Encruzados Soito | Darwin e os vinhos
“Um bom vinho é como um bom filme: dura um certo momento e deixa-nos na boca um gosto de glória. É novo a cada gole e, como acontece com os bons filmes, nasce e renasce em cada trago.” Federico Fellini
Meus caríssimos e estimados leitores, se pensam que vou falar de algum futebolista podem já parar a vossa leitura por aqui... ;) A publicação de hoje, e que marca uma pequena mudança no espaço #cáporcasa, com textos mais curtos, menos esmiuçados, mais directos e mais frequentes (já sei que nem sempre vou conseguir cumprir a parte dos mais curtos" :P), coloca-vos uma questão. Qual terá sido a contribuição de Charles Darwin (o pai da Teoria da Evolução) para o mundo dos vinhos, e porque devemos, de vez em quando, dedicar-lhe um brinde? Este não é um assunto recente, pois neste ano assinala-se o 212º aniversário do seu nascimento, assim como os 162 anos desde a publicação da sua tese, A Origem das Espécies.
Darwin foi um cientista extraordinário que escreveu artigos sobre um vasto rol de temas, incluindo a formação de recifes de coral, a fertilização de orquídeas, a evolução das plantas trepadeiras, a expressão de emoções nos animais, o surgimento de vermes em matéria decomposta e até a inteligência animal. Mas ... e os vinhos? As associações de Darwin com o vinho podem ser várias, apesar disso, por vezes, parecer esquecido pela comunidade. A primeira é circunstancial, pois Darwin foi um dos primeiros europeus a provar vinhos da Nova Zelândia, na viagem do HMS Beagle (um navio britânico de circum-navegação com o objectivo de explorar as terras e mares por onde passasse) em Dezembro de 1835, durante uma curta escala em Bay of Islands, no norte da Nova Zelândia.
A segunda que vos "falo" hoje, mais significativa, tem a ver com o fascínio que Darwin demonstrava pelas videiras. Ainda podemos encontrar nos dias de hoje, na sua residência de Down House em Kent (perto de Londres), uma prova viva dessa paixão: uma videira descendente daquela que Darwin usou nos seus estudos preliminares. Mais concretamente, Darwin vivia intrigado com o facto das videiras produzirem gavinhas (para escalar) e cachos de uvas (para reprodução), em frente de cada folha. Essa característica é uma marca evolutiva das videiras terem surgido num habitat florestal, há 60 milhões de anos. Com esta bifuncionalidade orgânica, a videira podia não só adaptar-se a um ambiente mais escuro e subir até à luz solar usando as gavinhas, como também, quando já se encontrava no topo da floresta, produzir frutos.
Este, acreditem, não é um apenas um pormenor cientifico, gavinhas e cachos são estados intermédios de um mesmo órgão adaptado, utilizados para funções muito diferentes. Sem entrar em muitos detalhes técnicos, essa bifuncionalidade na videira, ilustra de maneira indelével, o princípio da evolução das espécies e o modo como estas se tiveram de adaptar para sobreviver. Por tudo isto, Darwin considerou a videira um dos melhores exemplos da sua teoria da evolução, um elogio justo, feito pelo pai da evolução. Meus amigos, em tudo que é importante, o vinho está lá, até numa das mais importantes teorias cientificas alguma vez apresentadas. Beber não é um vicio, é estudar ciência... :P
Mas a evolução não é apenas visível na videira, eu cá prefiro sentir-lha, frequentemente, no copo... ;) E é à casta branca portuguesa que na minha opinião melhor evolui (a trabalheira que tive para conseguir chegar a esta transição linguística :P), a Encruzado, produzida por uma das casas que melhor a trata, a Soito Wines, que vou dedicar as próximas linhas. Para perceberem qualitativamente a evolução que estes vinhos podem ter, esmiuçarei 3 colheitas: 2018 (na altura da prova ainda em estágio), 2017 e 2016. O Soito Encruzado Reserva Branco 2018 ainda estava a afinar e a precisar de garrafa, e por isso não lhe vou atribuir nota. É contudo interessante perceber a beleza da fruta pura que transporta como limão e a toranja. Há ainda aromas a chá preto, violetas, resina e uns abaunilhados muito subtis. Estou curioso para conversar de novo com ele na sua versão "final", mais equilibrada.
Em ponto intermédio de evolução, Soito Encruzado Reserva Branco 2017 (20€, 89 pts.), de cor amarela-palha com ligeiras nuances esverdeadas, ainda exibe as notas florais bastante ricas (flor de laranjeira e limonete), folha de limoeiro, lima, pera, aromas minerais a granito molhado e apontamentos mais suaves de baunilha, resultantes da madeira bem integrada. No palato é muito fresco, mineral (quase a chegar ao salgado), equilibrado e ligeiramente untuoso. Ao contrário da prova no ano passado, já surgem algumas notas de evolução nomeadamente avelãs e cera de abelha.
O Soito Encruzado Reserva Branco 2016 (20€, 91+ pts.) está num ponto que dá (imenso!!!) prazer a beber. Traja um sedutor amarelo-palha mais vincado que o anterior, e conjuga de modo muito harmonioso a fruta (ameixa branca, maçã madura e damasco), uma ligeira vegetalidade, alguma pedrogosidade e apontamentos florais secos, com terciários belíssimos (mel, frutos secos e notas apetroladas). Estes aromas nobres são completados, surpreendentemente, por uma certa austeridade na boca, muita frescura, equilíbrio e complexidade. Ainda está cheio de garra!!!
É por causa de vinhos como este que considero esta, a melhor casta branca do nosso país, pois são vinhos que nascem e renascem a cada ano que passa, contribuindo, à sua maneira, para a teoria da evolução dos brancos do Dão. A versão de 2017 acompanhou muito bem um Arroz de tamboril e ameijoa.
Arroz de tamboril e ameijoa
-Num tacho façam um refogado com azeite, cebola, dentes de alho e pimentos, previamente descascados, lavados e picados finamente (deixem cozinhar até que fiquem douradinhos);
-Acrescentem a ameijoa e deixem abrir;
-Reguem com polpa de tomate, vinho branco, brandy e tabasco, acrescentando uma folha de louro e um ramo de coentros. Deixem refogar mais um pouco. Adicionem água e rectifiquem os temperos;
-Juntem o arroz e deixem cozinhar durante cerca de 15 minutos;
-Adicionem o tamboril em pedaços generosos e deixem cozer por mais 5 minutos.