Quinta da Romaneira | Semântica selvagem
“Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei às romãs a cor do lume.” Eugénio de Andrade
O rosmaninho é uma erva muito rica, quer nas tradições que criou quer nas suas utilizações culinárias. Embora não seja muito resistente ao frio, propagou-se por muitos climas e entrou nas nossas casas através de vasos (que ficam lindíssimos por volta de Dezembro). Também a podemos encontrar nos jardins, muitas vezes assumindo a forma de uma pequena árvore cónica, de esferas, ou moldada com arame em geometrias mais arrojadas (vamos aprender mais à frente que isto pode ofender a vossa autoridade :P).
O seu nome científico (Rosmarinus) advém das palavras latinas para “orvalho” (ros) e “pertencente ao mar” (marinus), remetendo-nos para o local onde geralmente crescem estes arbustos e também para as suas bonitas flores de cor azul-mar. Como seria de se esperar para uma planta que já é utilizada há mais de 5.000 anos (foram encontrados ramos secos de rosmaninho em sarcófagos egípcios do ano de 3.000 a.C.), surgiram muitas lendas relacionada com ela.
Apesar do seu nome advir do latim, há também uma teoria religiosa para o mesmo. A mãe de Jesus, Maria, ao fugir do Egipto, ter-se-á abrigado da chuva por baixo de um arbusto de alecrim. Quando a chuva passou, Maria terá colocado a sua capa por cima do arbusto para que secasse. As flores que inicialmente eram brancas, por milagre, ficaram azuis. Daí resulta a lenda das flores azuis e do nome "rosa de Maria" "(rosemary que significa rosmaninho em inglês).
O rosmaninho é também muitas vezes associado à memória, existem indícios que os grandes filósofos gregos a usavam para melhorarem as suas capacidades mentais. É por isso que muitos deles, utilizavam coroas de rosmaninho nas suas cabeças, dando origem a outro nome pelo qual o arbusto é conhecido: a "erva das coroas". Shakespeare imortalizou esta relação entre memória e rosmaninho, em Hamlet, quando Ophelia, uma das personagens principais, disse: "Olha para as minhas flores, há alecrim para ti, e isso teremos de recordar. Por favor: reza, ama, lembra-te!!!"
A tradição da lembrança através do rosmaninho é vista nos dias que correm em momentos mais tristes, como os funerais, onde os convidados usam um raminho de alecrim ou o atiram para a vala, como que a dizer "não me esquecerei de ti". Em cenários mais alegres na Idade Média, surgiu a tradição do alecrim nos casamentos, a noiva usando um enfeite de cabeça e o noivo (bem como alguns convidados) usando um raminho na roupa, como um sinal de amor e lealdade.
Quando algum jovem batia suavemente noutro com um ramo de alecrim que contivesse uma flor aberta, significava que eles se apaixonariam no futuro. O alecrim era também era usado em bonecos para atrair amantes (a sério, não se ponham com ideias ;)). Ainda nos assuntos do coração, os recém-casados plantavam um arbusto de alecrim no dia do casamento, se este crescesse, seria um bom presságio. Os ramos de alecrim eram também colocados na cama da noite de núpcias para promover a fidelidade.
Já os romanos decoravam as suas imponentes estátuas com alecrim, pois para eles o arbusto era símbolo de estabilidade. Outra superstição era a de que o alecrim só crescia nos jardins dos "justos". Um raminho colocado sob um travesseiro supostamente evitava pesadelos. Pendurado do lado de fora de casa ou plantado no jardim, supostamente repelia os espíritos malignos. No século XVI, os maridos começaram a arrancar, estranhamente, o alecrim do jardim. Percebeu-se anos depois que isto resultava de uma ideia empírica que a existência de rosmaninho no jardim significava que eram as mulheres que governavam a casa.
Os usos medicinais do alecrim ao longo dos séculos são muitos, tendo o registo mais antigo sido feito no século XIII. Mais uma vez o vinho aparece metido ao "barulho". Uma mistura milagrosa desta erva com vinho foi esfregada nos membros da Rainha da Hungria, ajudando-a a superar a sua paralisia. Essa mesma mistura foi usada nos séculos seguintes para tratar problemas na pele como caspa e para prevenir a calvície.
Continuando na relação rosmaninho-vinho, a abundância deste arbusto terá, mais recentemente , dado o nome a uma das mais bonitas quintas do Douro: a Quinta da Romaneira. É sobre os vinhos que por lá se fazem que vos falo hoje. Com o objectivo de comparar o genial ano de 2017 com o "desconhecido" 2018 a Quinta da Romaneira promoveu, no passado mês de Maio, uma apresentação online. Durante a prova foi possível ainda descobrir o novíssimo Quinta da Romaneira Reserva Branco (2020), o intrigante Quinta da Romaneira Porto Colheita 2007 e o imponente Vintage 2019. Tudo música para os meus ouvidos. ;)
O Quinta da Romaneira Reserva Branco 2020 (14.50€, 86 pts.), amarelo citrino leve e cristalino, exibe uma excelente mineralidade (xisto molhado), toranja, lima, uma ligeira tosta e flor de ... rosmaninho. :P A boca com excelente acidez, estrutura e elegância complementa na perfeição as notas mais untuosas de um Arroz de lingueirão.
Nos tintos, o Quinta da Romaneira Syrah 2017 (23.50 €, 91 pts.) exibia muita frescura resultante dos aromas balsâmicos, eucalipto, ameixa fresca, mirtilos, alcaçuz, baunilha, fumo picante e alguma vegetalidade. No palato é carnudo e mostra corpo, concentração, pedregosidade e elegância. A nova versão, o Quinta da Romaneira Syrah 2018 (23.50 €, 91 pts.) é mais expressivo/focado aromaticamente, com a fruta mais compotada e com as notas florais mais selvagens. Apesar de diferentes, mantêm uma verticalidade aromática que me fez atribuir a mesma pontuação.
No outro monocasta, o Quinta da Romaneira Touriga Nacional 2017 (25.50 €, 92 pts.) encontrei violetas, rosas, ameixa preta, funcho, bergamota, chocolate, algum fumo e cravinho. É um vinho elegante, fresco, equilibrado, com taninos sedosos e um final muito longo. Já o Quinta da Romaneira Touriga Nacional 2018 (25.50 €, 93 pts.) pareceu-me com as violetas mais pronunciadas e com frutos silvestres e um ligeiro apimentado que não encontrei no 2017. Pareceu-me também mais fresco. Essa frescura extra e taninos de qualidade fazem-me antever-lhe um futuro risonho...
O Quinta da Romaneira Reserva 2017 (49.90 €, 94 pts.) transportava aromas de ameixa preta, violetas e caixa de tabaco. Na boca tem boa acidez, é seco e estruturado. O Quinta da Romaneira Reserva 2018 (49.90 €, 94 pts.) acrescentou uma fruta mais madura (frutos silvestres e amoras). Achei-os parecidos, embora diferentes, apesar dos anos completamente antagónicos. Foi um fiel companheiro para o Raviolli de codorniz com molho de foie gras e tomate braseado com alho. Segue-se o meu preferido na prova (embora não o melhor pontuado): o Quinta da Romaneira Porto Colheita 2007 (40 €, 93 pts.).
Exibe um traje âmbar-romã, cor do lume e aromas a ameixa em passa, amêndoa torrada, noz, canela, maçapão, casca de laranja e ainda algumas notas de fruta preta madura. No palato passeia-se com elegância, uma textura aveludada e muita garra. A pedregosidade é tão evidente quanto sedutora. Está prontíssimo a beber e acompanha muito bem um Crème brûlée. Para último um vintage que acaba por ser uma excelente metáfora para todos estes vinhos da Quinta da Romaneira. O benjamim Quinta da Romaneira Vintage 2019 (60 €, 95 pts.), rubi quase opaco, emana flores silvestres, violetas, flor de laranjeira, canela, ameixa seca, mirtilos e chocolate. Na boca é fino, longo, complexo e selvagem... Combinou na perfeição com um Brownie de chocolate com pistáchio, pipocas salgadas, gelado de baunilha e rosmaninho.
Tal como noutras quintas do Douro, apesar do ano de 2017 ter tido condições climatéricas que permitiram a produção de vinhos memoráveis (um inverno frio e seco, seguido de uma Primavera e Verão excepcionalmente quentes e secos, Junho foi mesmo o mês mais quente desde 1980, com temperaturas que atingiram os 42-44°C no vale do Douro durante a onda de calor sentida entre os dias 7 e 24 de Junho!!!) os colheitas de 2018 mostram características que valem a pena ser conhecidas, como a sua finesse, elevada frescura e um excelente trabalho com a barrica. As vinhas da Romaneira, o seu terroir com diferentes exposições solares, a flora selvagem (o rosmaninho!!!) e uma enologia de precisão fazem com que os vinhos reflictam os anos de colheita mas também que mantenham, paralelamente, marcas identitárias imutáveis.
Nativa do mediterrâneo, o rosmaninho, esse arbusto selvagem resiliente precisa de sol para crescer melhor, no inverno basta que este irrompa pelas nuvens algumas vezes para que possa sobreviver. Gosta de tempo quente, mas também tolera bem o frio. Necessita de água, mas não em excesso, pois as raízes apodrecerão se permanecerem molhadas. É por tudo isto que conseguem viver por muitos e longos anos (dizem que 33, a idade com que Cristo pereceu), e que quer em anos mais quentes e secos, ou nos anos mais frios e chuvosos o rosmaninho conseguem exibir sempre o seu aroma selvagem característico a pinho e eucalipto. Assim, a ligação da Romaneira ao rosmaninho não é apenas semântica, é de carácter... ;)
Crème brûlée:
-Vão precisar de 5 gemas de ovo, 100 g de açúcar, 1 vagem de baunilha, 5 colheres de sopa de brandy, 50 cl de natas e 4 colheres de sopa de açúcar mascavo para caramelizar;
-Despejem as natas numa panela e aqueçam em fogo baixo. Dividam a vagem de baunilha ao meio, raspem a polpa e coloquem-na junto com a vagem dividida nas natas, fervam e deixe repousar por 10 min para que a baunilha infunda bem. Entretanto batam as gemas com o açúcar até ficar tudo bem misturado e cremoso;
-Passem o creme por um chinês para filtrar as impurezas da baunilha e incorporem-no ainda morno na mistura de ovo e açúcar mexendo delicadamente. Encha um tabuleiro de ir ao forno com água (2 cm de altura) e pré-aqueçam o forno a 150°C. Dividam a mistura em 4 potes recipientes e coloquem-nos no tabuleiro;
-Levem ao forno por 30 a 40 minutos e no final polvilhem-nos com com açúcar mascavado e queimem-no com um maçarico...