Roadtrip Costa Vicentina | Rochedos da memória (I)
"Num voo de pombas brancas, um corvo negro junta-lhe um acréscimo de beleza que a candura de um cisne não traria.“ Giovanni Boccaccio
Caríssimos (e atentos) leitores, a publicação relativa à #roadtrip2021 do blogue começa com uma pergunta, necessariamente pertinente. Qual o Santo padroeiro do patriarcado de Lisboa? Será que responderam, pelo menos mentalmente, o nome do Santo casamenteiro, Santo António?
Caso o tenham feito, estão redondamente enganados!!! Já deveriam ter percebido que a previsibilidade não rima muito com a minha identidade (se bem que neste caso até tenha rimado ;)). Apesar de muitos alfacinhas acharem que Santo António é o padroeiro do seu patriarcado , este, na verdade, não o é, mas sim São Vicente.
Quem terá sido este Santo "não popular" São Vicente e qual o motivo de se ter tornado no Santo padroeiro dos lisboetas? O brasão de armas de Lisboa dá-nos duas pertinentes e premonitórias pistas: um barco escuro com um corvo na popa e outro na proa...
Vicente, antes de adquirir a parte do "São" foi um diácono do século IV, nascido em Huesca (Espanha), que depois de muito pregar por Saragoça foi preso em Valência no ano de 304. A prisão deveu-se à maneira destemidamente eficaz com que espalhava a palavra e a fé de Deus.
Recordem que nessa altura os cristãos eram perseguidos pelas forças ligadas ao imperador romano Diocleciano pois este pretendia/promovia o culto dos deuses romanos antigos (na parte relativa a Baco, até sou capaz de concordar ;)). Após a sua prisão, foi oferecida a liberdade a São Vicente, caso este concordasse em atirar uma Bíblia sagrada para uma fogueira, atitude que ele recusou prontamente.
Devido a essa recusa foi então torturado cruelmente: os seus membros foram esticados por cordas presas a bois, a sua pele rasgada com ganchos de ferro, e as feridas cobertas com sal. Tudo isto antes dos seus restos mortais terem sido atirados para o meio de animais ferozes.
Reza a lenda que nesse momento o seu corpo terá sido defendido por corvos, tendo sido mais tarde sepultado na basílica de Valência por alguns cristãos. Com a subida ao poder do imperador Constantino em 305, ocorre uma nova aproximação dos romanos ao Cristianismo, tornando-se esta a religião oficial do Império Romano no ano 380.
Passados uns séculos e algumas guerras e alianças, os muçulmanos começam a tomar conta da Península Ibérica por volta do século VIII. Para evitar que o corpo do Santo caísse em mãos muçulmanas, o mesmo terá sido retirado de Valência por moçárabes (cristãos ibéricos) no ano de 711.
Os seus restos mortais foram colocados num barco, com vista a ser transportado para as Astúrias, então a única região cristã da Península Ibérica. Quis o destino que as ondas e os ventos desviassem o corpo do Santo dessa rota, levando-o na direcção de Sagres, no Al-Gharb sarraceno.
Os moçarabes interpretaram este desvio fortuito como um sinal de Deus, e construíram naquele local um templo em memória do Santo, formando uma pequena aldeia à sua volta: a aldeia de São Vicente. Entretanto, os anos foram passando, e os mouros do Algarve começavam a fazer comichão ao grande D. Afonso Henriques, levando-o à guerra.
Os mouros, em claro gesto de vingança, arrasaram a aldeia dos cristãos de São Vicente e levaram alguns cristãos cativos. Passaram mais uns anos e após uma batalha contra os do costume, os mouros, D. Afonso Henriques foi avisado de que existiam vários cristãos entre os prisioneiros trazidos dessa batalha.
Um deles, já muito velhinho, confuso e frágil, confidenciou ao nosso rei que os aldeões de São Vicente tinham enterrado o corpo do mártir num local secreto, escondido dos mouros, antes do ataque que destruiu a aldeia. Esse velhinho pediu a D. Afonso Henriques que resgatasse o corpo do mártir, em memória de todos os que pereceram na defesa dos seus restos mortais.
D. Afonso Henriques resolveu então viajar com o velhinho cristão a caminho de São Vicente, mas este morreu durante a viagem. Face a este infortúnio e sem saber o local exacto onde se encontrava o corpo do Santo, o rei D. Afonso Henriques resolveu aproximar-se das ruínas do antigo templo à procura de pistas que o conduzissem ao esconderijo.
É então que avista um par de corvos a sobrevoar um lugar muito especifico. O rei, nesse momento, dá ordens para os seus homens escavarem em torno dessa zona, encontrando quase de seguida o sepulcro de São Vicente, imaculado e escondido nos rochedos.
Depois de o aconchegarem, os homens do nosso primeiro rei trouxeram o corpo de São Vicente, de barco, para Lisboa. Durante essa viagem foram acompanhados pelos dois corvos, cuja imagem ainda hoje figura nas armas da cidade de Lisboa, em recordação desta lenda extraordinária.
O cenário de toda esta aventura, ou pelo menos das suas partes mais bonitas, denomina-se hoje Costa Vicentina em honra do mártir, e é sobre ela que vos vou falar nas próximas publicações. Como já é costume, falaremos dos caminhos que permitem fazer essa rota mas também da gastronomia e dos vinhos associados a ela. Vou dividir o "roteiro" desta viagem em três partes, para não o tornar demasiado denso e massudo.
Esta faixa de litoral entre Odeceixe e Burgau é um Algarve muito diferente daquele que normalmente nos entra pelos olhos. A natureza tem um carácter forte, vincado e selvagem, traduzindo-se em paisagens tão imponentes quanto deslumbrantes. Esta é, justamente, considerada a última costa selvagem da Europa.
Quando a iniciamos logo após Lagos, todo o cenário muda. De repente, não há mais hipermercados, multidões, parques aquáticos ou discotecas. Os poucos carros que surgem parecem saídos de uma luta na lama e quando baixamos a janela do nosso, o cheiro de eucalipto e a alecrim a misturarem-se com a maresia é incrivelmente apaziguante. Mas esta, é uma parte da estrada que fica para depois.
A publicação de hoje fala dos preparativos para essa parte mais virginal da costa algarvia. Foram três dias dedicados a recarregar baterias (depois da viagem entre Guimarães e o Algarve, com paragem obrigatória na Mealhada ;)), de modo a que a energia não faltasse para o resto da viagem. Estivemos alojados no grandioso Rocha Brava Village Resort.
Este é um autentico paraíso algarvio com uma localização privilegiada, com vista para as águas cristalinas do Oceano Atlântico a partir das habitações e apenas a alguns minutos de distância das famosas e encantadoras praias de areia branca. É um resort muito amigo das famílias mas que não se foca apenas nesse "alvo". Para quem gosta de caminhadas com paisagens de cortar a respiração e no final do dia ser mimado com todas as mordomias de um resort, este é o lugar ideal.
Para os mais aventureiros há ainda uma caminhada mais desafiante, entre uma imponente falésia e o mar (o percurso dos Sete Vales Suspenso, a maior parte dele feito em passadiços). Nesse percurso há que ter muito cuidado com as crianças, pois as escarpas para além de muito bonitas são também bastante perigosas.
O restaurante do hotel, O Farol, é muito conhecido pela sua comida de alta qualidade, há um menu internacional à la carte com especialidades portuguesas, bem como um bar de piscina adicional servindo desde cocktails a snacks.
Há também um menu para crianças e um menu vegetariano. Destaco o marisco, o peixe e as sobremesas. Perto do hotel existem duas praias que merecem a visita. Uma é a praia do Carvoeiro, aninhada junto a uma falésia e com as pequenas casas brancas dos pescadores locais a darem-lhe um toque inusitado.
No areal, os banhistas/turistas misturam-se com os barcos, pescadores e cheiro a peixe grelhado. Mesmo ao lado da praia é possível encontrar uma vasta oferta de restaurantes, bares e esplanadas. A 5 minutos de carro encontra-se a praia do Paraíso (e aqui o nome não engana), uma pequena concha de areia encaixada entre as arribas mais altas da região.
O acesso só é possível através de uma longa escadaria, serpenteante e estreita, e a sensação que provoca é a de se entrar numa piscina rochosa onde a atmosfera se impregna de maresia. Um pouco mais longe (a 15 minutos de carro) mas a merecer (sem dúvida nenhuma) a visita situa-se na foz do Rio Arade a vila de Ferragudo.
Está rodeada por íngremes falésias e praias, e é uma vila de pescadores tradicional com casas caiadas de branco e as ruas repletas de tranquilidade, charme e bom gosto. Quer seja a caminhar até ao forte, a andar de bicicleta até o farol ou a mergulhar no oceano Atlântico, há muitas coisas incríveis para fazer em Ferragudo.
De todas elas a que mais me marcou foi percorrer, com calma, as suas ruas. A conjugação entre chalés, as famosas flores de Verão e as suas portas tradicionais é incrivelmente pitoresca. Percorram também a orla ribeirinha adornada com palmeiras, que parece querer dividir a antiga vila dos novos empreendimentos do outro lado do rio.
Do outro lado da rua fica a praça principal, a irresistível praça Rainha Dona Leonor. Está repleta de cafés e pequenos restaurantes típicos, nos quais é possível almoçar enquanto se observa o peixe e marisco a ser descarregado dos barcos, com a beleza das águas do Arade como pano de fundo. O cheiro a peixe/marisco grelhado chegava a ser gulosamente salivante... ;)
Estranhamente e apesar de então estarmos na época alta (primeira semana de Setembro) havia apenas a quantidade mínima de pessoas para tornar a vila alegremente agitada, sem a manchar de confusão, barulho e multidões. Tirem uma manhã para conhecer Ferragudo e depois almocem por lá, não se vão arrepender. Não deixem de visitar o Castelo de São João de Arade e a igreja de Ferragudo.
Como férias não são férias sem enoturismo, convenci a família a visitar alguns produtores de vinhos. No topo da "lista de desejos" estava a Paxá Wines, por serem vinhos que reflectem muito bem o terroir algarvio, sem maquilhagens. Está localizada na Quinta do Outeiro que se estende por uma área de 30 hectares de vinha, plantada num solo muito especial, com argila e calcário.
A vinha é influenciada pela proximidade do mar, as diferentes exposições solares e as particularidades dos seus microclimas. Estas características únicas, aliadas a um controlo rigoroso de todas as etapas da produção e à diversidade das castas plantadas, permitem à Paxá Wines criar vinhos com grande potencial, para o mercado nacional e internacional, comprovada através dos diversos prémios conquistados ao longo dos anos.
Gostei muito do Arinto que por lá se faz (lima, limão, ananás e chá verde muito discretos aliados a uma boa frescura e vincada mineralidade) e também do Reserva tinto (amora, cassis, caixa de tabaco, caramelo, baunilha e grafite, suportados por uma bela acidez e taninos aguerridos).
A Quinta do Outeiro encontra-se a apenas 10 minutos do Rocha Brava Village Resort. Aproveitem a viagem para conhecer Silves e a marisqueira Rui, uma das melhores do país. Marisco super fresco, doses generosas, um preço acessível e uma carta de vinhos modesta mas diversa.
Já que estamos a falar de gastronomia visitem também o restaurante O Algar. Possui uma vista incrível para a Praia de Benagil, que fica situada num dos mais bonitos locais da costa algarvia, em que as arribas recortadas pelo vento e pelo mar formam grutas e algares (daí o nome do restaurante). Até o Atlântico parece ficar impressionado com a vista, pois apresenta-se mais calmo, fazendo com que esta zona seja propicia para passeios de barco que levam os visitantes a praias desertas, inacessíveis por terra, e que por isso proporcionam uma tranquilidade difícil de encontrar.
Parando a divagação turística e voltando ao restaurante Algar, como não poderia deixar de ser, a sua especialidade é o peixe grelhado. A Chefe de cozinha é a simpática Ana Paula, e o serviço é levado a cabo apaixonadamente pelo seu marido Carlos e pelos filhos Edgar e Roberto (apaixonados por vinhos ;)). Com todos estes predicados, a refeição teria de correr bem.
Recomendamos, fortemente, a ameijoa (de Alvor), o marisco grelhado e o Cantaril. O peixe foi dos melhores que comemos na viajem, com sabor suave, e carne branca, rija, suculenta e ligeiramente tostada, simplesmente delicioso!!! Tentem reservar com antecedência e peçam para ficar numa mesa com vista para a Praia de Benagil. Já de baterias (alma, fígado e estômago :P) carregadas, deslocamo-nos para o próximo hotel, já em plena Costa Vicentina (a 30 minutos de carro do Rocha Brava Village Resort): o Belmar Spa & Beach Resort.
Está localizado junto à praia de Porto Mós, a poucos metros de águas translúcidas. Um lugar de sonho e harmonia, com os apartamentos (o nosso com três pisos) virados para o mar, sendo que o último deles nos permite desfrutar com privacidade do sol algarvio e de uma arrebatadora vista para o Atlântico. Os apartamentos têm tudo o que uma família possa precisar durante as suas férias (na cozinha não falta nada!!!), são muito frescos, confortáveis, elegantes, luxuosos e com um toque contemporâneo.
Há ainda um SPA super moderno com 600 metros quadrados de reconfortantes experiências, cinco piscinas (uma delas, uma das mais icónicas do Algarve, infinita, parece apenas terminar no mar), música ao vivo e inúmeras atividades para as crianças.
Na próxima publicação relativa a esta roadtrip falar-vos-ei de outro ex-libris deste hotel: o seu restaurante. Entraremos também a fundo na parte mais selvagem da Costa Vicentina. Será que encontraremos alguns corvos "vicentinos"? :P