais em ciência, mas isto é só uma abordagem ao de leve e que não se voltará a repetir neste texto;)) no International Journal of Humanities and Social Science analisou as vantagens terapêuticas de cozinhar como um hobby, incluindo a capacidade de encurtar a perceção do tempo e aumentar a alegria. Esse estudo reportou que o acto de cozinhar melhora não só o bem-estar imediato mas que também está associado a uma maior satisfação com a vida. Além disso, os cientistas concluíram que cozinhar é o melhor indicador de felicidade subjetiva.
Desta forma, sobretudo numa altura de semi-confinamento, o tempo gasto na cozinha ao fazer um assado para a família ou para os amigos, pode ser exatamente o fermento necessário para a obtenção de uma maior felicidade e de um melhor bem-estar mental. Para além desta visão "egocêntrica" de cozinhar, há outra bem mais importante e transversal a todas as pessoas que gostam realmente de cozinhar, aquela que se cultiva quando o foco está nos outros...
Cozinhar para outras pessoas é um admirável acto de amor, e ao contrário de outras vezes (;)), desta, não estou a exagerar, nem um pouco, nas palavras. Talvez estejamos demasiado acostumados a ver nossa mãe, o nosso pai, a nossa sogra ou a nossa esposa (esperem, a minha esposa não cozinha :P) a prepararem as refeições, que não nos apercebemos do quanto sentimento está envolvido neste nobre acto. Devemos parar e apreciar isso, verdadeiramente.
Todos nós sabemos que, quando se prepara comida para os outros, a maior recompensa que se pode receber pelos esforços empregues é ver que as pessoas à mesa desfrutam genuinamente do que lhes foi preparado. Dar comida às pessoas que se ama é um acto que vai muito além das necessidades biológicas do corpo pois não se trata apenas de despejar comida na frente das pessoas.
Trata-se de pensar de antemão no menu, de conciliar novidades com espectativas e gostos pessoais, de comprar antecipadamente os ingredientes necessários, de ter em consideração possíveis restrições alimentares, de pensar no valor nutricional de cada ingrediente, de cuidar da pessoa que precisa de energia e conforto para recuperar de uma doença, de ajudar a pessoa que está a tentar perder peso, ou de recompensar um amigo estafado depois de um dia de trabalho árduo.
Quem cozinha para a família e amigos sabe que cozinhar significa pensar constantemente nos outros, e assim, cozinha-se tanto com as mãos como com o coração, porque geralmente quando se cozinha para outras pessoas temos como objetivo o de fazê-las felizes e contentes. Os Chefes, os bons Chefes têm sempre este lado emocional/sentimental da comida bem presente. Hoje "falo-vos" de um deles, o Chefe Ricardo Cardoso (do Barão Fladgate) que conjuga essa dimensão altruísta da cozinha com uma certa dose de surpresa no palato, alicerçada em sabores e harmonias contrastantes de uma cozinha pensada com minúcia para elevar a experiência e despertar o interesse dos sentidos.
A nossa experiência começou com um "toca a reunir" sensorial, carregado de texturas, intensidade, sabor e aparente simplicidade, a Lula e burrata cremosa com alface do mar desidratada. Seguiu-se um prato à Ricardo Cardoso: Robalo com cevadotto de milho, crocante de sementes, manteiga com Garam Masala e coentros, amêijoas à Bolhão Pato, espuma de água do mar e salicórnia da Ria de Aveiro.
Um autêntico "autocarro panorâmico" disfarçado de comida. Permite uma viagem através das sensações, dos sabores e das emoções, por entre combinações inesperadas entre o cânone gastronómico português e algumas influências exóticas e orientais. Exibe uma mistura sublime da maresia do peixe e das ameijoas, do picante salgado da salicórnia, da elegância da espuma, da untuosidade do cevadotto e do perfume exuberante da Garam masala, tudo com conta, peso, medida e equilíbrio.
Com a Pintada recheada com frutos secos, castanhas e cogumelos silvestres, puré de rutabaga fumada e curcuma, gengibre rosa macerado, alho francês braseado, espargos verdes e molho de Kirsch regressamos ao conforto, ao sabor, à frescura, ao foco na qualidade do produto e a uma complexidade que agrada tanto ao palato como ao intelecto.
Existem demasiados apontamentos não só de consonância mas também de contraste, entre os diferentes elementos que tornam a descrição do prato muito desafiante. A riqueza carnuda da pintada foi enobrecida com os apontamentos umami dos cogumelos e realçada pela irreverência picante do curcuma.
O ligeiro fumo do puré e do alho francês, a excentricidade do gengibre rosa macerado e a brisa frutada do molho de Kirsch elevaram a complexidade do prato para um outro nível. Muito bom!!! Para acabar a refeição, nada melhor que a melhor sobremesa do ano passado aqui para o blogue: Chocolate 62% com praliné de amendoim e avelã, gelado de café Arábica, merengues de caramelo e toffee e sablé de chocolate.
Uma espécie de salada de frutos secos, café e chocolate, trajada de smoking e que ganhou complexidade ao nível da textura, apresentação, sabor e harmonia. Muito bem conseguida e extremamente prazerosa. Um hino à vida, aos sabores ricos e à boa comida, onde o chocolate é rei... Como costuma dizer um amigo meu, "comia disto todos os dias"!!! ;) Só há 3 Chefes em Portugal (que eu conheça) com visão/concepção/bagagem suficientes para pensarem uma sobremesa destas, dois são Michelin, o outro é o Ricardo cujo sonho estrelado se realizará um dia. ;)
Falta falar ainda do espaço e das pessoas. Do espaço digo que os novos tons verdes e dourados, mais ecléticos e nobres, assim como o piso em madeira ficam muito bem ao Barão Fladgate. É elegante, acolhedor e potencia aquilo que já tinha no passado: uma arrebatadora vista sobre a cidade do Porto, com o Rio Douro, a Ponte D. Luís e o velho casario da zona ribeirinha como pano de fundo.
Das pessoas que lá trabalham o melhor que posso dizer é que nos fizeram sentir "em casa" e em segurança numa altura em que a pandemia começava a complicar. Promovem um serviço bastante próximo, dedicado e competente, sem se tornar invasivo. Um bom exemplo disto aconteceu com o prato da Bia.
Quando lá chegamos a menina pediu-nos "massa preta com frango" e nós dissemos-lhe que não havia esse prato na ementa. A amicíssima, conversadora e empenhada Vera Monteiro, após servir outra mesa e sem que lhe tenhamos dito nada informou-nos que "apesar de não haver na ementa se arranjava". Passados 10 minutos a Bia estava desfrutar de um belo Peito de frango grelhado com tagliatelli nero. Escusado será dizer que a Vera ganhou logo ali uma aliada na mesa. ;) Destaque ainda para o serviço exemplar com os vinhos (execução, temperaturas, copos, doses e harmonizações como "mandam os livros").
Quanto ao Chefe, que acompanhamos já desde o tempo em que era copeiro noutro espaço, não há muito mais que eu possa acrescentar para realçar a sua sustentável evolução. Apenas que alia de maneira muito harmoniosa, a destreza, a autenticidade, o perfeccionismo e a paixão a uma concepção gastronómica assente em fusões e contrastes equilibrados, sem descurar a procura da felicidade, e isso não tem preço ... tem valor. ;) Por incompatibilidades de agenda não podemos estar no restaurante num dia em que Chefe Ricardo estivesse na cozinha, no entanto a qualidade não se ressentiu, e é isso que também ajuda a diferenciar um Chefe de um cozinheiro.
O Barão Fladgate deve reabrir brevemente, tudo isto merece a vossa visita!!!