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No meu Palato

No meu Palato

Palácio dos Távoras | A insustentável leveza de um todo

"Eu não daria um cêntimo pela simplicidade que há deste lado da complexidade, mas daria a minha vida pela simplicidade que existe do outro lado da complexidade." Oliver Wendell Holmes 

Palácio dos TávorasUma das particularidades da citação que emoldura a publicação de hoje é o facto de não se saber, com certeza absoluta, qual Oliver Wendell Holmes a proferiu, se o pai, se o filho. Enquanto que Holmes filho foi um eminente juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Holmes pai foi um dos maiores poetas norte-americanos.

Palácio dos TávorasPor diversas ocasiões, esta afirmação, relacionada com a dicotomia simplicidade-complexidade, foi atribuída ora a um, ora a outro. Daquilo que li, é mais provável que a mesma tenha sido feita pelo filho, mas como vos disse, sem certezas. O certo é que um destes homens postulou um pensamento tão complexo que poucas pessoas perceberam a sua profundidade na altura, se calhar nem mesmo ele foi capaz de o entender completamente. 

Palácio dos TávorasConfessem lá, que sem mais explicações, até para vocês leitores cultíssimos de um blogue imensamente erudito, se torna difícil perceber o que aquelas 27 palavras, em conjunto, significam. Vou tentar simplificar...

Palácio dos TávorasDesenhem mentalmente uma curva em forma de sino/montanha. Da esquerda para a direita aumenta a compreensão, e de baixo para cima aumenta a complexidade de um determinado fenómeno ou sistema. O inicio da curva, à esquerda, marca o momento em que no deparamos com algo complexo e onde somos ingenuamente felizes (esta é a simplicidade que há deste lado da complexidade). As nossas opiniões/percepções são demasiado simplistas e redutoras, mas como não o sabemos, vivemos "na boa" com isso. 

Palácio dos TávorasPara nos conseguirmos mover para a direita na curva, temos forçosamente de testar hipóteses, ganhar experiência no assunto e aprender. O nosso conhecimento e percepção aumentam à medida que conhecemos mais detalhes sobre um determinado tema e os testamos sob diferentes perspectivas. Ao atingirmos o pico da complexidade, significa que conseguimos obter toda a informação e todos os dados disponíveis sobre esse assunto. 

Palácio dos TávorasContudo, não conseguimos comunicar esse conjunto de informações complexas de modo eficaz, uma vez que ao percebermos um assunto não significa que o saibamos explicar adequadamente numa história significativa e concisa a uma outra pessoa, alguém ainda no lado esquerdo da curva.

Palácio dos TávorasEste topo da curva, ao contrário do que possa parecer, é um lugar infeliz onde se tenta geralmente explicar infrutiferamente as ideias complexas, pois essas pessoas por terem reunido todos os dados disponiveis acham que para perceber essa ideia as outras pessoas também precisam de todos esses dados e por isso, normalmente baseiam as suas explicações num curso, num documento com um elevado número de páginas ou então numa pilha de artigos científicos. Estes são aqueles que precisam de horas para explicar um assunto, sem que no final alguém o perceba e, frequentemente, a audiência sai mais confusa do que quando entrou.

Palácio dos TávorasMas quando decidimos continuar para a direita (não, não estou a falar em termos políticos!!! ou será que estou? :P) na curva da compreensão, continuamos a testar os dados, a encontrar significado nos dados e a reformular a nossa opinião com base nos dados. Não paramos este movimento, porque sabemos que à direita da curva está novamente a simplicidade. Uma simplicidade, que ao contrário da da esquerda é uma simplicidade informada e conhecedora. Essa é a simplicidade do outro lado da complexidade.

Palácio dos TávorasQuanto atingimos a parte final da curva, à direita, somos não só capazes de sintetizar o conteúdo na nossa própria visão do assunto, mas também conseguimos discernir a essência da ideia de uma maneira tão simples e direta, que a conseguimos comunicar a outras pessoas, da esquerda, e da direita. A parte mais bonita desta visão é a de sermos capazes de fazer que pessoas com pouco ou nenhum conhecimento sobre um assunto possam mover-se ao longo de sua curva, movendo-se para a direita. Este é um dos princípios basilares da boa pedagogia. 

Palácio dos TávorasO lugar que finalmente atingimos à direita, a tal simplicidade do outro lado da complexidade, costuma ser muito óbvio em retrospetiva. E esse é mesmo o objectivo: tornou-se óbvio para os outros porque ouve alguém que teve o pesado fardo de passar por toda a curva. 

Palácio dos TávorasNo mundo vínico também há muitos caminhantes nessa curva da compreensão, alguns deles assumindo-se como verdadeiros especialistas, quer estejam à esquerda, no topo, ou à direita do conhecimento vínico. Não é disso que vos vou falar hoje, antes sim, de por vezes, serem os próprios vinhos que provamos, a nos fazerem mover para a direita na sua compreensão.

Palácio dos TávorasNo inicio, à esquerda, não conhecemos nada (ou apenas pouco) das suas características. A sua cor, os seus aromas, a sua boca fazem-nos então absorver um conjunto de informações que nos fazem querer montar o seu puzzle (chegamos ao topo da curva), para momentos depois, o percebermos, finalmente, em conjunto e não em retalhos de sensações. A última vez que isto me aconteceu, da esquerda à direita da curva, foi com a prova do novo Tinta Gorda do Palácio dos Távoras (Costa Boal). 

Palácio dos TávorasFoi um dia muito especial onde para além do lançamento do Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2020, ainda tivemos o privilégio de provar o  Palácio dos Távoras Bago a Bago tinto 2020, o Palácio dos Távoras Gold Edition 2018, o Palácio dos Távoras Alicante Bouschet 2018 e o Palácio dos Távoras Grande Reserva branco 2020.

Palácio dos TávorasDois deles são oriundos de uma vinha centenária de Sendim (no Douro Internacional e na fronteira transmontana com Espanha) e pertencem à gama de topo da Costa Boal para Trás-os-Montes, o Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2020 e o Palácio dos Távoras Bago a Bago, e refletem muito a especificidade da sub-região do Planalto Mirandês.

Palácio dos TávorasO Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2020 (35 €, 91 pts.) apresentava-se numa espécie de simbiose entre um Pinot Noir (na cor) e um Gamay (na boca). Rubi rosado na cor, emanava aromas muito frescos, sedutores e puros a ameixa vermelha, amora, framboesa, flores silvestres e rebuçado de morango. A boca é longa, delicada, complexa e com taninos aguerridos.

Palácio dos TávorasJá o Palácio dos Távoras Bago a Bago (42 €, 94 pts.) passa a constar na lista dos vinhos que mais me surpreeendeu este ano. Traja uma bonita cor rubi avermelhada, não muito carregada, e no nariz revela fruta intensa com notas de cereja, groselha e frutos silvestres, mas também com uma pimenta preta que o torna muito mais atractivo. No palato, aos taninos uma vez mais aguerridos juntam-se a finesse, a persistência, muito equilibrio e complexidade.  

Palácio dos TávorasCom origem mais a oeste, na sub-região de Valpaços e no concelho de Mirandela, localiza-se a vinha-mãe da gama Palácio dos Távoras, da qual foram lançadas as novas edições Palácio dos Távoras Gold Edition 2018, Palácio dos Távoras Alicante Bouschet 2018 e Palácio dos Távoras Grande Reserva branco 2020. Estes vinhos têm origem na vinha velha com cerca de sete hectares que a Costa Boal adquiriu em 2010, em Chelas, Mirandela, e à qual o produtor acrescentou recentemente mais seis hectares, adquirindo uma vinha com 55 anos de idade e povoamento com o tradicional blend de castas das vinhas antigas da região.

Palácio dos TávorasO Palácio dos Távoras Grande Reserva branco 2020  (25 €, 90 pts.) possuidor de uma cor amarela citrina e de bela intensidade transporta consigo notas a maçã, folha de limoeiro, toranja, granito molhado, caixa de tabaco e um pouco de fumo. No palato é vibrante, suculento, ligeiramente austero, longo e exibe uma bela acidez. 

Palácio dos TávorasMudando para os tintos desta sub-região, o rubi opaco Palácio dos Távoras Alicante Bouschet 2018 (35 €, 92 pts.) tem um nariz muto fresco com notas a resina, verniz, pinho, mirtilos, ameixa preta, baunilha e pimenta preta. No palato é seco, fresco, delicado, adstringente e longo.  

Palácio dos TávorasPara último, o vinho em que a transição entre a esquerda e a direita não é tão óbvia, e por isso foi melhor pontuado, o Palácio dos Távoras Gold Edition 2018 (70 €, 96 pts.). De traje rubi denso, exibe notas de flores silvestres, pimenta rosa, baunilha, amora preta, framboesa, mirtilos, ligeira pedregosidade, sous-bois e uns balsâmicos salivantes. Na boca passeia-se com classe, equilíbrio, harmonia e complexidade. É um vinho que tem tudo, vale pelo todo, e que parece não querer sair do palato. Só conversando com ele, demoradamente, conseguiremos sair do topo da curva e nos mover para a almejada direita da compreensão :P

Palácio dos TávorasTodos estes vinhos estavam carregados de acidez, corpo, identidade, harmonia, complexidade e pertença, muito bem!!! Quem defende que já não é possível fazer diferente e com identidade nestas regiões, tem aqui uns belos néctares com que se entreter...

Salpoente e Moliceiro | Mil deleites de uma identidade

Salpoente e MoliceiroA essência da epopeia literária, independente da sua época, latitude ou forma, é uma narrativa que procura consolidar uma determinada identidade. Como na fase do espelho de Lacan (fase entre os 6 e 18 meses em que uma criança já se consegue identificar num espelho), a epopeia literária reflecte-nos um conjunto de características, valores e costumes que nos fazem sentir parte de um povo.

Salpoente e MoliceiroMuitas vezes esta identificação ou "conceituação" de um sentido de nação forja a união a partir de fragmentos dispersos na história de um país. Em quase todas as narrativas épicas, o vórtice dessa imagem no espelho ideológico converge em torno de um herói com uma missão idealizada, decorrente do seu próprio destino e que o eleva a um alter ego nacional.

Salpoente e MoliceiroTambém nós, enquanto portugueses, temos um espelho decorrente de uma narrativa épica. Em «Os Lusíadas» de Luís de Camões, Vasco da Gama e a frota portuguesa enfrentam o seu espelho épico da fama, do sucesso e da fortuna, em pleno oceano, enquanto desenham a rota marítima para a Índia.

Salpoente e MoliceiroCamões é um escritor improvável para um grande poeta épico. Embora sendo tecnicamente um nobre, ele não era particularmente bem-nascido, e as suas obras parecem querer sugerir que sua vida era bem menos dedicada à literatura do que ele fazia transparecer.

Salpoente e MoliceiroParalelamente, os detalhes que hoje conhecemos sobre Camões delineiam uma existência demasiado aventureira para alguém com a sua vocação literária: a perda de um olho numa batalha contra os mouros no norte da África, um naufrágio junto à costa do Camboja e a ruína financeira/moral por terras de Ceuta, Goa, Moçambique e Macau.

Salpoente e MoliceiroNo entanto, este escritor pouco dedicado e aventureiro de ocasião consegue fazer duas coisas que nenhum outro poeta conseguiu. A primeira delas tem a ver com o recuperar do orgulho lusitano. A missão de Vasco da Gama, n'Os Lusíadas não era "só" a de chegar à Índia, aliás atrevo-me mesmo a dizer que isso nem seria o mais importante.

Salpoente e MoliceiroO imprescindível era mesmo cumprir e fazer cumprir um novo ideal-eu do inconsciente português: aquele que está relacionado com o mar, com a descoberta, com as conquistas e com o renovado orgulho lusitano, não só tendo por base o passado glorioso de proezas como também no nosso nobre legado cultural. 

Salpoente e MoliceiroNa visão que Camões nos dá n'Os Lusíadas, os outros heróis que ficam para a história, como Aquiles, Ulisses e Enéias, não se imortalizaram por aquilo que eram ou pelo que conseguiram, mas antes devido aquilo que fizeram ter moldado a unidade cultural e promovido uma forte união enquanto povo.

Salpoente e MoliceiroPara igualar o feito desses heróis gregos e perante o eminente cessar da época de ouro dos descobrimentos portugueses, Camões procura através de Vasco da Gama recriar o espírito que engendrou a conquista do nosso antigo império. Um século de retrospectiva inspirou-o a criar dois espelhos, um com o império em declínio, e outro com um inconsciente nacional unificado, baseado nas glórias do passado e que nos conduziria, de novo, ao topo. 

Salpoente e MoliceiroA segunda característica inovadora da nossa epopeia literária tem a ver com as reflexões que o poeta vai deixando um pouco por toda a obra, algo nunca antes feito. Luís de Camões decidiu assim relacionar as suas reflexões com a restante epopeia, demonstrando na maioria delas o seu descontentamento com a sociedade da época e, em algumas delas, sugerindo soluções para que saíamos da "cepa torta".

Salpoente e MoliceiroParticularmente interessantes são as reflexões do canto VI, onde o poeta explica o segredo para atingirmos a verdadeira glória (segredo esse que é o ... trabalho!!!), mas também cria uma certa dicotomia entre amor e gastronomia. Confessem lá que por esta não estavam à espera!!! ;)

Salpoente e MoliceiroA referência ao amor, ao vinho, à gastronomia (sobretudo manjares e banquetes) e ao prazer que eles nos trazem (e que nos levam a ter privilégios quase divinos) acontece inúmeras vezes, das quais destaco uma, feita por Vênus, aquando de seu diálogo com Cupido com vista à criação da Ilha do Amor: 

Salpoente e Moliceiro"Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas, Em cristalinos passos singulares, Fermosos leitos, e elas mais fermosas. Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as ninfas amorosas, De amor feridas, pera lhe entregarem Quando delas os olhos cobiçarem."

Salpoente e MoliceiroEste canto, para além da óbvia relação entre mar, vinho, gastronomia e amor, mostra-nos que somos um povo pequeno na dimensão mas grande na alma, que cumpriu ao longo da sua História, a missão de transmitir os seus valores, as suas crenças e os seus costumes. Esse povo, o nosso povo, abriu novos mundos ao mundo, e mostrou que mantendo-nos fieis às nossas origens, seremos capazes de concretizar, de novo, o Portugal das descobertas e fugir à vulgaridade que tanto assustava Camões.

Salpoente e MoliceiroUma das maneiras que nos resta de continuar a espalhar este amor fraterno e puro gosto de cantar as virtudes da terra a que pertencemos, sem deixar o nosso legado culturalmente ligado ao mar, é, como o nobre poeta lusitano deixou bem claro no canto VI, a gastronomia. 

Salpoente e MoliceiroO restaurante que vos falo hoje, o Salpoente honra não só essa ligação ao mar como também faz um bonito tributo, através da gastronomia,  às gentes e matérias-primas da região da Ria de Aveiro, recriadas numa cozinha de excelência e com identidade. 

Salpoente e MoliceiroContinua instalado mesmo em frente ao canal de São Roque, num edifício único que um dia foi um armazém de sal, exibindo um ambiente rústico-refinado e uma cozinha de autor, conceptualmente tradicional, determinadamente contemporânea.

Salpoente e MoliceiroA tudo isto que já sabíamos do passado, o Chefe Duarte Eira acrescentou um fio condutor a todo o menu, mais texturas, melhor empratamento e elegância nos sabores. Todo o menu, cheira a Aveiro, celebra Aveiro e reinventa Aveiro. Iniciou com um Rissol de berbigão em panko e tinta de choco, e maionese de coentros carregado de mar, frescura e uma ligeira untuosidade. 

Salpoente e MoliceiroEsse rissol surgiu na companhia das Ostras ao natural perfumadas com manga, coentros, lima, malagueta e codium, que ao cristalino sabor marítimo das ostras acrescentava uma trilogia organoléptica (doce, picante e doçura) interessante, fazendo despertar a atenção de todo o palato para a restante proposta gastronómica.  

Salpoente e MoliceiroSeguiu-se um Lagostim marinado em coco, lima e malagueta, creme de guassacaca, manga e coentros, muito exuberante, fresco, elegante e com uma textura super sedosa que era perturbada aqui e acolá com um surpreendente milho crocante e que elevava o prato a um outro nível sensorial. Muito bom!!!

Salpoente e MoliceiroO Salmão e Beterraba com Gravlax de salmão, creme frio de pepino e iogurte, ovas de salmão e aneto elevou o tradicional prato escandinavo a uma apresentação muito original, acrescentando ainda detalhes de cozinha molecular  e uma acidez salina que chegava a ser salivante. O tempero e cura do salmão estavam irrepreensíveis.  

Salpoente e MoliceiroPor falar em salivação, só de pensar no próximo prato o meu palato enche-se se saudade. :P  O Bacalhau e salada de verão é composto por bacalhau confitado, falso “caneloni” com salada de grão e gelatina de pimento vermelho, emulsão de bacalhau, creme de gema, óleo de salsa, cebolinhas e areia broa com azeitona. É uma reinterpretação do bacalhau com todos, estando esses todos envoltos numa salada fria e complexados com uma bonita referencia, quase escondida, a um ex-libris da região, os ovos moles, desta vez numa versão salgada e que dá ao prato uma untuosidade quase fidalga.  

Salpoente e MoliceiroEste é um prato enorme com um epopeia de sabores, muita soberba na apresentação e insolência não só na escolha inovadora de alguns elementos mas também no uso da cozinha molecular. É sobretudo um prato genuíno e alegre, que merece figurar entre as 7 maravilhas da nova gastronomia.

Salpoente e MoliceiroNo prato de carne, o Naco de Marinhoa corado crosta de ervas aromáticas, puré de batata e aipo, legumes e jus de carne foi colocado o foco na qualidade do produto. O naco estava muito suculento, tenro, saboroso e com uma textura firme. A cozinha de autor apareceu no perfume contido das ervas aromáticas que enobreciam a carne, na delicadeza do puré e na densidade/complexidade do jus. 

Salpoente e MoliceiroLogo de seguida O nosso mojito surgiu em forma de pré-sobremesa para limpar o palato e preparar para o doce final: Algas da ria de Aveiro e amêndoa. Esta foi uma das sobremesas que mais me surpreendeu até hoje, composta por amêndoa em várias texturas, envolta em alga, com um glacé de chocolate branco e ainda um crocante e sablé de algas, remeteu-me para uma Galette des Rois mas com um sabor ainda mais rico, nobre e indulgente. A textura voluptuosa acrescentava ainda mais voracidade a este prato. Este é daqueles que me provocou mil deleites e dos quais dificilmente me esquecerei...

Salpoente e MoliceiroEsta epopeia gastronómica, não só de sabores mas também de emoções, promovida num restaurante que através de uma envolvente moderna e contemporânea, honra a arte, a tradição, os costumes e o legado histórico de toda uma região é sem dúvida, um óptimo espelho daquilo que a gastronomia regional, mas ao mesmo tempo de excelência, deveria de ser.

0 (4).JPGQuanto ao Chefe Eduardo Eira, por tudo o que vos disse hoje, é daqueles que com umas pequenas afinações na forma (algumas harmonizações e acertos na sala) vai conseguir dobrar o Cabo das Tormentas e ver o caminho para a Estrela a Oriente, pelo menos é essa a minha esperança. ;) Aquando desta visita ao Salpoente ficamos instalados no Hotel Moliceiro, um dos hotéis de Aveiro com mais carisma e que se encontra melodiosamente pintado num cenário único de história, autenticidade e memória...

Salpoente e MoliceiroPernoitamos numa suite elegantemente decorada com obras de arte, assente num design moderno pincelado com detalhes vintage (sinónimo de luxo e conforto requintado) e que nos proporcionou ainda uma arrebatadora vista panorâmica para a ria. Aconselho-vos a experimentar um dos seus delicioso cocktails, a ler um livro enquanto assistem a um concerto de piano na sua sala charmosa e a tomar um pequeno-almoço repleto de iguarias saborosas acompanhado por um belo espumante da região.  

Vale dos Ares | Orgulho, preconceito e um baloiço mineral

"Deslizo pelo tempo, num movimento constante, fecho os olhos, para sentir cada momento... Baloiço. Escuto o vento. Baloiço, num doce baloiçar... Sinto-me tão jovem, não quero parar, de deslizar..." Anabela Pacheco

Vale dos AresPreconceito é uma ideia ou opinião que desconsidera verdades básicas. É semelhante à ignorância ou falta de conhecimento, experiência ou educação. É algo que não deve ser tolerado, pois todos nós nos deveríamos esforçar para melhorar e aprender mais, a cada dia que passa. 

Vale dos AresHá muito tempo que os psicólogos sabem que as pessoas têm preconceitos umas em relação às outras, com base em afiliações de grupo, sejam elas raciais, étnicas, religiosas, sexuais ou mesmo políticas. No entanto, pouco sabemos sobre o porquê das pessoas serem propensas ao preconceito em primeiro lugar. Uma pesquisa que já vos falei anteriormente, usando macacos, sugere que as raízes do preconceito estão profundamente fixadas no nosso passado evolutivo e que se devem sobretudo a dois motivos principais: o primeiro tem a ver com o fazermos ou não parte de um grupo e o segundo com a falta de experiência/conhecimento perante determinada realidade. 

Vale dos AresNo mundo do vinho, talvez seja melhor dizer no mundo dos consumidores de vinho, sobretudo dos recentes enófilos, existem muitos preconceitos e comportamentos de forte cepticismo em relação a alguns vinhos ou até mesmo regiões. Parece que quando temos uma folga na carteira para comprarmos vinhos mais exclusivos (por vezes, ser mais caro parece que basta para ser bom) temos obrigatoriamente de dizer mal dos vinhos mais acessíveis, para que possamos fazer parte do grupo dos "sempre certos e vinicamente cultos".

Vale dos AresQuando o problema já não é o preço demasiado baixo para o nosso palato ecléctico, esses suprassumos do conhecimento vínico passam a criticar uma determinada região, apenas porque sim... Caso aconteça a chatice de existir consenso quanto à região, atacam o alvo mais fácil: a casta.  Este tipo de comportamentos é muito difícil de mudar entre os consumidores, pois muitas vezes (não nos podemos esquecer disso) são causados por campanhas de publicidade e marketing muito eficientes e muito direccionadas, que acabam por influenciar fortemente as escolhas dos consumidores, ou pelo menos de boa parte deles. 

Vale dos AresPara determinado preconceito ficar mais fortemente enraizado basta associá-lo a uma característica objectiva (cor, teor alcoólico, preço da uva, doçura, acidez, complexidade) ou então relaciona-lo com alguma característica má do passado. É por tudo isto, que os preconceitos e cepticismo em relação a alguns vinhos, produtores ou regiões pouco mudam, ou no mínimo são muito difíceis de mudar.

Vale dos AresDeixando de parte os casos além fronteiras (onde por exemplo um filme de ficção pode destruir a reputação de uma casta, como a Merlot no filme Sideways) uma das regiões que mais padece desta concepção desfavorável (e nada assente em dados objectivos) é a região dos Vinhos Verdes. (Curiosamente esta região é cada vez mais reconhecida internacionalmente pela excelência dos seus vinhos, especialmente os brancos, será isto também um preconceito? :P). 

Vale dos AresDois rios correm pelas colinas verdes e montanhas do noroeste de Portugal: o Minho e o Lima. Estes rios fluem do este para o Oceano Atlântico e no seu caminho, cortam a zona norte da região dos Vinhos Verdes, criando as condições óptimas para a produção de vinhos brancos de qualidade, sobretudo com a casta Alvarinho. É à cor destas colinas, que segundo alguns, se deve o nome desta região. O verde é também responsável por alguns preconceitos ou concepções alternativas cujo principal exemplo é a colheita das uvas enquanto estas ainda estão verdes.  

Vale dos AresSe acrescentarmos outras como o obrigatório baixo teor em álcool, a sempre presente efervescência, a acidez sempre em excesso, a produção em larga escala e a secura imperativa, completamos o ramalhete de preconceitos completamente disparatados.  Na verdade e sem qualquer margem para dúvidas, a região dos Vinhos Verdes é diversificada e versátil em estilos e perfis de vinho, conhecida por produzir não só os vinhos leves e frescos (mais comuns e mais ligados ao passado da região), mas também vinhos minerais, complexos e muito estruturados. Hoje falo-vos de um produtor que com orgulho está a ajudar a derrubar alguns destes preconceitos: o Vale dos Ares

Vale dos AresEste é um jovem projecto familiar que abraçou com toda a paixão o conceito de "boutique winery", dedicando-se à produção de monovarietais de Alvarinho de Monção e Melgaço. Os vinhos são provenientes das uvas produzidas na Quinta do Mato, propriedade da família desde 1683. A aposta na pequena produção é mais do que simplesmente um número reduzido de garrafas, é um estado de espírito, é a vontade de conhecer e controlar apaixonadamente todos os momentos da produção da uva e do vinho, cada videira, cada garrafa.

Vale dos AresO Vale dos Ares Colheita 2020 (11 €, 89 pts.) traja uma bonita cor cítrica e chega ao nariz com bonitas notas minerais (pedra de isqueiro), a toranja, casca de laranja, uvas frescas e damasco. Na boca é crocante, equilibrado, longo muito fresco e seco.  Por sua vez o Vale dos Ares Borras Finas 2018 (13 €, 90 pts.) tem a cor cítrica mais carregada e os aromas minerais são combinados de modo muito harmonioso com notas de panificação, mel, toranja e pêra. No palato é gordo, cremoso, fresco, longo e vibrante. 

Vale dos AresEstes dois primeiros Alvarinhos combinaram muito bem com um "Risotto" de bulgur, pimentos, cogumelos Shimeji e ervilhas com 3 texturas.  Já para acompanhar um Arroz caldoso de lagosta surgiu o impactante  Vale dos Ares Limited Edition 2018 (22 €, 93 pts.). Possuidor de uma sedutora cor (entre a cítrica e a amarela palha) carrega aromas a pêssego, toranja, pedra de isqueiro, avelã, noz e pimenta branca. Na boca é estruturado, untuoso, fresco, seco, longo, equilibrado, elegante e muito vincado. É um branco aristocrata da região dos Vinhos Verdes. 

Vale dos AresEste é um produtor com uma espécie de baloiço mineral, que pincela com aromas de pederneira quase todos os seus vinhos, baloiço esse que também ajuda a fazer a transição dos Verdes de antigamente para os Verdes de hoje, com uma indelével excelência que é  unanimemente reconhecida por esse mundo fora, há que ter orgulho nisso!!!

 

"Risotto" de bulgur, pimentos, cogumelos Shimeji e ervilhas com 3 texturas:

-Num tacho levem a ferver um grande volume de água com sal. Juntem a Quinoa e Bulgur (usei a mistura da Tipiak) e deixem cozer, fervendo durante 12 minutos. Decantem de modo a ficarem com a quinoa e bulgur sem água;

-Noutro tacho façam um refogado com alho, cebola, pimentos, ervilhas e cogumelos Shimeji;

-Façam um puré de ervilhas e guardem parte dele para fazerem umas "pequenas moedas" de ervilha que vão levar ao forno para desidratar e fazer umas chips de ervilha;

-Voltem a introduzir no tacho o bulgur, acrescentem manteiga, queijo parmesão, pimenta preta, um pouco de noz-moscada e brandy. Cozinhem 5 minutos;

-Ao empratar coloquem na camada de inferior o puré de ervilha, depois o risoto de bulgur e no top as chips de ervilha. 

 

Arroz caldoso de lagosta:

-Num tacho façam um refogado com azeite, cebola, dentes de alho e pimentos, previamente descascados, lavados e picados finamente (deixem cozinhar até que fiquem douradinhos);


-Reguem com polpa de tomate, vinho branco, brandy e tabasco,  acrescentando uma folha de louro e um ramo de coentros. Deixem refogar mais um pouco. Adicionem água e rectifiquem os temperos.


-Juntem o marisco (lagosta) e o arroz e deixem cozinhar durante cerca de 20 minutos (até que tudo fique cozido). 

Diana Restaurant | O temp(l)o entre vários deuses e uma menina

"Quando fala o amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia." William Shakespeare.Diana RestaurantO Templo de Artemis, também conhecido por Templo de Diana, em Éfeso (actual Esmirra na Turquia) foi uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo. Ocupava o espaço deixado em vago após a destruição de um templo menor devido a uma inundação no séc. VII a.C. Este novo templo foi construído totalmente em mármore (uma novidade/excentricidade naquela altura) por Creso, rei da Lídia, por volta de 550 a.C., ficando famoso não só pelo seu enorme tamanho (cerca de 110 metros de comprimento e 55 metros de largura), mas também pelas magníficas obras de arte que o adornavam minuciosamente. 

Diana RestaurantEra usado tanto para adoração religiosa quanto para o comercio, sendo citado em quase todos os textos gregos antigos como um edifício único, magnífico e glorioso. Mais tarde, o Templo, foi destruído no ano 356 a.C. após uma tragédia histórica, que desde então se tornou parte da memória colectiva dos países ocidentais. Um homem louco que vivia em Éfeso, chamado Herostratus, ateou fogo ao Templo para ganhar notoriedade e cunhar o seu nome na História.

Diana RestaurantO Templo ficou completamente destruído com as chamas. Após o incidente, os cidadãos de Éfeso sentenciaram Herostratus à morte e proibiram qualquer pessoa de pronunciar seu nome. No entanto, apesar dessa proibição, os historiadores da época registaram o seu nome, que com o tempo se tornou parte da cultura europeia. Como continuação do seu legado, Herostratus vive na literatura europeia como alguém que comete um crime pela fama. Curiosamente, hoje em dia, o nome do destruidor do Templo é mais conhecido do que o seu construtor Creso, rei da Lídia.

Diana RestaurantMuito historiadores defendem que o dia da destruição do Templo coincidiu com o do nascimento de Alexandre, o Grande. Por esse motivo, Alexandre ofereceu-se para reconstruir o Templo, mas os cidadãos de Éfeso recusaram a sua oferta e mais tarde começaram a reconstruí-lo eles próprios a 323 a.C.. Este último Templo tinha 137 metros de comprimento, 69 metros de largura e 127 colunas com 18 metros de altura e que sustentavam o telhado.

Diana RestaurantFoi decorado com estátuas de bronze e mármore esculpidas pelos escultores mais famosos da época; também hospedou muitos objectos valiosos e obras artes, tornando-se um dos centros de atracção mais importantes da altura, onde os mercadores mais ricos e os reis mais importantes gostavam de dar as suas festas mais exclusivas. Antípatro de Sídon, um poeta grego antigo que viveu no século II a.C. foi um dos primeiros a fazer uma lista com as maravilhas do mundo. 

Diana RestaurantQuando se deslocou a Éfeso, ficou tão impressionado com o que viu que escreveu o seguinte sobre o Templo de Diana: "Eu coloquei os olhos na parede da elevada Babilónia, na qual há uma estrada para carruagens, e a estátua de Zeus perto de Alfeu, e os jardins suspensos, e o Colosso do Sol, e o enorme trabalho das altas pirâmides, e o mausoléu de Halicarnasso; mas quando eu vi a casa de Artemis que subia às nuvens, todas aquelas outras maravilhas perderam seu brilho, e eu disse: Olha, além do Olimpo, o Sol nunca olhou para algo tão grandioso".

Diana RestaurantInfelizmente esta maravilha voltou a ser destruída, desta vez por invasores godos em 262 d.C. e nunca mais foi reconstruido. Nos dias de hoje, pouco resta do Templo original, embora existam muitos fragmentos, especialmente de colunas esculpidas, "recolhidas" no Museu "Britânico". 

Diana RestaurantA deusa de Artemis, Diana, que deu nome ao Templo, tem certas características distintas da deusa de Artemis da mitologia grega antiga. Na Grécia, Artemis, era reverenciada como a deusa da lua, dos animais, da natureza e da caça. Era também considerada a divindade protectora dos caçadores. Já em Roma reconheciam Diana principalmente como a deusa da fertilidade e da maternidade, acredita-se que é por isso que algumas mulheres a continuam a invocar no parto.

Diana RestaurantÁrtemis/Diana de Éfeso era também a deusa da fertilidade e alguns historiadores apontam que ela tem grandes semelhanças com a deusa-mãe da Anatólia, Cibele. A estátua de Artemis encontrada na antiga cidade de Éfeso, construída em ouro, ébano, prata e pedra preta, representa a deusa com uma figura com muitos seios sobre uma coluna e com as pernas/quadris cobertas por um tecido decorado com animais. É por causa destes detalhes que os locais a associam com a alimentação e a gastronomia.  

Diana RestaurantDe acordo com a foodtimeline.org e a Le grand Larousse gastronomique, esta relação entre Diana e a gastronomia foi eternizada na confecção de carne com molhos, especialmente no Molho Diana. Segundo a Larousse Gastronomique, esse molho Diana era tradicionalmente feito com trufas e servido com carne de veado (Diana era também a deusa da caça), nos dias de hoje é normalmente feito com vegetais, manteiga,  brandy, molho inglês, mostarda, natas e o suco da carne. 

Diana RestaurantTambém podemos encontrar esta relação entre Diana e boa gastronomia em Portugal, mais concretamente na cidade dos arcebispos, no Diana Restaurant. Descobri-o numa conversa com o Chefe Victor Felisberto, em que me "queixava" de já não ser fácil descobrir restaurantes que valham a pena sem que as "luzes da fama" já recaiam sobre eles, pois uma das coisas que mais gosto na "vida de blogger" é a de descobrir sítios especiais em locais inesperados.

Diana RestaurantNão há grande novidade em vos dizer que se come bem num estrela Michelin, não é verdade? O não óbvio e consensual é o que me atrai mais, e por isso o Chefe Victor Felisberto aconselhou-me a passar num restaurante de um velho amigo seu, o Chefe Fernando Caridade, por possuir todas estas características.

Diana RestaurantDepois de 30 anos emigrado em Londres onde os seus restaurantes gozavam de grande fama e estavam sempre repletos de celebridades e comensais exigentes (imaginem só que deixou mais que uma vez "pendurado" o grande empresário Jorge Mendes por ter a casa completamente cheia), o Chefe Fernando Caridade decidiu mudar-se para Braga onde é Chefe da cozinha do Diana Restaurant. Essa decisão de trocar Londres por Braga teve muito a ver com a procura de uma vida menos atribulada, por amor, após o nascimento da sua filha.

Diana Restaurant

No Diana procura aliar a qualidade à diversidade e o tradicional à inovação, numa sala super acolhedora, com uns quadros endeusados super originais que funcionam como candeeiros,  que pincelam o ambiente com um certo misticismo e que nos transportam, ainda que mentalmente, para o interior da capela Sistina em Roma. Tudo isto é completado com um serviço próximo, empenhado e personalizado.

Diana RestaurantO que nos chega à mesa está cheio de tradição, sabor, alegria, originalidade e muita harmonia. Nas entradas a "Alheira à Brás" traz conforto, intensidade, sabor e uma apresentação com criatividade;  as "Costelinha de porco com molho barbecue" brindam-nos com um bonito contraste entre doçura e acidez alicerçado numa carne untuosa e delicada; a "Bruschetta al pomodoro Basílico e camarões" pincela o palato com uma acidez salivante e sabores puros e alegres; e a "Salada de peixe com velouté de camarão e pitaya" é tão fresca quanto surpreendente, conciliando vegetalidade com maresia de maneira muito equilibrada e saborosa. 

Diana RestaurantNos peixes "O bacalhau à casa com camarão e batata a murro" enche a sala com uma brisa marítima, untuosidade e harmonia. A generosa "Posta do Barroso"  possuía uma textura incrível e estava muito saborosa, harmoniosa e rica (o suco que brotava incessantemente do seu interior era delicioso). É um prato de conforto em que o foco está todo na qualidade do produto, para ser apreciado devagar, com atenção e dialogando com um vinho com boa madeira, frescura e fruta madura como o Brites Aguiar Tinto 2017

Diana RestaurantNas sobremesas e apesar da "Pannacotta com frutos vermelhos" estar confecionado conforme as melhores práticas da região italiana do Piemonte, carregado de acidez, delicadeza, sabor e uma textura perfeita, o destaque vai todo para o "Fondant à Diana com gelado de baunilha". Assente no sabor da abóbora, a confecção estava irrepreensível, os sabores transportavam muita intensidade, delicadeza e uma boa dose de soberba. A apresentação é a que a foto comprova: bom gosto, finesse e alegria. 

Diana RestaurantEsta foi uma noite surpreendente, daquelas que anseio quando visito um espaço desconhecido. Sei que não vai ganhar uma estrela Michelin, também não é para isso que está aberto, mas é uma vergonha (não, o André Ventura não se apoderou de mim .P) que não tenha lugar de destaque nos principais guias gastronómicos nacionais (eu faço disto um hobby, há quem faça da critica gastronómica profissão).  Foi, sem margem para dúvidas, a melhor refeição que tive em Braga!!!

Diana RestaurantVoltei, mais tarde, já com esta publicação quase pronta, algumas vezes ao Diana Restaurant. Duas delas ao almoço com um menu executivo (composto por entrada, prato principal, sobremesa, bebida e café, por um preço indecentemente baixo: 10 euros) nas quais desfrutei numa vez de uns belos  secretos de porco preto grelhados e de outra de um cachaço de porco confitado. Na terceira ocasião, ao jantar, o fondat voltou a "sair" irrepreensível. A harmonia na confecção, nos sabores e no serviço manteve-se em todas estas refeições, provando que a excelência é um acto que se pratica diariamente... Parabéns a todos: ao Fernando, à esposa Irene e à filha ... Diana por tamanha qualidade a tão baixo preço... Que bela homenagem às duas Dianas, a da mitologia e a da genealogia!!! :P

Noval Vintage Nacional 2019 e outros milagres | O mistério da estrada de Mendiz

"A franqueza é a coragem da verdade. É uma vitória constante sobre o medo. A partir do medo de nós mesmos. É um bem, por ser uma forma de autenticidade, de naturalidade, de caráter." Tristão de Ataíde

Noval Vintages 2019Depois de duas semanas ausente para trabalho (os finais de semestre nas universidades têm destas coisas) e para a preparação do baptizado do Gui (que ocorreu ontem) regresso às teclas do blogue (tenho mesmo muito que escrever ate final de Agosto senão alguns de vocês matam-me ;)), e logo com uma história que inclui o primeiro vinho "100 pontos" do ano!!!

Noval Vintages 2019Ao contrário do que o título deste texto possa sugerir, não vos vou falar da primeira narrativa de cariz policial da literatura portuguesa (O mistério da estrada de Sinta), e que marca a estreia literária de Eça de Queirós, em colaboração com o seu grande amigo Ramalho Ortigão. Antes sim, de um autor bem menos consensual e ... bem mais atual, Francisco Moita Flores, mais precisamente do seu romance policial "A fúria das vinhas". Já o li há uns anos e estava à espera do vinho certo para vos falar dele... :P

Noval Vintages 2019Este livro coloca-nos no epicentro da luta contra a filoxera, uma praga que, na segunda metade do século XIX, ia destruindo definitivamente as vinhas do Douro (na verdade, de toda a Europa). Folheando duas ou três páginas, viajamos até às vinhas da Régua e das aldeias adjacentes, onde quase toda a terra era dedicada exclusivamente à produção de vinho. Lá encontramos o Portugal de antigamente, mais rural, onde o presidente da câmara também é barbeiro e o médico faz horas extra como curandeiro. 

Noval Vintages 2019Por lá, cruzámo-nos com D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha, herdeira da alma dos seus antepassados, corajosa e destemida, que declarou uma guerra sem tréguas à maldita praga enquanto protegia as gentes de toda uma região. Com ela surge o excêntrico Vespúcio Ortigão, bacharel em direito, muito culto, que cita frequentemente Teófilo Braga e Voltaire e que possui uma certa queda para a psicologia e para o combate ao crime.

Noval Vintages 2019Quando dá-mos conta e após uma noite de tempestade, uma rapariga adolescente aparece morta numa vinha longínqua. O culpado deste crime? A opinião parece ser unânime, um lobo ou qualquer outra fera faminta. Vespúcio questiona este julgamento supérfluo, pois são vários os detalhes que a ele lhe parecem indicadores de um assassinato. 

Noval Vintages 2019É o conhecimento cientifico que o impede de se agarrar à confortável justificação do mistério nas tão comuns artes de bruxaria, que proliferavam nos tempos de então. Muito menos acredita nos ataques, tão estranhamente selectivos (sempre perpetrados em meninas adolescentes), pretensamente levados a cabo por animais. Algo de mais intrigante teria de estar por detrás daqueles crimes, e estava mesmo...

Noval Vintages 2019Enquanto o Vespúcio é embebido na resolução deste mistério, a Ferreirinha presencia outro crime, o das suas vinhas a serem destruídas pela temível praga. A população anda numa caça desalmada aos lobos e às bruxas enquanto se procuram afastar do diabo. As mortes de jovens adolescentes continuam a suceder-se a um ritmo preocupante e os campos ficam pintados de cinzento com a morte das vinhas. Ninguém quer ouvir as teorias cientificas de Vespúcio, apenas a velha Ferreirinha, amiga e alma bondosa que lhe pagou os estudos.

Noval Vintages 2019Até que Vespúcio, qual Sherlock Holmes duriense, percebe a raiz do problema e começa a delinear uma estratégia com vista à resolução dos dois crimes (os assassinatos das adolescentes e o assassinato das vinhas pelo famigerado escaralhevo) que, na realidade, não passam apenas de um. Não vos vou contar como acaba esta história apenas vos vou esmiuçar o modo como o problema da filoxera foi resolvido (se me costumam ler já devem conhecer esta parte). 

Noval Vintages 2019O livro ensina-nos que com perseverança é possível vencermos as dificuldades e o medo, sobretudo o mais complicado, o medo de nós próprios, o medo de não sermos capazes, o medo de não arriscarmos ou o medo de não correspondermos às expectativas. Relativamente ao inseto que quase destruiu no nosso continente um bem que a todos nós é querido, o vinho, esse foi vencido com perseverança e com um porta-enxertos americano. 

Noval Vintages 2019Surpreendentemente, a filoxera coexiste pacificamente com as videiras americanas e videiras europeias enxertadas em pés americanos. Esse "truque" garantiu a sobrevivência do vinho europeu como o conhecemos hoje, uma vez que a esmagadora maioria dos viticultores ainda o usa. No entanto, esta estratégia é na verdade um paliativo e não uma cura. 

Noval Vintages 2019Felizmente podemos encontrar algumas exceções por esse mundo fora. Alguns viticultores, apesar da ameaça, voltaram a plantar mudas sem enxertos. A moda pegou e começaram a surgir relatos de que em algumas zonas a filoxera não tinha atacado.  Aparece então a expressão «pé-franco», que é o nome que se dá às videiras com raízes próprias.

Noval Vintages 2019Os produtores que adotaram o pé-franco acreditam que este expressa melhor tanto o terroir como a própria uva, pois as videiras europeias não só eram (e ainda são) mais frágeis como ainda tinham (e ainda têm) raízes menos profundas, o que leva a cachos e bagos mais pequenos e a vinhos mais densos/robustos e complexos. Para além disso, há ainda o argumento mais subjectivo do porta enxertos não alterar as características organoléticas da uva. 

Noval Vintages 2019Cá na minha modesta opinião, há espaço para todos, para o pé-franco e para o pé americano, desde que o pé, e o que está por cima dele, seja bem tratado... ;) Um excelente exemplo da convivência pacifica destes dois pés é a Quinta do Noval.  A última vez que a visitei foi aquando da apresentação dos novos Vintage Noval, Passadouro e Romaneira. É sobre eles que vos vou falar hoje.

Noval Vintages 2019Começo pelo mais surpreendente, selvagem e indomado, o Quinta do Passadouro Vintage 2019 (60€, 94 pts.). Este é o primeiro Vintage produzido nesta quinta (que tem a particularidade de ter vinhas vizinhas das do Noval no Pinhão e no Roncão) vinificado pela Noval. De cor rubi quase opaca exibe no nariz aromas a amora, ameixa preta, cacau, pimenta, gengibre e um ligeiro mentolado. Na boca é vibrante, fresco, elegante, opulento e com os taninos ainda à espera de serem domados. 

Noval Vintages 2019Já o exuberante Quinta da Romaneira Vintage 2019 (60€, 95 pts.) apresenta-se rubi arrouxado e com aromas já bastante diferentes dos que encontrei há uns meses: ameixa preta seca, mirtilos, violeta, flor de laranjeira, chocolate e canela. Na boca é firme, equilibrado, intenso, longo e exibe uma bela acidez crocante.

Noval Vintages 2019Por sua vez, o Quinta do Noval Vintage 2019 (90€, 96 pts.) traja uma cor rubi negra, profunda e intensa, e o nariz está preenchido com ameixa vermelha madura, amora, cereja preta, chocolate preto, hortelã e pimenta preta. Na boca todo ele é densidade, equilíbrio, elegância e complexidade. A acidez deste vinho é incrível!!!

Noval Vintages 2019Surge então a estrela do dia o Noval Nacional Vintage 2019 (1500€, 100 pts.). Ao contrário dos anteriores é produzido em algumas parcelas viradas a noroeste e exclusivamente com pé-franco. Neste ano de 2019 contribuíram para um vinho rubi opaco e com notas ainda muito discretas, quase escondidas, a ameixa preta seca, compota de frutos silvestres, esteva, noz-moscada, pimenta preta e gengibre. No palato exibe uma dicotomia muito engraçada entre poder/taninos raçudos/estrutura e elegância/finesse/equilíbrio. É muito complexo, penetrante, equilibrado, harmonioso, mas ainda muito tímido.

Noval Vintages 2019Tivemos ainda o prazer de revisitar alguns Vintage 2011, incluindo o enorme Noval Nacional Vintage 2011 (2500€), a atravessar a fase adolescente no nariz (e por isso não vou atribuir nota) mas com uma boca impressionante e que me fez recuar uns anos, cheia de tensão, personalidade, frescura e com uns taninos em constante erupção, desde 2013...

Noval Vintages 2019Estes são vinhos (sobretudo os vinificados pela Noval) que nos mostram que independentemente do tipo de pé, é possível criar uma espinha dorsal, uma marca, um ADN imutável, materializado em equilíbrio, harmonia, classe e elegância. Voltando à filoxera, ainda ninguém sabe muito bem porque é que algumas vinhas lhe resistem com pé-franco (como as do Noval Nacional) e outras não.

Noval Vintages 2019Pelo que li, a explicação mais plausível (ainda que não unânime) é a de que "o que cresce em conjunto consegue viver em conjunto", defendida por Maureen Moroney da Universidade Estadual de Iowa (EUA). A videira americana Vitis labrusca conviveu ao longo da sua existência com a filoxera, "aprendendo" a sobrevier a esta.

Noval Vintages 2019Já a videira europeia, Vitis vinifera não ganhou defesas contra este inseto, acabando por sucumbir quando em contacto com ele. (Reparem que isso também acontece connosco humanos, algumas bactérias podem ser quase letais para uns povos e conviver "pacificamente" com outros.)

Noval Vintages 2019

Maureen Moroney defende também, que as videiras em pé-franco acabam por gozar da protecção das videiras com pé americano que possam existir na sua vizinhança, reforçando que não conhece nenhuma plantação em pé-franco que sobreviva a uma distância considerável de vinhas em pé americano. Acho esta explicação demasiado simplista. Um dia destes visto a minha capa de Vespúcio Ortigão e vou procurar resolver este mistério da estrada de Mendiz, em pleno local onde decorrem estes estranhos acontecimentos, quiçá lá para Setembro... ;)

Noval Vintages 2019De um modo ou de outro, não podemos negar o óbvio: que os vinhos resultantes das vinhas em pé-franco (como este Noval Nacional 2019) têm uma profundidade, uma largura, uma complexidade e um carácter muito particular, características que me levam a dizer que  a franqueza destas vinhas em pé-franco (para além do trocadilho semântico) é a coragem da verdade. É uma vitória constante sobre o medo do que poderá vir a acontecer. É um bem, por permitir uma forma de autenticidade, de naturalidade e de caráter em forma de vinho. ;)

Noval Vintages 2019Termino dizendo que para além de se debruçar sobre parte dos conteúdos vínicos que vos falei hoje, Francisco Moita Flores na Fúria das Vinhas usa também uma receita deliciosamente atual (sobretudo quando pensamos que foi escrito numa era pré-COVID): confronta uma investigação criminal nos primórdios da sua existência (e toda a inovação que esta acarreta), com o conhecimento do povo e as reticências desse mesmo povo em evoluir e em aceitar a ciência.  Qualquer semelhança com a luta entre os actuais negacionistas e ciência não é pura coincidência.