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No meu Palato

No meu Palato

Roadtrip Costa Vicentina | Rochedos da memória (I)

"Num voo de pombas brancas, um corvo negro junta-lhe um acréscimo de beleza que a candura de um cisne não traria.“ Giovanni Boccaccio

Costa VicentinaCaríssimos (e atentos) leitores, a publicação relativa à #roadtrip2021 do blogue começa com uma pergunta, necessariamente pertinente. Qual o Santo padroeiro do patriarcado de Lisboa? Será que responderam, pelo menos mentalmente, o nome do Santo casamenteiro, Santo António?

Costa VicentinaCaso o tenham feito, estão redondamente enganados!!! Já deveriam ter percebido que a previsibilidade não rima muito com a minha identidade (se bem que neste caso até tenha rimado ;)). Apesar de muitos alfacinhas acharem que Santo António é o padroeiro do seu patriarcado , este, na verdade, não o é, mas sim São Vicente.

Costa Vicentina: Rocha BravaQuem terá sido este Santo "não popular" São Vicente e qual o motivo de se ter tornado no Santo padroeiro dos lisboetas? O brasão de armas de Lisboa dá-nos duas pertinentes e premonitórias pistas:  um barco escuro com um corvo na popa e outro na proa...

Costa Vicentina: Rocha BravaVicente, antes de adquirir a parte do "São" foi um diácono do século IV, nascido em Huesca (Espanha), que depois de muito pregar por Saragoça foi preso em Valência no ano de 304. A prisão deveu-se à maneira destemidamente eficaz com que espalhava a palavra e a fé de Deus. 

Costa Vicentina: Rocha BravaRecordem que nessa altura os cristãos eram perseguidos pelas forças ligadas ao imperador romano Diocleciano pois este pretendia/promovia o culto dos deuses romanos antigos (na parte relativa a Baco, até sou capaz de concordar ;)). Após a sua prisão, foi oferecida a liberdade a São Vicente, caso este concordasse em atirar uma Bíblia sagrada para uma fogueira, atitude que ele recusou prontamente. 

Costa Vicentina: Rocha BravaDevido a essa recusa foi então torturado cruelmente: os seus membros foram esticados por cordas presas a bois, a sua pele rasgada com ganchos de ferro, e as feridas cobertas com sal. Tudo isto antes dos seus restos mortais terem sido atirados para o meio de animais ferozes.

Costa Vicentina: Rocha Brava Reza a lenda que nesse momento o seu corpo terá sido defendido por corvos, tendo sido mais tarde sepultado na basílica de Valência por alguns cristãos. Com a subida ao poder do imperador Constantino em 305, ocorre uma nova aproximação dos romanos ao Cristianismo, tornando-se esta a religião oficial do Império Romano no ano 380. 

Costa Vicentina: Rocha BravaPassados uns séculos e algumas guerras e alianças, os muçulmanos começam a tomar conta da Península Ibérica por volta do século VIII. Para evitar que o corpo do Santo caísse em mãos muçulmanas, o mesmo terá sido retirado de Valência por moçárabes (cristãos ibéricos) no ano de 711. 

Costa Vicentina: Rocha BravaOs seus restos mortais foram colocados num barco, com vista a ser transportado para as Astúrias, então a única região cristã da Península Ibérica.  Quis o destino que as ondas e os ventos desviassem o corpo do Santo dessa rota, levando-o na direcção de Sagres, no Al-Gharb sarraceno. 

Costa Vicentina: Rocha BravaOs moçarabes interpretaram este desvio fortuito como um sinal de Deus, e construíram naquele local um templo em memória do Santo, formando uma pequena aldeia à sua volta: a aldeia de São Vicente. Entretanto, os anos foram passando, e os mouros do Algarve começavam a fazer comichão ao grande D. Afonso Henriques, levando-o à guerra. 

Costa Vicentina: Rocha BravaOs mouros, em claro gesto de vingança, arrasaram a aldeia dos cristãos de São Vicente e levaram alguns cristãos cativos. Passaram mais uns anos e após uma batalha contra os do costume, os mouros, D. Afonso Henriques foi avisado de que existiam vários cristãos entre os prisioneiros trazidos dessa batalha. 

Costa Vicentina: Rocha BravaUm deles, já muito velhinho, confuso e frágil, confidenciou ao nosso rei que os aldeões de São Vicente tinham enterrado o corpo do mártir num local secreto, escondido dos mouros, antes do ataque que destruiu a aldeia. Esse velhinho pediu a D. Afonso Henriques que resgatasse o corpo do mártir, em memória de todos os que pereceram na defesa dos seus restos mortais. 

Costa Vicentina: Rocha BravaD. Afonso Henriques resolveu então viajar com o velhinho cristão a caminho de São Vicente, mas este morreu durante a viagem. Face a este infortúnio e sem saber o local exacto onde se encontrava o corpo do Santo, o rei D. Afonso Henriques resolveu aproximar-se das ruínas do antigo templo à procura de pistas que o conduzissem ao esconderijo. 

Costa Vicentina: Rocha BravaÉ então que avista um par de corvos a sobrevoar um lugar muito especifico. O rei, nesse momento, dá ordens para os seus homens escavarem em torno dessa zona, encontrando quase de seguida o sepulcro de São Vicente, imaculado e escondido nos rochedos. 

Costa Vicentina: Rocha BravaDepois de o aconchegarem, os homens do nosso primeiro rei trouxeram o corpo de São Vicente, de barco, para Lisboa. Durante essa viagem foram acompanhados pelos dois corvos, cuja imagem ainda hoje figura nas armas da cidade de Lisboa, em recordação desta lenda extraordinária. 

Costa Vicentina: Rocha BravaO cenário de toda esta aventura, ou pelo menos das suas partes mais bonitas, denomina-se hoje Costa Vicentina em honra do mártir, e é sobre ela que vos vou falar nas próximas publicações. Como já é costume, falaremos dos caminhos que permitem fazer essa rota mas também da gastronomia e dos vinhos associados a ela. Vou dividir o "roteiro" desta viagem em três partes, para não o tornar demasiado denso e massudo. 

Costa Vicentina: Rocha BravaEsta faixa de litoral entre Odeceixe e Burgau é um Algarve muito diferente daquele que normalmente nos entra pelos olhos. A natureza tem um carácter forte, vincado e selvagem, traduzindo-se em paisagens tão imponentes quanto deslumbrantes.  Esta é, justamente, considerada a última costa selvagem da Europa.

Costa Vicentina: Rocha BravaQuando a iniciamos logo após Lagos, todo o cenário muda. De repente, não há mais hipermercados, multidões, parques aquáticos ou discotecas. Os poucos carros que surgem parecem saídos de uma luta na lama e quando baixamos a janela do nosso, o cheiro de eucalipto e a alecrim  a misturarem-se com a maresia é incrivelmente apaziguante. Mas esta, é uma parte da estrada que fica para depois. 

Costa Vicentina: Rocha BravaA publicação de hoje fala dos preparativos para essa parte mais virginal da costa algarvia. Foram três dias dedicados a recarregar baterias (depois da viagem entre Guimarães e o Algarve, com paragem obrigatória na Mealhada ;)), de modo a que a energia não faltasse para o resto da viagem. Estivemos alojados no grandioso Rocha Brava Village Resort.  

Costa Vicentina: Rocha BravaEste é um autentico paraíso algarvio com uma localização privilegiada, com vista para as águas cristalinas do Oceano Atlântico a partir das habitações e apenas a alguns minutos de distância das famosas e encantadoras praias de areia branca. É um resort muito amigo das famílias mas que não se foca apenas nesse "alvo". Para quem gosta de caminhadas com paisagens de cortar a respiração e no final do dia ser mimado com todas as mordomias de um resort, este é o lugar ideal.

Costa Vicentina: Rocha BravaPara os mais aventureiros há ainda uma caminhada mais desafiante, entre uma imponente falésia e o mar (o percurso dos Sete Vales Suspenso, a maior parte dele feito em passadiços). Nesse percurso há que ter muito cuidado com as crianças, pois as escarpas para além de muito bonitas são também bastante perigosas. 

Costa Vicentina: FerragudoO restaurante do hotel, O Farol, é muito conhecido pela sua comida de alta qualidade, há um menu internacional à la carte com especialidades portuguesas, bem como um bar de piscina adicional servindo desde cocktails a snacks.

Costa Vicentina: FerragudoHá também um menu para crianças e um menu vegetariano. Destaco o marisco, o peixe e as sobremesas. Perto do hotel existem duas praias que merecem a visita. Uma é a praia do Carvoeiro, aninhada junto a uma falésia e com as pequenas casas brancas dos pescadores locais a darem-lhe um toque inusitado. 

Costa Vicentina: FerragudoNo areal, os banhistas/turistas misturam-se com os barcos, pescadores e cheiro a peixe grelhado. Mesmo ao lado da praia é possível encontrar uma vasta oferta de restaurantes, bares e esplanadas. A 5 minutos de carro encontra-se a praia do Paraíso (e aqui o nome não engana), uma pequena concha de areia encaixada entre as arribas mais altas da região. 

Costa Vicentina: FerragudoO acesso só é possível através de uma longa escadaria, serpenteante e estreita, e a sensação que provoca é a de se entrar numa piscina rochosa onde a atmosfera se impregna de maresia. Um pouco mais longe (a 15 minutos de carro) mas a merecer (sem dúvida nenhuma) a visita situa-se na foz do Rio Arade a vila de Ferragudo

Costa Vicentina: Paxá WinesEstá rodeada por íngremes falésias e praias, e é uma vila de pescadores tradicional com casas caiadas de branco e as ruas repletas de tranquilidade, charme e bom gosto. Quer seja a caminhar até ao forte, a andar de bicicleta até o farol ou a mergulhar no oceano Atlântico, há muitas coisas incríveis para fazer em Ferragudo.

Costa Vicentina: Paxá WinesDe todas elas a que mais me marcou foi percorrer, com calma, as suas ruas. A conjugação entre chalés, as famosas flores de Verão e as suas portas tradicionais é incrivelmente pitoresca. Percorram também a orla ribeirinha adornada com palmeiras, que parece querer dividir a antiga vila dos novos empreendimentos do outro lado do rio.

Costa Vicentina: BelmarDo outro lado da rua fica a praça principal, a irresistível praça Rainha Dona Leonor. Está repleta de cafés e pequenos restaurantes típicos, nos quais é possível almoçar enquanto se observa o peixe e marisco a ser descarregado dos barcos, com a beleza das águas do Arade como pano de fundo. O cheiro a peixe/marisco grelhado chegava a ser gulosamente salivante... ;) 

Costa Vicentina: BelmarEstranhamente e apesar de então estarmos na época alta (primeira semana de Setembro) havia apenas a quantidade mínima de pessoas para tornar a vila alegremente agitada, sem a manchar de confusão, barulho e multidões. Tirem uma manhã para conhecer Ferragudo e depois almocem por lá, não se vão arrepender. Não deixem de visitar o Castelo de São João de Arade e a igreja de Ferragudo.

Costa Vicentina: BelmarComo férias não são férias sem enoturismo, convenci a família a visitar alguns produtores de vinhos. No topo da "lista de desejos" estava a Paxá Wines, por serem vinhos que reflectem muito bem o terroir algarvio, sem maquilhagens. Está localizada na Quinta do Outeiro que se estende por uma área de 30 hectares de vinha, plantada num solo muito especial, com argila  e calcário. 

Costa Vicentina: BelmarA vinha é influenciada pela proximidade do mar, as diferentes exposições solares e as particularidades dos seus microclimas. Estas características únicas, aliadas a um controlo rigoroso de todas as etapas da produção e à diversidade das castas plantadas, permitem à Paxá Wines criar vinhos com grande potencial, para o mercado nacional e internacional, comprovada através dos diversos prémios conquistados ao longo dos anos.

Costa Vicentina: BelmarGostei muito do Arinto que por lá se faz (lima, limão, ananás e chá verde muito discretos aliados a uma boa frescura e vincada mineralidade) e também do Reserva tinto (amora, cassis, caixa de tabaco, caramelo, baunilha e grafite, suportados por uma bela acidez e taninos aguerridos). 

Costa Vicentina: BelmarA Quinta do Outeiro encontra-se a apenas 10 minutos do Rocha Brava Village Resort. Aproveitem a viagem para conhecer Silves e a marisqueira Rui, uma das melhores do país. Marisco super fresco, doses generosas, um preço acessível e uma carta de vinhos modesta mas diversa.

Costa Vicentina: BelmarJá que estamos a falar de gastronomia visitem também o restaurante O Algar. Possui uma vista incrível para a Praia de Benagil, que fica situada num dos mais bonitos locais da costa algarvia, em que as arribas recortadas pelo vento e pelo mar formam grutas e algares (daí o nome do restaurante). Até o Atlântico parece ficar impressionado com a vista, pois apresenta-se mais calmo, fazendo com que esta zona seja propicia para passeios de barco que levam os visitantes a praias desertas, inacessíveis por terra, e que por isso proporcionam uma tranquilidade difícil de encontrar.

Costa Vicentina: BelmarParando a divagação turística e voltando ao restaurante Algar, como não poderia deixar de ser, a sua especialidade é o peixe grelhado. A Chefe de cozinha é a simpática Ana Paula, e o serviço é levado a cabo apaixonadamente pelo seu marido Carlos e pelos filhos Edgar e Roberto (apaixonados por vinhos ;)). Com todos estes predicados, a refeição teria de correr bem. 

Costa Vicentina: O AlgarRecomendamos, fortemente, a ameijoa (de Alvor), o marisco grelhado e o Cantaril. O peixe foi dos melhores que comemos na viajem, com sabor suave, e carne branca, rija, suculenta e ligeiramente tostada, simplesmente delicioso!!! Tentem reservar com antecedência e peçam para ficar numa mesa com vista para a Praia de Benagil. Já de baterias (alma, fígado e estômago :P) carregadas, deslocamo-nos  para o próximo hotel, já em plena Costa Vicentina (a 30 minutos de carro do Rocha Brava Village Resort): o Belmar Spa & Beach Resort

Costa Vicentina: O AlgarEstá localizado junto à praia de Porto Mós, a poucos metros de águas translúcidas. Um lugar de sonho e harmonia, com os apartamentos (o nosso com três pisos) virados para o mar, sendo que o último deles nos permite desfrutar com privacidade do sol algarvio e de uma arrebatadora vista para o Atlântico. Os apartamentos têm tudo o que uma família possa precisar durante as suas férias (na cozinha não falta nada!!!), são muito frescos, confortáveis, elegantes, luxuosos e com um toque contemporâneo. 

Costa Vicentina: O AlgarHá ainda um SPA super moderno com 600 metros quadrados de reconfortantes experiências, cinco piscinas (uma delas, uma das mais icónicas do Algarve, infinita, parece apenas terminar no mar), música ao vivo e inúmeras atividades para as crianças.

Costa Vicentina: O AlgarNa próxima publicação relativa a esta roadtrip falar-vos-ei de outro ex-libris deste hotel: o seu restaurante. Entraremos também a fundo na parte mais selvagem da Costa Vicentina. Será que encontraremos alguns corvos "vicentinos"? :P

Encruzados Soito | Darwin e os vinhos

“Um bom vinho é como um bom filme: dura um certo momento e deixa-nos na boca um gosto de glória. É novo a cada gole e, como acontece com os bons filmes, nasce e renasce em cada trago.” Federico Fellini

SoitoMeus caríssimos e estimados leitores, se pensam que vou falar de algum futebolista podem já parar a vossa leitura por aqui... ;) A publicação de hoje, e que marca uma pequena mudança no espaço #cáporcasa, com textos mais curtos, menos esmiuçados, mais directos e mais frequentes (já sei que nem sempre vou conseguir cumprir a parte dos mais curtos" :P), coloca-vos uma questão. Qual terá sido a contribuição de Charles Darwin (o pai da Teoria da Evolução) para o mundo dos vinhos, e porque devemos, de vez em quando, dedicar-lhe um brinde? Este não é um assunto recente, pois neste ano assinala-se o 212º aniversário do seu nascimento, assim como os 162 anos desde a publicação da sua tese, A Origem das Espécies

SoitoDarwin foi um cientista extraordinário que escreveu artigos sobre um vasto rol de temas, incluindo a formação de recifes de coral, a fertilização de orquídeas, a evolução das plantas trepadeiras, a expressão de emoções nos animais, o surgimento de vermes em matéria decomposta e até a inteligência animal. Mas ... e os vinhos? As associações de Darwin com o vinho podem ser várias, apesar disso, por vezes, parecer esquecido pela comunidade. A primeira é circunstancial, pois Darwin foi um dos primeiros europeus a provar vinhos da Nova Zelândia, na viagem do HMS Beagle (um navio britânico de circum-navegação com o objectivo de explorar as terras e mares por onde passasse) em Dezembro de 1835, durante uma curta escala em Bay of Islands, no norte da Nova Zelândia.

SoitoA segunda que vos "falo" hoje, mais significativa, tem a ver com o fascínio que Darwin demonstrava pelas videiras. Ainda podemos encontrar nos dias de hoje, na sua residência de Down House em Kent (perto de Londres), uma prova viva dessa paixão: uma videira descendente daquela que Darwin usou nos seus estudos preliminares. Mais concretamente, Darwin vivia intrigado com o facto das videiras produzirem gavinhas (para escalar) e cachos de uvas (para reprodução), em frente de cada folha. Essa característica é uma marca evolutiva das videiras terem surgido num habitat florestal, há 60 milhões de anos. Com esta bifuncionalidade orgânica, a videira podia não só adaptar-se a um ambiente mais escuro e subir até à luz solar usando as gavinhas, como também, quando já se encontrava no topo da floresta, produzir frutos.

 

SoitoEste, acreditem, não é um apenas um pormenor cientifico,  gavinhas e cachos são estados intermédios de um mesmo órgão adaptado, utilizados para funções muito diferentes. Sem entrar em muitos detalhes técnicos, essa bifuncionalidade na videira, ilustra de maneira indelével, o princípio da evolução das espécies e o modo como estas se tiveram de adaptar para sobreviver. Por tudo isto, Darwin considerou a videira um dos melhores exemplos da sua teoria da evolução, um elogio justo, feito pelo pai da evolução. Meus amigos, em tudo que é importante, o vinho está lá, até numa das mais importantes teorias cientificas alguma vez apresentadas. Beber não é um vicio, é estudar ciência... :P

SoitoMas a evolução não é apenas visível na videira, eu cá prefiro sentir-lha, frequentemente, no copo... ;) E é à casta branca portuguesa que na minha opinião melhor evolui (a trabalheira que tive para conseguir chegar a esta transição linguística :P), a Encruzado, produzida por uma das casas que melhor a trata, a Soito Wines, que vou dedicar as próximas linhas.  Para perceberem qualitativamente a evolução que estes vinhos podem ter, esmiuçarei 3 colheitas: 2018 (na altura da prova ainda em estágio), 2017 e 2016. O Soito Encruzado Reserva Branco 2018 ainda estava a afinar e a precisar de garrafa, e por isso não lhe vou atribuir nota. É contudo interessante perceber a beleza da fruta pura que transporta como limão e a toranja. Há ainda aromas a chá preto,  violetas, resina e uns abaunilhados muito subtis. Estou curioso para conversar de novo com ele na sua versão "final", mais equilibrada.

SoitoEm ponto intermédio de evolução, Soito Encruzado Reserva Branco 2017 (20€, 89 pts.), de cor amarela-palha com ligeiras nuances esverdeadas, ainda exibe as notas florais bastante ricas (flor de laranjeira e limonete), folha de limoeiro, lima, pera, aromas minerais a granito molhado e apontamentos mais suaves de baunilha, resultantes da madeira bem integrada. No palato é muito fresco, mineral (quase a chegar ao salgado), equilibrado e ligeiramente untuoso. Ao contrário da prova no ano passado, já surgem algumas notas de evolução nomeadamente avelãs e cera de abelha. 

SoitoSoito Encruzado Reserva Branco 2016 (20€, 91+ pts.) está num ponto que dá (imenso!!!) prazer a beber. Traja um sedutor amarelo-palha mais vincado que o anterior, e conjuga de modo muito harmonioso a fruta (ameixa branca, maçã madura e damasco), uma ligeira vegetalidade, alguma pedrogosidade e apontamentos florais secos, com terciários belíssimos  (mel, frutos secos e notas apetroladas). Estes aromas nobres são completados, surpreendentemente, por uma certa austeridade na boca,  muita frescura, equilíbrio e complexidade. Ainda está cheio de garra!!!

SoitoÉ por causa de vinhos como este que considero esta, a melhor casta branca do nosso país, pois são vinhos que nascem e renascem a cada ano que passa, contribuindo, à sua maneira, para a teoria da evolução dos brancos do Dão. A versão de 2017 acompanhou muito bem um Arroz de tamboril e ameijoa

 

Arroz de tamboril e ameijoa

-Num tacho façam um refogado com azeite, cebola, dentes de alho e pimentos, previamente descascados, lavados e picados finamente (deixem cozinhar até que fiquem douradinhos);

-Acrescentem a ameijoa e deixem abrir;

-Reguem com polpa de tomate, vinho branco, brandy e tabasco, acrescentando uma folha de louro e um ramo de coentros. Deixem refogar mais um pouco. Adicionem água e rectifiquem os temperos;

-Juntem o arroz e deixem cozinhar durante cerca de 15 minutos;

-Adicionem o tamboril em pedaços generosos e deixem cozer por mais 5 minutos.

Casa Velha | No princípio era a fome

“Se tivesse que defender alguma coisa, seria o movimento. Até onde puderem, o tanto que puderem. Até ao outro lado do oceano, ou mais simplesmente até ao outro lado do rio. Coloquem-se na pele da outra pessoa, ou pelo menos comam da sua comida. É uma mais valia para todos.” Anthony Bourdain

Casa VelhaEstamos a 12 de Outubro 1492, e o que está prestes a acontecer vai alterar para sempre os nossos jantares. O modo como os preparamos, os ingredientes que seleccionamos e a diversidade de sabores que neles encontramos. Nada será como dantes. Mas o que raio estará prestes a acontecer? A resposta a esta pergunta vai ajudar a fortalecer a ideia de que nós somos, ipsis verbis, o que comemos. O que comemos também nos pode dizer muito sobre nossa história enquanto espécie e a ajudar-nos compreender melhor a evolução da sociedade humana.

Casa VelhaAté 1492 não haviam tomates em Itália; nenhuma batata na Europa; nenhum milho ou amendoim na África ou na Ásia; nenhuma pimenta na Índia ou Tailândia; nada de pêssegos, cenouras ou brócolos na parte norte do continente americano; e nenhum arroz, banana ou açúcar de cana em qualquer lugar nas Américas. Devido à mobilidade limitada dos povos de então, a comida disponível limitava-se à fauna e à flora de uma determinada região. 

Casa VelhaEste cenário acabava por limitar a partilha de novos sabores nos jantares que os povos de então promoviam entre os elementos mais "ligados" de uma determinada comunidade. E não pensem que o estarmos reunidos para partilhar comida, enquanto celebramos os elos que nos ligam, é uma coisa muito recente. Muito pelo contrário, compartilhar comida sempre fez parte da nossa história enquanto humanos. Da caverna Qesem, perto de Tel Aviv (Israel), chegam-nos evidências de refeições antigas preparadas numa lareira com mais de 300 mil anos, a mais antiga já encontrada, onde os nossos antepassados se reuniam para o nobre acto de cear juntos.

Casa VelhaRecuperado das cinzas do Vesúvio na cidade de Pompeia, há um pão carbonizado, com quase 2000 anos que reforça esta ideia. Um pão circular com marcas indicativas por onde deveria ser cortado e mais tarde compartilhado. Um pão que nos parece querer relembrar um ensinamento bíblico, o de “partir o pão juntos”, e que petrifica, literalmente, o poder que uma refeição pode ter para criar relacionamentos, enterrar machados de guerra ou de provocar gargalhadas sinceras.

Casa VelhaEsta importância das refeições nos relacionamentos é-nos também transmitida pelas crianças. Quantos dos nossos pequenotes fazem bolos de lama, pães de areia, chás com água do mar, quantos deles trocam comida para fazerem novos amigos e imitam os rituais gastronómicos dos adultos nas suas brincadeiras? São também eles que gostam de comemorar com o primeiro alimento doce o seu primeiro aniversário. Esta associação entre comida e o amor perdurará ao longo da vida, e para aqueles que acreditam, continuará na vida após a morte com memoráveis banquetes (aviso desde já que se não existir boa enogastronomia do lado de lá, dou por perdido todo o tempo despendido em missas, quero acreditar que o transformar água em vinho não tenha sido apenas um mero detalhe :P).

Casa VelhaAté perante este desconhecido do que acontecerá depois da vida, a comida, em algumas culturas, surge como elo de ligação com os que já se encontram do outro lado, uma ponte de memória, construída de aromas e sabores e materializada nas iguarias deixadas à beira do túmulo, para que os que já partiram saibam que não nos esquecemos deles. E mesmo em tempos difíceis, o desejo de comemorar através de uma refeição perdura.

Casa VelhaLi estes dias no livro Rumo ao Polo Sul que em 1902 em plena Antárctica, durante a expedição Discovery de Robert Falcon Scott, os seus homens prepararam uma refeição mais requintada para comemorar o Dia do Solstício de Inverno (o dia mais curto e a noite mais longa do ano, num dos locais mais frios do planeta, havia mesmo alguma coisa para celebrar?). Centenas de quilos de comida e alguns vinhos tinham sido guardados exclusivamente para essa noite. O frio, a escuridão e o isolamento foram esquecidos durante o tempo em que decorreu o jantar. Scott escreveu no seu diário: “Com este jantar, todos concordamos que havia algo pelo que continuar a viver, mesmo aqui, na região antárctica”.

Casa VelhaMas o que nos leva a querer celebrar os  momentos que achamos importantes através da comida, será simplesmente a fome? Será apenas um instinto? Afinal precisamos de comer para sobreviver, assim como precisamos de respirar, de beber e de dormir. É um instinto tão poderoso que as pessoas com fome não conseguem pensar em mais nada ... a não ser em comida. Mas não pode ser apenas isso, o acto de partilhar uma refeição tem de ser muito mais significativo do que a simples satisfação de uma necessidade, ainda que básica. 

Casa VelhaPara a maior parte de nós (convenhamos, a melhor parte ;)) comer é um prazer, é um modo de viajar, é uma das experiências sensoriais mais completas que podemos ter, chega por vezes a ser emocional, pois traz-nos conforto, tranquilidade, memória e felicidade. Se pensarmos bem, esta concepção de gastronomia é a responsável pelas maiores diferenças culturais entre os diferentes povos. Quase sem repararmos nisso, a comida (produção e distribuição), é desde há muito tempo, a principal actividade económica mundial. E é aqui que surgem os restaurantes e a diferença entre fome e apetite.

Casa VelhaDe acordo com Elliott Shore e Katie Rawson, co-autores do livro Dining Out: A Global History of Restaurants, os primeiros estabelecimentos que poderiam ser considerados "uma espécie de restaurantes" surgiram por volta do ano 1100 na China, quando cidades como Kaifeng e Hangzhou tinham de alimentar populações urbanas com mais de 1 milhão de habitantes. Nesses restaurantes eram servidas as mesmas refeições (ou pelo menos bastante parecidas) com aquelas que as pessoas preparavam em suas casas.

Casa VelhaÉ já no Japão do século XVI que se dá um grande passo gastronómico e que deriva das tradições das casas de chá japonesas dessa época. O chefe japonês Sen no Rikyu, inventa o jantar kaiseki com vários pratos, em que os menus de degustação eram criados para contar a história de um determinado lugar ou estação do ano. Os netos de Rikyu expandiram a tradição para incluir pratos especiais e talheres que combinavam com a estética da comida servida. Já estão a ver onde isto vai parar não é verdade?

Casa VelhaEnquanto os Chefes japoneses criavam experiências gastronómicas totalmente sensoriais através dos seus menus de degustação, uma tradição paralela começava paulatinamente a estabelecer-se no Ocidente, conhecida como table d'hôte (mesa de hospedagem by google tradutor), uma refeição com preço fixo e servida numa mesa comunitária. Este tipo de refeição, super estranha para os padrões de então, era comida em público com amigos ou estranhos, reunidos em torno de uma mesa "estilo familiar", podendo-se assemelhar à filosofia de alguns restaurantes da nossa época. A refeição era servida apenas uma vez por dia, exactamente às 13h00, e o menu não era escolhido pelo cliente mas sim pelo Chefe. 

Casa VelhaAs lendas mais românticas dizem-nos que os primeiros restaurantes franceses com características mais próximas dos actuais (sem mesa comunitária) surgiram em Paris após a Revolução Francesa, quando os Chefes gourmet provenientes da aristocracia guilhotinada foram procurar trabalho. Contudo, a historiadora Rebecca Spang, da Universidade de Indiana, conta-nos algo bem diferente. A palavra restaurante deriva do verbo francês restaurer, “restaurar a si mesmo”, e os primeiros restaurantes franceses, abertos algumas décadas antes da revolução de 1789, pretendiam ser lojas de alimentos naturais, quase medicinais, que vendiam um prato principal: o caldo de carne.

Casa VelhaA descrição francesa para este tipo de caldo de osso cozinhado lentamente ou consommé é um restaurante de caldos ou “caldo restaurador”. Esses primeiros restaurantes de caldos apareceram nas décadas de 1760 e 1770 e capitalizaram a sensibilidade da era do Iluminismo, de um certo comer diferente e com elegância, entre a classe mais rica de comerciantes parisienses. A filosofia mais rígida dos restaurantes com mesa comunitária encontrava finalmente maior flexibilidade nestes novos restaurantes. Os clientes sentavam-se numa pequena mesa parecida com a de uma de café, havia um menu impresso, eram as pessoas que escolhiam o que iam comer e os horários eram mais alargados.

Casa VelhaCom o sucesso destes restaurantes de caldos iluministas, não demorou muito para que os menus se aventurassem por outros caminhos. Um pouco de vinho aqui, um pouco de frango cozido acolá... Será que os clientes gostariam se experimentar coisas mais exclusivas como foie, trufas ou lavagante? E assim, no final da década de 1780, os restaurantes de caldos evoluíram para os primeiros grandes restaurantes parisienses, como o Trois Frères ou o La Grande Tavene, que se assumiram como o arquétipo dos restaurantes finos que iriam aparecer um pouco por todo o mundo.

Casa VelhaQuem se deslocava/desloca a este tipo de restaurantes não vai pela fome, pela necessidade fisiológica de comer. Quem procura fine dining fá-lo pelo apetite de experimentar algo diferente, pelo desejo de comer ingredientes diferenciados, pelo ímpeto de perceber a história de um determinado lugar, de um restaurante, de um Chefe ou de uma cultura. E normalmente fá-lo na companhia daqueles que mais ama, neste aspecto, nada nos separa dos hominídeos que frequentavam a caverna Qesem, perto de Tel Aviv.

Casa VelhaHoje escrevo-vos sobre um restaurante que celebra a comida honrando esse legado histórico dos Chefes japoneses do século XVI e do iluminismo gastronómico parisiense do século XVIII: o Casa Velha. Foi o primeiro local gastronómico da Quinta do Lago e conta agora com um novo Chefe de cozinha, Alípio Branco, que refinou o menu à la carte com pratos de autor assentes em produtos frescos, locais e sazonais. O menu de degustação (que entretanto, e como tem de ser, foi mudado para a nova estação) conta com identidade, pertença e originalidade, mas sobretudo conta ... uma história de uma região através dos aromas, das cores, das texturas e dos sabores.

Casa VelhaComungando com o principio, cada vez mais importante, de sustentabilidade o restaurante abastece-se de frutas de legumes na Q Farm, a quinta biológica da Quinta do Lago e nos mercados locais de Quarteira, Loulé, Albufeira e Olhão. O sal chega de Castro Marim, o mel de Moncarapacho e as ostras da ria formosa. Esta relação com a comunidade envolvente é fortalecida também com o estabelecimento de uma forte ligação com os artesãos locais que foram desafiados para desenvolverem loiças e talheres únicos, que combinassem com a excelência da gastronomia que é servida do restaurante. Vão ver, mais à frente, que esta relação roça a perfeição no prato vegetariano.

Casa VelhaPassando para o mais importante, a comida, lá podemos encontrar apenas dois menus. Um mais curto, o Menu Epicure, com 4 momentos – uma entrada,  um peixe, uma carne e uma sobremesa. Experimentamos o menu maior, o Menu Degustação, com 7 momentos (que na verdade são bastante mais). O primeiro divide-se em 4 snacks "Caranguejo com a sua carne" (mar, crocância e untuosidade); "Telha de azeitona com sardinha estivada, pimento assado e Garum" (sabor deliciosamente intenso a sardinha combinado com a acidez e doçura do pimento a fazer recordar os santos populares); "Almofada de azeitonas com pata negra"  (textura elegante, untuosidade e intensidade); e a "Cenoura algarvia com couve-rábano, gel de vinagre, pó de coentros e trevo" com uma alma agridoce que prepara o palato para o que se segue.

Casa VelhaDepois do pão confeccionado no restaurante (através de um processo que envolve massa mãe e fermentação lenta) acompanhado de manteiga artesanal da Rainha do Pico nos Açores, surgiu na mesa a amuse bouche "Cavala curada com maça verde e espuma de citrinos" na qual um peixe modesto pode ser a estrela, enobrecido pela finess da espuma e pela acidez de todo o conjunto. A dar inicio à parte "mais a sério" surgiu a "Ostra, Camarão do Atlântico, Códio “Green Seaweed”, plankton e Crème Fraîche". As ostras como vos disse anteriormente chegam diariamente de fornecedor local, o Moinho dos Ilhéus, e são frescas, grandes, carnudas, suculentas, muito saborosas e levemente iodadas. Os outros ingredientes densificaram o aroma a mar, transportando-nos para ele, imediatamente. Estava deliciosa!!!

Casa VelhaO "Lírio curado dos Açores com granisado de gaspacho, limão galego, tomate rosa, pepino local fermentado e orégãos" brindava-nos com uma carne firme, voluptuosa e com um ligeiro aroma de algas marinhas. A acidez complexa combinada com alguma adstringência/vegetatidade do granisado de gaspacho, do limão galego, do tomate rosa e do pepino local fermentado era deliciosa, fazendo com que não nos cansássemos do prato, apesar da sua intensidade. O "Arroz de lavagante azul com arroz de Alcácer do Sal, alga, caviar e molho Nepeta" combinava de modo super equilibrado sabores, texturas e aromas, em que nenhum ingrediente se sobrepunha ao outro e a harmonia era perfeita. Carregava ainda um sabor a mar inspirador, que nos entrava pelo palato a dentro e ficava agarrado aos rochedos das nossas mais bonitas memórias. O lavagante estava cozinhado no ponto e foi servido na temperatura certa, os acompanhamentos pensados ao pormenor, acrescentando frescura, voluptuosidade, textura e uma boa dose de surpresa.

Casa VelhaO "Pregado servido com xerém de bivalves molho cremoso de berbigão" era outro que parecia uma redução de mar da costa algarvia, transportando também a sua identidade. Mais uma vez destaco a temperatura, um pouco mais elevada do que é normal no marisco mas que ajudava a intensificar os aromas. O peixe bastante macio e com um sabor maravilhosamente suculento ganhava excentricidade na presença de um vibrante xerém de bivalves. O prato vegetariano "Flor de curgete, batata-doce com laranja, milho grelhado, tomates secos ao sol, molho de milho e pimento assado avinagrado" foi das maiores surpresas que tive este ano. Tinha tudo, complexidade, doçura, acidez, fumados, adstringência e uma alma enorme trazida pelo molho de milho e pimento assado avinagrado. Poderá um vegetariano ser carnudo? Pelos vistos sim!!! ;) Muito bem. Parabéns pela originalidade e dedicação na confecção, no empratamento, na loiça e nos talheres. 

Casa Velha

Depois da estalada gastronómica anterior, seguiu-se o "Filé de rubia galega, puré de batata com cecina, trufa, puré de aipo e jus de trufa", em que mais uma vez o equilíbrio e intensidade de sabor eram as notas dominantes. A textura da carne estava irrepreensível e o ligeiro toque de alecrim alargava a experiência no palato.  Após termos terminado este prato o Gui adormeceu, um segundo depois surgiu um cobertor super confortável para cobrir o menino, estas coisas também contam neste género de restaurante. Como pré-sobremesa, "Melancia infundida com lucia-lima,  e granizado de limão Yuzo". O amargo do limão equilibra bem a explosão tropical ligeiramente doce da melancia com lucia-lima, delicioso e super fresco!!!

Casa VelhaPara acabar o repasto, "Representação de pêssego com iogurte São Brás, pêssego grelhado e sorvete de framboesa". Já encontrei imitações desta obra de arte gastronómica em muitos lados, mas nenhuma tinha a complexidade, intensidade, harmonia e diversidade de texturas com que esta se apresentava. O pêssego assado coloca todos os elementos da sobremesa no mesmo "tom" e o gelado de framboesa dá-lhe uma elevação na acidez que nos faz querer provar mais uma colherada. A pequena flor de pêssego lateral, não é inocente apesar de discreta, acrescentando mais uma textura e mais um nível de confecção do pêssego. Muito, mas mesmo muito bom!!!  Antes de irmos para casa, o modo como o café e os petit fours foram concebidos e servidos relembravam-nos que estivemos num sitio muito especial...

Casa VelhaUma palavra ainda para o serviço, não falhou uma única vez (e olhem que estive bem atento às outras mesas ;)) e foi sempre executado com requinte, cuidado e conhecimento. Os vinhos estão muito bem entregues ao sommelier José Baião (tenta fugir um pouco à harmonização óbvia e aos produtores do costume) e a chefia de sala,  a cargo de Paulo Porta Nova, faz com que o jantar decorra quase como um bailado, sem pressas, com atenção aos detalhes e através de uma certa proximidade afectiva, sem ser invasiva, que fica sempre bem.

Casa VelhaÉ por tudo isto que o nosso apetite por novos aromas, novas texturas e novos sabores, é bem mais forte que nós. Foi também com ele, e por ele, que espalhamos a humanidade pelo mundo e possibilitamos o desenvolvimento da nossa civilização e da nossa cultura. Desde que embarcaram juntos na nau Santa Maria, apetite e progresso não mais se separaram. A 12 de Outubro de 1492, na tentativa de encontrar uma rota alternativa, por mar, para a Índia, Cristóvão Colombo "descobre" as Américas no local onde hoje existem as Bahamas.

Casa VelhaEsta descoberta, para além de dar novos mundos ao mundo, também lhe deu novos alimentos, novos sabores e novos sotaques. Grande parte dos ingredientes que integram o "típico jantar europeu" (se é que podemos usar esse conceito) advêm de Colombo, um brinde a ele por isso... No principio era a fome que nos fazia deslocar a um restaurante, agora, como vos acabei de contar, é bem mais que isso...

Sei que atraio sempre chatices com o género de afirmações como a que guardei para final, mas não quero saber disso, este restaurante é mais um que se não ganhar a estrela, vai fazer com que alguém fique muito mal na fotografia deste ano e conduza à percepção generalizada de que talvez esteja na hora de repensarmos nesta história das estrelas, sobretudo as portuguesas...

 

Monte Santo Resort | Escrito na água

"Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, «olhos de cigana oblíqua e dissimulada». Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim."  Machado de Assis

Monte Santo ResortHá muito muito tempo (as melhores histórias têm mesmo de começar assim, não é verdade? :P), pelas terras algarvias, vivia um rei mouro de seu nome Benagil. Benagil tinha uma filha muito bonita chamada Alfanzina e que adorava passear junto ao mar, até que certo dia e durante um dos seus passeios encontrou um airoso rapaz chamado Carvoeiro, pelo qual se apaixonou perdidamente.

Monte Santo ResortOs encontros entre a princesa Alfanzina e o seu amado Carvoeiro passaram a ocorrer diariamente, tal era a chama amorosa que os unia.  Estas aventuras românticas foram no entanto precocemente interrompidas, no preciso momento em que o rei Benagil as descobriu, proibindo a sua filha de namorar com o Carvoeiro. 

Monte Santo ResortComo nestas coisas do amor, as filhas, infelizmente não querem saber muito daquilo que o pai pensa, Alfanzina passou a encontrar-se às escondidas com Carvoeiro, num lugar secreto chamado Algar-Seco. 

Monte Santo ResortOs dois enamorados, num certo dia, abraçaram-se tão intensamente que se esqueceram do mundo que os rodeava, não reparando que estavam a ser observados pelo rei mouro, que enfurecido com tamanha desobediência por parte da filha trespassou o Carvoeiro com a sua afiada adaga, roubando-lhe a vida (futuros hipotéticos "namorados" da Bia, este é um texto que vos recomendo vivamente, apenas porque gosto muito de lendas, como é óbvio :P). 

Monte Santo ResortO corpo do jovem Carvoeiro caiu ao mar, sendo levado pela maré. Reza a lenda que desde então a princesa Alfanzina se esconde no local onde o seu amado foi morto e aí exteoriza, dia após dia, as suas mágoas através do choro.  As suas lágrimas ainda hoje caiem nas rochas, com tal intensidade, que cavam pequenas aberturas por onde a água do mar as vêm diluir.  

Monte Santo ResortDaí resultaram as grutas que hoje podemos observar perto da praia do Carvoeiro, sendo a água que as banha uma memória viva de um amor que outrora uniu Alfanzina a Carvoeiro. Curiosamente a água serviu também de "amplificador sentimental" para uma história de amor trágico bem mais conhecida de todos nós: Romeu e Julieta de William Shakespeare.  

Monte Santo ResortQuando em 1996 Baz Luhrmann realiza o filme Romeu e Julieta, resolve introduzir o simbolismo da água que não existia no texto original de Shakespeare. (Uns parênteses apenas para um aparte cine-literário, quanto a mim, é esta "batota" que faz com que o filme consiga ter quase a mesma carga emocional que os leitores encontram no livro). 

Monte Santo ResortNo filme a água é utilizada para revelar alguns sentimentos impulsivos e intensificar a ligação romântica entre Romeu e Julieta. Romeu (Leonardo DiCaprio) é visto pela primeira vez à beira-mar. Julieta surge em cena imersa na água de uma banheira. O casal vê-se pela primeira vez por intermédio da água, despertando a atenção um do outro através de um aquário iridescente (revejam esta cena porque foi muito bem construída).  Mais tarde, o palco do famoso diálogo na varanda no texto original de Shakespeare é substituída no filme pela piscina dos Capuleto

Monte Santo ResortAssim a água assume-se como uma das mais bonitas metáforas do amor:  por ser transparente, por ser pura e por ser bela. Curiosamente, a água que permite algum contato na piscina é também aquela que cria uma certa barreira física para o seu relacionamento pleno.  

Monte Santo ResortCom o decorrer do filme, este caracter bipolar da água é acentuado, especialmente depois de Romeu e Julieta se casarem. No impasse da guerra entre os Capuletos e os Montéquios, Romeu mata Tebaldo, que cai e o seu sangue escorre para a água, tingindo-a de vermelho. Simbolicamente é aqui que a relação de Romeu e Julieta não tem mais esperança, pois está maculada, poluída pelas mortes e pelo ódio entre famílias. 

Monte Santo ResortApós a morte de Tybalt, tudo o que a água representava entre o casal perde-se, conjuntamente com a sua inocência e esperança. Quase como se nada pudesse interpor entre este casal e seu futuro forçosamente infeliz, reforçando a ideia de que a morte seria a única maneira de Romeu e Julieta estarem juntos. E todos sabemos como esta história acaba, não é verdade? Tirando a parte trágica comum a estas duas histórias, uma lenda e um romance, em ambas a água serve para nos relembrar que todos nós, de um modo ou de outro, queremos ser amados. 

Monte Santo ResortSer amado incondicionalmente, ser amado sem julgamentos, ser amado sem ultimatos, ser amado apenas porque somos dignos de ser amados. Aliás, deveria de ser obrigatório (eu e os exageros :P) apaixonarmo-nos por alguém ao ponto, de tal como Machado de Assis, classificarmos o olhar da cara metade como oblíquo e dissimulado, de tamanha sedução, amor e absorção que esses olhos carregam. Eu a respeito de olhares oblíquos e dissimulados estou bem servido :P 

Monte Santo ResortA água mostra-nos também que é importante criarmos momentos para celebrarmos esse amor, de modo a que este se torne à prova de reis mouros, adagas, guerras entre famílias rivais italianas ou punhais. E para isso, nada melhor que uns dias passados naquele que foi considerado pelos World Travel Awards (e pelo sexto ano consecutivo!!!) o "Resort mais romântico da Europa".  

Monte Santo ResortMonte Santo Resort encontra-se situado na aldeia piscatória do Carvoeiro, perto do Algar-Seco (que foi o palco principal da lenda que vos contei),  e a escassos minutos das maravilhosas praias do Algarve, das misteriosas grutas da costa algarvia e dos melhores campos de golfe da europa. Silves (e o seu Castelo, Sé, museu e ... marisco!!! 😛) fica a apenas 5 minutos de carro. 

Monte Santo ResortLá encontramos um oásis de bem-estar com oito hectares de jardins e lagos (há água por todo o lado e agora já sabem o porquê :P), repletos de fauna, flora selvagem e muito bom gosto. Ficamos numa moradia geminada com dois pisos e com vista privilegiada para o jardim e piscina, super tranquila, confortável e com todas as mordomias que um resort como este tem de oferecer... 

Monte Santo ResortO staff é atencioso, a gastronomia de excelência (as iguarias do restaurante podem ser servidos, com pompa e circunstância, no pátio da moradia, possibilitando uma experiência muito bonita e ... reservada) e o cuidado nos detalhes para as famílias com crianças é minucioso. Tivemos uns amigos que estiveram no resort após a nossa estadia e nos informaram que esta possibilidade do delivery já não existia, é uma pena porque fomentava momentos mais românticos e intimistas. Para nós foi mesmo um dos pontos mais altos da visita. 

Monte Santo ResortO restaurante Aroma apresenta alta gastronomia num ambiente descontraído com vista para a magnífica piscina. Potencia sabores mediterrânicos, regionais e genuínos onde os pratos tradicionais vestem um fato de gala graças ao engenho e à criatividade do chefe Miguel Lourenço. 

Monte Santo ResortDestacamos a intensidade gulosa da Sopa de tomate com crumble de broa de milho e ovo a baixa temperatura, a aristrocacia aromática do Peito de pato com aromas de hortelã, beterraba e gelado de foie gras, a suculência, untuosidade e diversidade de influencias do Naco de novilho com aromas de alecrim, tomate confitado, espargos salteados, gratin de batata e molho bernés e o sabor delicado e requinte do Crème Bruleé de Pistachio com merengue e gelado de coco. Ainda na gastronomia o pequeno almoço é rico, diversificado, completo e assente em produtos frescos e de elevada qualidade. 

Monte Santo Resort O mini clube Fun Attic disponibiliza uma série de actividades, divertidas e educativas, supervisionadas por profissionais, dando aos pais alguns momentos de descanso enquanto os nossos pequenos tesouros estão entretidos e felizes. Há ainda um generoso parque infantil que faz as delicias dos mais pequenos. 

Monte Santo ResortFérias de luxo também deveriam ser sinónimo de piscinas suntuosas, neste resort existem seis exteriores e uma de interior aquecida. Uma delas, a principal, é quanto a nós uma das mais bonitas do país. Este hotel poderia não ter nada do que dissemos anteriormente, que ainda assim valeria a viagem Guimarães-Algarve só pela airosidade deste verdadeiro templo de água. 

Monte Santo ResortPara os eternos apaixonados há ainda a possibilidade de um piquenique em casal em pleno jardim, de um jantar na pérgula no meio do lago, de uma declaração amorosa (forçosamente ridícula segundo Fernando Pessoa) na  ponte do amor, de um banho com espumante e morangos no jacuzzi ou de uma massagem em casal no Alma Spa.

Monte Santo ResortTal como com as pessoas, embora com menos intensidade, há sítios pelos quais também nos enamoramos à primeira vista, o Monte Santo Resort, foi um deles. Outra coisa não seria de esperar de um espaço pensado para celebrar os diversos tipos de amor que nos unem aos nossos mais importantes. Têm tudo para serem lideres neste tipo de destino.

 

Valados de Melgaço | Outrora e Outros Tempos

"A vida é amarga e doce. Por isso não há outra forma de a honrar senão captando estes dois sabores." Jim Harrison

Valados de MelgaoFinalmente, e depois da azáfama das férias/roadtrip/baptizados/regresso ao trabalho, estamos de volta ao #cáporcasa. A ver se consigo fazer "isto" pelo menos duas vezes por semana, a fim de "despachar" as coisas boas que tenho na cave.  O "reinicio" deste espaço vai ser feito com um produtor da região dos Vinhos Verdes que aprecio muito: o Valados de Melgaço. O nome desta região, apesar de lhe assentar bem, por vezes, ainda cria algumas confusões, até para os especialistas. 

Valados de MelgaçoA associação errada com uvas colhidos verdes (quando na verdade esse verde "apenas" relembra a flora da região ou a acidez dos seus vinhos) fez com que até há um par de décadas esses Vinhos Verdes fossem (re)conhecidos apenas dentro de portas.

Valados de MelgaçoOs preços baixos e as gamas de entrada com um perfil muito fácil, por vezes assente numa "carbonização" quase refrigerante e muita acidez, fez com que as vendas começassem a crescer em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Alemanha, a França e o Reino Unido. Esse perfil dos primeiros verdes exportados fez com que alguns especialistas (como a Madeline Puckette da Wine Folly) o descrevessem como "o vinho de Verão sem fim ... a lima seca que tu sempre desejaste num dia quente."

Valados de MelgaçoFelizmente esse desconhecimento foi desaparecendo, muito por culpa de alguns produtores que elevaram claramente o nível dos vinhos que ali se produziam, e que originaram um mea culpa da Madeline: "hoje em dia nos Vinhos Verdes podem encontrar produtores de ponta que evitam a carbonização artificial. Esses vinhos, em particular, estão a par dos melhores da Europa e podem envelhecer lindamente!!!"

Valados de MelgaçoOs vinhos que vos falo hoje ajudam a explicar através dos aromas e dos sabores essa evolução qualitativa que os Vinho Verdes passaram. Começo por um que na sua edição de 2016 ganhou o prémio de melhor espumante #cáporcasa: O Valados de Melgaço Alvarinho Reserva Extra Bruto 2017 (35 €, 91 pts.). Pareceu-me bem mais Bruto (seco) e com mais corpo que a edição anterior mas com a mesma bela cor amarela-citrina. 

Valados de MelgaçoDe bolha fina e duradoura, exibe notas muito elegantes a relva acabada de cortar, flores brancas, maçã verde, ananás e um subtil brioche. Na boca mostra uma acidez bem vincada e irreverente, crocância, secura e persistência. É quanto a mim um dos melhores espumantes que se faz na região e com uma excelente relação qualidade/preço. Acompanhou, inextremis, um Leitão assado.

Valados de MelgaçoUmas Lulas recheadas com legumes, chouriço e manga foram a desculpa ideal para comparar o Valados de Melgaço Alvarinho Reserva 2015 (11 €, 88+ pts.) com o Valados de Melgaço Alvarinho Reserva 2019 (11 €, 88 pts.). A versão de 2015, amarelo-limão, acrescentava às notas de maracujá, lima, folha de limoeiro e alguma pedregosidade, já algumas notas de evolução como o mel, o feno e avelã. Gostei muito.

Valados de MelgaçoGostei ainda mais do Valados de Melgaço Alvarinho Reserva 2019 (11 €, 90 pts.), aliás, quanto a mim esta é a melhor edição deste vinho. É amarelo-esverdeado no traje e muito rico no nariz, com maça verde, toranja, ananás, citronela, flores brancas e alguma pedrogosidade. No palato é longo, tenso, rico, frutado, fresco e equilibrado. Tenho a certeza que ainda vai melhorar em garrafa, estou expectante (depois de ver o que aconteceu com o 2015) para voltar a conversar com ele daqui a alguns anos... ;) 

Castas & Pratos | O lugar onde o arco-iris se ergueu

"Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz, por muito que o coração diga, não faças o que ele diz... Nada do que por lá vires será como no passado, não queiras reacender um lume já apagado." Rui Veloso

Castas & PratosNunca regressem a lugar onde já foram felizes!!! Costumo ouvir e ler este estranho conselho imensas vezes, mas ao perceber que duas das minhas referências culturais (de áreas, de tempos e de latitudes tão diferentes) concordavam com ele, levou-me a dedicar-lhe alguns minutos nos meus intrigantes pensamentos pré-adormecimento.  

Castas & PratosÀ frase de Rui Veloso com que introduzi esta publicação junto outra de Agatha Christie: "Não se pode, jamais, voltar ao lugar que já existe na nossa memória. Não o veríamos com os mesmos olhos, mesmo supondo que, de maneira improvável, esse lugar possa ter permanecido o mesmo. O que tivemos, tivemos. Nunca se deve voltar para um lugar onde já se foi feliz, caso contrário, a memória alegre que até aí permanecia viva, será destruída".

Castas & PratosMas qual é o stress destas pessoas com os regressos? Porque é que não devemos voltar aos lugares onde fomos felizes pela segunda, pela terceira ou pela enésima vez? Há algum mal (quase obrigatório) associado a esta vontade de reavivar momentos felizes?

Castas & PratosSerá que essas objecções estão relacionadas com um medo inconsciente de uma possível decepção ou de não sermos felizes novamente? Será que algumas pessoas o fazem para não traírem a memória ou os bons momentos que lá possam ter vivido e por temerem que estes sejam irremediavelmente substituídos por uma experiência diferente e não necessariamente tão boa? 

Castas & PratosOu será antes, pela temível possibilidade de percebermos que a nossa mente, como o decorrer do tempo, tenha deificado essa felicidade que supostamente vivemos. Nesse caso, o regresso a esse lugar não passaria de uma simples constatação que a felicidade se confundiu com saudade, algures numa sinapse perdida no nosso cérebro.

Castas & PratosNa verdade não sei qual destas hipotéticas respostas se aproximará mais da verdade. Só sei que no meu caso, gosto de voltar aos lugares onde já fui feliz. Não só aos lugares, mas também às pessoas, com as pessoas. Se já lá fui feliz uma vez, porque carga de água não poderei ser feliz novamente? Aliás, porque não poderei ser ainda mais feliz? 

Castas & PratosComo é óbvio não posso garantir que esse regresso seja obrigatoriamente bem sucedido e desprovido de infelicidade, mas caso esta não seja uma nova experiência totalmente satisfatória, há algum problema com isso? Não podemos é deixar que a felicidade que esse lugar ou essa pessoa nos deu no passado seja roubada ou fundida com uma inesperada má vivência no presente, condicionando possíveis retornos no futuro.  

Castas & PratosEsta implicação com os regressos quando relacionada com a gastronomia parece-me ainda mais destituída de racionalidade, pois quer na gastronomia quer na vida, para seguir em frente, temos muitas vezes de regressar atrás (bem esta saiu um pouco mais profunda do que aquilo que eu estava à espera :P). 

Castas & PratosTudo isto a propósito do local sobre o qual escrevi a primeira critica gastronómica do blogue, em Março de 2015 (o tempo passa rápido): o restaurante Castas & Pratos. A visita ocorreu de modo bem diferente das actuais, sem caderno, sem máquina fotográfica, sem noção ... sem a Bia e sem o Gui.  

Castas & PratosNa altura escrevi o seguinte: "O Castas e Pratos fez-me querer libertar todas as inocências que ainda carrego, uma por uma, mas com calma, sem pressas. Despertou-me a querer ter um dialogo incessante com o meu palato até ao fim dos meu dias, serenamente. É um restaurante que vale pelo todo, uma espécie de comboio degustativo do passado, que nos transporta no presente para estações sensoriais que teremos saudades no futuro. Iniciei esta minha viagem num dia de nevoeiro no vale do Douro, regressarei, certamente, para uma outra primeira vez, inédita, indelevelmente..." 

Castas & PratosÉ sobre essa outra primeira vez, inédita, indelevelmente que vos falo hoje. Castas & Pratos, abreviadamente CP, condiz com o local onde se situa (num antigo armazém da estação de comboios da Régua), que foi remodelado por vontade de dois empreendedores (o Edgar e o Manuel), ligados por laços familiares (são primos), e movidos pela ambição de fazer diferente e também pela paixão em comum pelo Douro.

Castas & PratosEssa paixão pela região duriense está não só bem patente na gastronomia moderna e criativa, mas sem nunca descurar o canône gastronómico da região, como também na carta de vinhos, muito vasta, com qualidade e heterogeneidade, sobretudo no que ao Douro diz respeito. A sala de jantar harmoniosamente distribuída por dois pisos (e quando o tempo permite por uns vagões em plena via férrea!!!) está cheia de bom gosto, conforto, requinte e memória.

Castas & PratosDesta vez o repasto começou com um Ravioli de perdiz, mourilhas e foie gras, quase perfeito e um dos pratos que mais me marcou neste ano. Digo quase perfeito, porque a acrescentar à intensidade, voluptuosidade e subtileza só faltou mesmo um empratamento que engrandecesse, esteticamente, um pouco mais, a nobreza dos aromas e dos sabores nele contido. 

Castas & PratosSeguiu-se um Polvo em azeite e ervas, batata salteada com alcaparras, tomate cherry e chalotas. Levemente glaceado por fora, quase que levemente fumado, e por dentro gulosamente tenro, saboroso e suculento. O sal estava no ponto e combinava na perfeição com a irreverência avinagrada das alcaparras, com a acidez alegre do tomate e com a doçura aristocrata das chalotas. Delicioso e bastante complexo.

Castas & PratosNo prato de carne surgiram na mesa, com certa formalidade, uns  Milhos no pote e costelinhas de javali em vinho tinto. Um prato guloso, intenso, saboroso e cuja confecção conduziu a pedaços de carne untuosos, ricos, a desfazerem-se no prato e incrivelmente macios. 

Castas & PratosA carne de javali era de uma textura tão delicada que quase que não era necessário mastigar. Rico, aromático, levemente acídulo, que quando conjugado com a ligeira doçura dos milhos, se assumiu como uma criação que ainda hoje me faz salivar. De comer e chorar por mais!!!

Castas & PratosAntes de passarmos para as sobremesas não posso deixar de chamar a atenção para o menu infantil, um Filete de dourada (sem espinhas e sem pele/escamas) com batata e arroz branco a mostrar que também a pequenada ali é muito bem tratada (não sobrou nada do peixe!!!). Por falar em pequenada, vamos então à parte que normalmente é a favorita deles, começamos pela elegância do Limão com crumble, mousse de limão e finacier de amêndoa, que exibia uma provocante crocância exterior, enquanto que por dentro nos brindava com uma mousse muito fofa, fresca e graciosa.

Castas & PratosNo entanto o meu destaque vai para o Ovo, com mousse de queijo, recheio de doce de ovos, terra de chocolate e maracujá e massa kadaif. Tem tudo o que eu gosto numa sobremesa: sabores originais, doçura q.b., muita acidez, untuosidade, texturas contrastantes e complementares, apresentação cuidada e uma fusão harmoniosa (e nada evidente) de diferentes influências/técnicas.  

Castas & PratosNa companhia das notas citrinas, de resina, de mel e de amêndoas trazidas por um belo Porto, este é um prato para ser desfrutado com calma, sem pressas e com um certo sorriso trocista para com a frase que introduziu esta crítica gastronómica, pois muitas vezes essas regras da sensatez chocam de frente com a intemperança saudosista dos bons momentos que, como este, celebram a vida junto daqueles que mais gostamos, nos sítios que mais gostamos a fazermos aquilo que mais gostamos.

Castas e PratosAssim, desta vez, quem não cumpriu foi mesmo o Rui Veloso. Não, não foi por alguém não ter tirado o vestido (:P), foi porque aquilo que ele também havia prometido, o de apenas encontramos cinzas de memórias passadas quando regressássemos a um lugar onde o arco-iris já se pôs (onde já não podemos encontrar as alegrias passadas), manifestamente não aconteceu. Fica prometida uma nova visita, e para mim, o prometido é mesmo devido... ;)