Herdade Vale d’Évora novas colheitas | 50 sombras de uma vinha
"A vida não é mais do que uma contínua sucessão de oportunidades para sobreviver." Gabriel García Márquez
Na peça grega Oresteia de Ésquilo, o sofrimento desempenha um papel vital na vida dos protagonistas. Apresentada pela primeira vez em Atenas no ano de 458 a.C., esta trilogia (composta pelas obras Agamémnon, Coéforas e Euménides) narra três etapas de uma mesma história que, por ordem cronológica, vai relatando o assassínio de Agamémnon, rei de Argos, pela sua mulher Climnestra; o assassínio desta pelo filho e vingador do pai Orestes; e, finalmente, o sacrifício de Orestes.
Desta forma, o sofrimento em Oresteia materializa-se por meio de assassinatos, sacrifícios, traições, violações e vingança (com um pouco mais de erotismo, a Obra intitular-se-ia "50 sombras de Oresteia". ;) Na história principal, Artemis, a deusa dos selvagens e protectora dos jovens, está zangada com Agamenon e a Casa de Atreu devido a uma visão premonitória/metafórica que ela teve acerca do futuro de Troia. Artemis "sonhou" com uma águia a matar uma lebre grávida, relacionando essa águia com Agamenon e a lebre com a cidade de Troia.
Irritada com essa visão, Artemis responsabiliza antecipadamente Agamenon pelo derramamento de sangue que ele iria promover em Tróia, dizendo a Calchas, um vidente, que Agamenon deveria sacrificar sua filha Ifigênia, como castigo. Com o sacrifício da filha de Agamenon, Artemis esquece as atrocidades que este irá cometer em Troia, concedendo-lhe os ventos necessários para que a sua frota conseguisse navegar até essa antiga cidade grega/turca.
O sacrifício de Ifigênia, no entanto e como seria de esperar, irrita a sua mãe Clitemnestra, fazendo com que esta desenvolva não só uma raiva diabólica, como também uma sede de vingança contra Agamenon. E é nesta dimensão da peça que a aprendizagem/inteligência é deliciosamente relacionada com a justiça, que tarda mas que sempre se acaba por cumprir, mesmo que apenas na penumbra interior da consciência de cada um de nós.
Agamenon aprende que não pode responsabilizar o destino pela maldade das suas acções. Clitemnestra descobre que é impossível para uma mulher independente obter justiça numa sociedade dominada pelos homens. Todos eles descobrem que a vingança não é a forma mais adequada de justiça. Por último e de modo mais importante, a civilização grega aprende que aqueles que cometem um crime ou sejam mal intencionados para com alguém, devem, forçosamente, ser punidos.
Desta forma, a principal lição que esta peça nos parece querer segredar é a de que "o Homem deve sofrer para ser sábio". Como não poderia deixar de ser, todos nós tentamos, de um modo ou de outro, evitar esse sofrimento. Fazemo-lo através dos medicamentos que aliviam a dor, seja ela física, emocional ou espiritual; fazemo-lo quando colocamos demasiadas almofadas metafóricas na vida das nossas crianças; fazemo-lo quando não dá-mos segundas (por vezes décimas ou vigésimas) oportunidades aqueles que nos desiludiram, e fazemo-lo quando construímos a nossa vida com redes que nos protejam desse temível sofrimento. Chegamos mesmo a pensar que "não sofrer" é um direito constitucional. ;)
Mas esse direito não existe, um pouco como acontece na Oresteia, o mundo em que vivemos, por vezes, só melhora através de algum sofrimento. Atentemos na mãe Natureza... Antes de florescer a semente deve morrer e ser enterrada; a uva deve ser colhida e esmagada antes que possa produzir aquele liquido que todos nós gostámos; os pequenos grãos de trigo devem ser triturados em pesadas mós para que possamos saborear o pão.
Antes de ver um filho nascer o pai também tem de sofrer com ansiedade (é óbvio que a mãe também sofre um pouco, mas quem já esteve numa sala de partos, sabe muito bem quem sofre mais :P), assim como um agricultor antes de poder colher os frutos do seu trabalho tem de sofrer um pouco com o suor na sua testa; ou um artesão antes de ficar mestre em determinado oficio tem pela frente trabalho intenso e mãos calejadamente doridas.
É óbvio que conhecimento e sofrimento não são a mesma coisa, ainda assim, o sofrimento pode levar não só à sabedoria como também a uma espécie de identidade construída na adversidade. Isso também ocorre no mundo dos vinhos, pois a maioria dos enólogos defende que a vinha tem de sofrer para produzir néctares de qualidade. Se isto for um requisito, a Herdade Vale d’Évora está na pole position do conhecimento vínico. ;)
A propriedade está integrada no Parque Natural do Vale do Guadiana, beneficiando de uma paisagem de grande beleza, marcada por terrenos de ondulação generosa, uma vegetação autóctone e o rio Guadiana que a serpenteia. As vinhas estão plantadas numa das regiões mais quentes do país, terra árida e agreste, de solos xistosos. Para estas vinhas, sofrer é sinónimo prevalecer. Esta vinha do Discórdia, que vive no limite e numa luta constante pela sobrevivência, empresta aos vinhos uma fruta arejada, boa concentração e estrutura. São disso excelentes exemplos os novos colheitas dessa Herdade.
O Discórdia Branco 2019 (8.00 €, 81 pts.) de cor amarela cítrica exibe aromas a manga, limão, maracujá e acácia-lima. Na boca é muito fresco, exibe uma textura agradável e uma excelente aptidão gastronómica. Para a acompanhar uma Feijoada de Tamboril, o amarelo-palha cristalino Discórdia Branco Reserva 2019 (17€, 87 pts.) trouxe uvas brancas frescas, damasco, papaia, laranja, marmelo e subtis notas amadeiradas muito bem integradas. Na boca é estruturado, untuoso, complexo e muito fresco.
Por último, o Discórdia Tinto 2018 (8.00 €, 82 pts.), rubi-grená, carrega fruta muito pura (frutos silvestres) e tem um lado floral muito vincado (violetas, esteva e flor de limoeiro). Na boca é quente, fresco e carnudo. Portou-se muito bem com uma Perna de coelho com o seu fígado, cogumelos, batata assada e salteado de legumes.
Vinhos que em conjunto, para além de mostrarem que esta vinha é resultado de muito mais do que uma simples sucessão de oportunidades para sobreviver, revelam que para ter identidade, por vezes, há que sofrer. ;)
Perna de coelho com o seu fígado, cogumelos, batata assada e salteado de legumes:
-Na véspera ponham a marinar o coelho com sal, pimenta, noz moscada, massa de pimentão, paprika, alho, whiskey, vinho do Porto Ruby e azeite.
-No dia seguinte, após alourarem o coelho em azeite e alho, levem-no a assar na marinada, acrescentando 500ml de caldo de galinha, um pau de canela e uma estrela de anis. Juntem as batatas e os cogumelos. Assem durante duas horas a 180ºC, virando o coelho a cada meia hora.
-Saltear cenouras, ervilhas, courgettes, abóbora, feijão verde e couve flor em azeite e alho, juntando no final um pouco do suco resultante do assado e o sumo de um limão.