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No meu Palato

No meu Palato

The Vintage House Hotel | Amor, vinho e um sorriso

"As memórias são as adegas da mente." Felix Timmermans

The Vintage House HotelLi as últimas páginas do "A adega de Estaline" aquando da visita ao The Vintage House Hotel. Aparentemente estes dois acontecimentos isolados nada têm a ver um com o outro, com o decorrer deste texto perceberão que há algo que os une quase umbilicalmente ... ;)

2 (3).jpg"A adega de Estaline"  é muito provavelmente o livro de vinhos mais extraordinário, improvável e fascinante que li nos últimos anos, pois mistura vinho com aventura e mistério. Fala-nos de uma enorme adega subterrânea com mais de 40 000 garrafas escondidas num antigo estado soviético.

The Vintage House HotelAs garrafas que nela constam eram propriedade de Josef Estaline que as confiscou ao último czar da Rússia, Nicolau II, e ao seu pai Alexandre III, momentos antes de os executar. Após este roubo, os vinhos foram escondidos por Estaline em Tbilisi na Geórgia, perto do local onde nasceu, pois o ditador temia que Hitler ao invadir a Rússia lhe confiscasse a colecção (ladrão que rouba ladrão...). 

The Vintage House HotelDesde então as garrafas repousaram num porão profundo, escuro e húmido, durante mais de 70 anos. A colecção é assombrosa, com mais de 200 garrafas de Château d'Yquem. Uma garrafa deste vinho do ano 1847 (haviam algumas garrafas desta safra na adega de Estaline), foi vendida em 2017 pela Christie's pela módica quantia de 37 000 euros. 

The Vintage House HotelPara além destas preciosidades, a adega contava ainda com outros grandes Sauternes e os melhores vinhos de Bordéus, alguns deles com safras que remontam há 150 anos: um autentico tesouro vínico inigualável e muito difícil de imaginar. 

The Vintage House HotelO que torna a história contada no livro ainda mais inesperada é que esta adega foi descoberta quase ocasionalmente por alguns comerciantes de vinho australianos. No final da década de 1990, John Baker era conhecido por comercializar vinhos raros, antigos e elevada qualidade em Sidney.  

The Vintage House HotelSempre empreendedor e pronto para a aventura tinha as características ideais para que Kevin Hopko, um parceiro de negócios ocasional, o abordasse com uma misteriosa e eclética carta de vinhos: os vinhos da adega de Estaline.  

The Vintage House HotelÉ assim que John e Kevin embarcaram numa viagem audaciosa, saborosa e sedutoramente perigosa para a Geórgia com 3 objectivos principais: 1) descobrir se os vinhos realmente existiam; 2) perceber se as garrafas eram autênticas e; 3) investigar se toda a colecção poderia ser comprada e transportada para uma  casa de leilões em Londres ou Nova Iorque. 

The Vintage House HotelO lucro previsto era de 10 milhões de euros!!!  Durante todo este processo, os dois amigos inspeccionaram minuciosamente a adega, manusearam garrafas, documentaram rótulos e até provaram alguns desses vinhos icónicos. O livro é um autêntico passeio selvagem, às vezes difícil, no mundo glamoroso dos vinhos de topo. 

The Vintage House HotelUm roteiro vínico que vai de Double Bay em Sidney a Tbilisi na Geórgia, passando pelas ruas de Paris, as vinhas de Bordéus e o icástico Chateau d'Yquem. Esta aventura numa adega multimilionária com uma colecção de vinhos de tirar o fôlego é um sonho que qualquer enófilo gostaria de um dia poder concretizar. 

12 (2).jpgPágina a página fui invejando cada vez mais John e Kevin. Para além de Estaline, Hitler e o czar Nicolau II, o restante elenco incluía um bando muito heterogéneo de empresários/cowboys/criminosos georgianos, nos primeiros dias do crescimento empresarial russo que levaria à Russia de Putin e aos seus oligarcas.  

The Vintage House HotelDeixando a parte vínica de lado, um dos recursos literários que torna este livro tão atraente é o uso inteligente de citações directas que dão dinamismo aos personagens e aos acontecimentos. Algumas destas citações teriam de ser inventadas, pois recordar com precisão todas as conversas que ocorreram há 20 anos não seria nada fácil.   

The Vintage House HotelDesta forma, o livro é um blend ponderado de romance ficcional com uma narrativa precisa, relembrando que a frase “Baseado numa história real” escrito na capa em letras pequeninas não está lá apenas para ocupar espaço. 

The Vintage House HotelNão vos vou contar como o livro acaba, apenas vos espicaço um pouco a curiosidade ao vos dizer que este tesouro vínico ainda se encontra disponível a uma curta viagem de avião de distancia ;)   

The Vintage House HotelEmbora o tema principal esteja seja o vinho inserido numa caça ao tesouro, atrás da Cortina de Ferro, com vista a resgatar um dos tesouros escondidos de Stalin, o secundário remete-nos para a atmosfera romântica das adegas e que ajuda a definir o que é um grande vinho: algo misterioso, imprevisível e talvez, em última análise, incognoscível.  

The Vintage House HotelFoi esta atmosfera única das adegas que encontrei no The Vintage House Hotel. Nascido da reconversão de uma antiga adegado séc. XIX, este magnífico hotel de interiores confortáveis e sofisticados aninha-se no coração da Região do Douro e por detrás da belíssima estação ferroviária do Pinhão.

The Vintage House HotelToca delicadamente o rio, numa calma e encantadora paisagem, ainda dominada pelas antigas quintas e grandes vinhas em socalcos. Assume-se como um refúgio de luxo rústico no região Património Mundial e procura criar uma atmosfera acolhedora e confortável de refúgio campestre. 

The Vintage House HotelOs quartos são super confortáveis e espaçosos, estão carregados de mimos e têm varandas com uma vista deslumbrante sobre o Rio Douro, que nos permitiu desfrutar de um fantástico pôr-do-sol.  

The Vintage House HotelToda esta exaltação do Douro também tinha de se fazer sentir também na gastronomia do hotel. No conforto do Restaurante Rabelo desfrutam-se das melhores iguarias regionais, ao nível gastronómico e vínico.   

The Vintage House HotelNum ambiente clássico e elegante, são recriados os inconfundíveis sabores do Douro, regados com os melhores néctares da região. Iremos destacar alguns deles...

The Vintage House Hotel A Supresa de pato com misto de cogumelos, creme de batata e agrião trufado carregado de sabor, intensidade, untuosidade e uma ligeira  acidez já fazia antever o mundo de sabores que iriam compor as restantes sugestões. Comia o creme de batata e agrião trufado todos os dias!!! ;) 

The Vintage House HotelSeguiu-se o melhor prato vegetariano do ano: Tagliatelle com lentilhas estufadas, nozes, pinhão, espinafres, tomate cherry assado e molho de natas.  Cheio de texturas complementares, voluptuosidade e muito sabor. Muito bom!!! 

The Vintage House HotelNos peixes destacamos o Bacalhau com feijoada de sames, puré de feijoca, mini couve, que exibia um sabor a mar inspirador e era conciliado com textura algo gelatinosa dos sames de bacalhau, com a frescura dos cominhos e com o ligeiro picante dos enchidos.  

The Vintage House HotelO feijão dava-lhe corpo, os sames davam-lhe alma. Um hino às texturas, às influências, às sabores e, sobretudo, à memória gastronómica da região. Já no campeonato das carnes, houve espaço para o  Lombinho com puré de castanha, favas estufadas, crocante de salpicão e molho de enchidos.   

The Vintage House HotelO lombo possuía uma untuosidade requintada que combinava muito bem com acidez, intensidade e riqueza aromática dos restantes ingredientes, provocando um jogo de sabores incrível que nos transportava imediatamente para o cânone gastronómico tradicional.  

The Vintage House HotelNas sobremesas, os frutos secos, a casca de laranja cristalizada e a canela do Taylor's 20 anos acompanharam muito bem o Leite Creme, enquanto que o tabaco, o chocolate preto e a ameixa do Fonseca Guimaraens Vintage 2005 foram os anfitriões irrepreensíveis da Mousse de Chocolate.

28 (1).jpgDestaque ainda para serviço, próximo, amigo e profissional, e para as outras mais valias que o hotel tem para oferecer: as bicicletas para passear pela vila, as visitas guiadas às quintas de vinho do Porto, uma bela piscina à beira do rio, uma loja de vinhos, cursos de vinhos para conhecer com mais profundidade os vinhos da região, um cruzeiro no Douro e os diferentes programas desenhados para quem quer ter uma experiência mais completa.   

The Vintage House HotelMas mais importante que tudo isso o The Vintage House Hotel tem para oferecer ... memórias. O escritor belga Felix Timmermans defende que as memórias são autênticas adegas da mente, esta antiga adega deixou-nos com algumas muito bonitas. Acho que os sorrisos dos 4 deixam transparecer uma boa parte delas... ;) 

 

SAGARDI Porto | Amor num fogo que arde sem se contradizer

"É fácil argumentar que não há melhor lugar para comer na Europa do que no País Basco. Há lá mais restaurantes com estrelas Michelin per capita do que em qualquer outro lugar da Terra. Até as diárias que por lá se servem são excelentes. O amor pela comida e a insistência nos melhores ingredientes são fundamentais para a cultura e para a vida do País Basco." Anthony Bourdain 

Sagardi PortoSe pudéssemos condensar toda a cozinha basca em apenas uma frase penso que a melhor seria: o uso conhecedor e complementar da madeira, do fumo e da chama como técnica culinária e aplicada a ingredientes da maior qualidade. Esta filosofia levou a que numa distância de 100 km possamos encontrar 30 estrelas Michelin e 5 dos 50 melhores restaurantes do mundo (tantos quantos em toda a França, berço da alta gastronomia). Mas mais importante que todos estes indicadores existe ainda outro. 

Sagardi PortoO meu doutoramento em Física (já lá vão 10 anos) foi realizado em colaboração com a universidade do País Basco e com a Universidade de Cambridge, no Reino Unido. No ano que passei em Cambridge o meu peso não alterou, o mesmo não aconteceu no ano que passei no País Basco, pois aumentei ... 10 kg!!! :P Não percebo como é que este facto super relevante não surge, com destaque, nos guias gastronómicos da região. :P

Sagardi PortoVoltando à parte mais séria do assunto, nenhuma outra região do planeta pode ostentar tamanha densidade de estrelas Michelin. Como é que esta terra de pastores, comerciantes de ferro, pescadores e pequenos proprietários, que sofreu quatro décadas de terrorismo da ETA, conseguiu chegar ao topo da gastronomia mundial? Para percebermos isso, necessitamos de perceber os Bascos e o seu país.

Sagardi PortoO País Basco é uma região com um ambiente especial e um bairrismo muito próprio. Localizado no norte da Espanha e no sudoeste da França, é uma terra de prados verdes e altas montanhas, costas escarpadas, praias douradas, vales arborizados e planícies secas. Faz fronteira com o Golfo da Biscaia e atravessa as montanhas dos Pirenéus e os contrafortes fronteiriços entre França e Espanha.

Sagardi PortoOs bascos orgulham-se da sua identidade regional e possuem um espírito de independência (mais moral que territorial) que muitas vezes definiu a sua história. São descendentes de um povo antigo sem qualquer grau de parentesco com outros europeus e falam uma língua tão estranha quanto única, cheia de x's, k's e z's. É tão antiga que o basco já era falado muito antes dos romanos introduzirem o latim na Península Ibérica. 

Sagardi PortoEsta língua passeia por uma terra de contrastes, entre rural e urbano, passado e presente, ricos e pobres. São exemplos destes contrastes as elegantes avenidas de Biarritz e San Sebastián; os arranha-céus vitrificados e o crescente modernismo de aço do Museu Guggeheim em Bilbao (que parece querer "contaminar" toda a região); as sombrias construções de pedra de Vitória; as pitorescas vilas de pescadores ao longo da costa; os subúrbios sujos da industria do ferro das grandes cidades; e as casas de pastores do interior com as suas paredes, portas e janelas pintadas de branco, vermelho e verde, as cores da bandeira regional.

Sagardi PortoApaixonados por política e desporto (basquetebol, futebol, ciclismo e pelota basca), os bascos adoram uma boa discussão. E o que é que vai bem com uma bela troca de argumentos? 90% dos bascos (não fiz nenhuma sondagem mas a percentagem, com 80% de certeza, deve de estar certa ;)) responderia: boa comida. Os bascos gostam de cozinhar, sabem comer bem e gostam de competir pelo título de quem cozinha melhor. Fazendo uma divisão por sexos, as mulheres são conhecidas não apenas pela excelência da sua comida de conforto caseira, mas também pelo seu enorme sucesso enquanto donas de restaurantes. Os homens são mais conhecidos como os chefs de restaurantes mais exclusivos e por serem membros de sociedades gastronómicas (existem mais de 1300!!!) criadas no século XIX. Sociedades essas que foram especialmente importantes na perpetuação e promoção das tradições culinárias bascas.

Sagardi PortoTodos eles, homens e mulheres, compartilham filosofias semelhantes: a preferência por produtos locais e sazonais, o elevado conhecimento técnico, a imaginação e equilíbrio entre o tradicional e o vanguardista. Há também e sobretudo, respeito pela enorme herança que receberam dos seus antepassados. Assim, a cozinha basca reflecte um modo de ser e de viver que respeita um legado milenar. Está profundamente ligada à terra e ao mar, cuida do produto desde a origem até ao seu serviço, e sabe reinventar-se sem se contradizer. 

Sagardi PortoQuanto aos ingredientes, o peixe e marisco frescos chegam diariamente da costa. O interior fornece a carne de porco, a vaca, o cordeiro e carne de caça. Parte destes são transformados em carnes curadas como os famosos presuntos e enchidos picantes. Dos mercados e das hortas chegam as frutas e hortaliças (tomates de Deusto, batatas de Álava,  feijão de Navarra e Gipuzkoa e pimentos de Gernika). As florestas contribuem para o repasto com deliciosos cogumelos e por vezes com requintadas trufas. 

Sagardi PortoAs refeições são frequentemente acompanhadas por vinhos da sub-região de Alavesa, parte integrante da famosa Rioja. Há também o txakolí, um  vinho basco feito na costa basca, fresco, leve, ligeiramente efervescente, frutado e seco. Embora os bascos produzam versões brancas, tintas e rosés de txakolí, os brancos são considerados os melhores, especialmente adequados para os pratos de peixe da região. Os tintos predominantes são produzidos no sopé norte dos Pirenéus, na região vinícola de Irouléguy.

Sagardi PortoA sidra basca é outra bebida popular, servida não só em casa e em restaurantes, mas também em sidrerías, casas com lagares de sidra e um restaurante, onde a sidra é extraída fresca das barricas e servida como acompanhamento de refeições em estilo campestre, que frequentemente incluem o famoso Txuleton basco. Continuando na comida, falta apenas falar noutro elemento, cultural e gastronómico, muito importante no País Basco: as tapas, ou serão antes os pintxos?

Sagardi Porto"Tapar" em Espanha tem o mesmo significado que em Portugal: cobrir alguma coisa. O termo "tapas" remonta há centenas de anos. Naquela época, os restaurantes e bares espanhóis costumavam oferecer um prato de presunto ou de chouriço aos seus clientes quando eles pediam um copo de vinho. Esse prato era também usado como cobertura para o vinho, de modo a protegê-lo dos insectos. E a partir desta origem humilde, as tapas foram aperfeiçoadas pelos espanhóis para se tornarem uma pedra angular da sua cultura. Assim, as "verdadeiras" tapas são grátis e servidas num prato.

Sagardi PortoPor sua vez, os pintxos são considerados por alguns, "apenas" a versão basca das tapas, mas são muito mais do que isso. A gastronomia do País Basco, como em muitos outros aspectos da sua cultura, difere da gastronomia do resto da Espanha. A cozinha basca é muito original e elaborada, assim como os pintxos que representam as principais especialidades gastronómicas em pequenas porções. São quase sempre em base de pão e servidas com um palito espetado por cima. Vem daqui a origem etimológica da palavra "pintxo", que vem do verbo 'pinchar' que significa "perfurar". Ao contrário das tapas, os pintxos são pagos (o seu custo máximo é de 3 euros) e são um excelente complemento para o vinho, para a cerveja ou para a sidra basca. 

Sagardi PortoCom todo este contexto gastronómico, cultural, social e histórico, fico todo "torcido" quando alguém resume a gastronomia de nuestros hermanos, sobretudo a do País Basco, em: "aquilo é quase tudo batata frita". Para mim, o único problema dessa gastronomia é o de ser praticada no País Basco, a 600 km de distância. Sinto muita falta desta abordagem enogastronómica e descomplicada da vida, em que os finais de tarde-noite eram passados a comer algo enquanto se discutia ou seria a discutir algo enquanto se comia? ;) 

Sagardi PortoFelizmente toda esta excelência da gastronomia basca tem levado à sua exportação. Um dos exemplos mais felizes/fieis que encontrei foi no Sagardi Porto. Após uma intensiva recuperação, as portas do edifício nº 54 da Rua de São João, a poucos passos da Ribeira do Porto e do Palácio da Bolsa, receberam o primeiro restaurante SAGARDI Cozinheiros Bascos de Portugal. Através de um conceito único e diferenciador, este espaço pretende afirmar-se como o novo ponto de encontro gastronómico da cidade, onde a partilha de sabores e experiências multissensoriais serão as palavras de ordem.

Sagardi PortoO Sagardi Porto está dividido em duas áreas distintas. As boas-vindas são dadas no piso térreo, onde se encontra a típica barra de pintxos, uma verdadeira montra de “alta gastronomia basca em miniatura”. Em cada pintxo (2,10 € cada unidade, e com o palito e base de pão respeitantes da tradição), brilham os produtos da época, provenientes de cultivo local. Destacamos os pintxos de queijo e jamon, o de anchovas e pimentos, o de “croquetas” de presunto ibérico, o de pasta de atum com ovo ralado e guindilla, e o de gamba com queijo, bacon e pimentos (o meu favorito).

Sagardi PortoAssim, neste ambiente de bar, e também na esplanada exterior, encontra-se uma proposta mais rápida e descontraída, ideal para a partilha de uma refeição entre amigos ou família. Já o piso inferior é o cenário perfeito para quem pretende uma degustação dos sabores genuínos da cozinha basca, sem pressas e em torno da famosa parrilla: um grelhador de design basco. Este é o verdadeiro coração do SAGARDI, onde pulsam os sabores do Txuleton, provenientes de Vacas Velhas rigorosamente seleccionadas em Trás-os-Montes e Galiza, maturadas depois em cave própria. Também o peixe fresco da lota de Matosinhos e dos principais portos bascos brilha na ementa. Adorei reencontrar a chistorra (uma linguiça basca) acompanhada por um saborosíssimo pão artesanal com massa-mãe (48 horas de fermentação).

Sagardi PortoA Tortilha de bacalhau estilo “Roxario” é um expoente máximo da untuosidade gastronómica, carregada de sabores, texturas e memória; e a delicadeza do Bacalhau fresco é realçada pelo molho de alho, manteiga e sala. O momento alto do menu de degustação, quanto a mim, é “Txuleton” de vaca velha, servido em três pontos, com uma crocância fumada no exterior e um suco muito rico aprisionado no interior, delicioso!!! É quase como se a parrilla transportasse para a carne a sabedoria secular da cozinha basca. Este Txuleton vale por si só a visita. 

Sagardi PortoOs restantes elementos da família preferiram as sobremesas: a Clarisse apaixonou-se pela Tarte de queijo de leite de ovelha "latxa" (para além da Clarisse houve um jornal qualquer que o considerou o sabor do ano, acho que era um tal de New York Times :P) devido à sua doçura contida e sabor intenso; e as crianças adoraram o Fondant de chocolate com pão torrado com azeite virgem e vinagre (o pão parece um detalhe mas eleva esta sobremesa a um outro nível). Em boa verdade, eu que não sou muito de sobremesas, gostei bastante de ambas, no entanto, o Graham's 30 anos fez brilhar mais a tarte de queijo.

Sagardi PortoNuma carta variada, não faltam outros pratos tipicamente bascos, como o Marmitako Basco ou os Txipirones recheados com a sua tinta. Para acompanhar a refeição, a escolha recai sobre as sidras e vinhos oriundos também do País Basco. Não obstante, e como já repararam no caso da tarte, o menu contempla também vinhos da região do Douro, honrando as tradições do Porto. Outra das mais valias do SAGARDI Porto é o Chefe de sala Nuno Macedo, que depois de adquirir experiência no VINUM at Grahams - Restaurant & Wine Bar e no SAGARDI Londres, passeia simpatia, conhecimento e profissionalismo pela cidade invicta.  

Sagardi PortoNesta casa, o compromisso/exigência com a qualidade do produto é máximo, quer nos ingredientes mais premium como a carne maturada, quer nos mais modestos como a alface e os tomates. Isto explica-se, como Anthony Bourdain referiu, através do amor pela gastronomia e pelos ingredientes, amor esse que é fundamental para a cultura e para a vida do/no País Basco. Essa é a chama que sobe bem alto no Sagardi Porto, não a deixem esbater!!! ;)

Quinta do Noval | O súbito espanto de uma nova primeira vez

"O mistério gera curiosidade e a curiosidade é a base do desejo humano para compreender." Neil Armstrong

Quinta do Noval Afinal o que torna algo verdadeiramente "grande" (no sentido americano da palavra) e que o leva a ser o cume qualitativo de um determinado sector? Como noutras perguntas que aqui já vos deixei, as respostas mais reveladores chegam-nos da filosofia. Aristóteles defendia que essa grandeza advinha de uma prática quotidiana de diferentes virtudes. Kant acreditava que para alcançar esse pináculo muito superior de reconhecimento seriam necessárias regras éticas tão rigorosas que nenhum mortal as seria capaz de cumprir. 

Quinta do Noval O utilitarismo de Bentham relaciona esse símbolo inquestionável da qualidade mais alta com a felicidade. Marx postulou que a grandeza mais importante de todas, a colectiva, seria assente na soma das grandezas individuais, sem individualismo. Os liberais "moderninhos" (muito na moda hoje em dia :P) não dissociam essa grandeza comum da liberdade pessoal e do lucro. Essas diferenças filosóficas, culturais e políticas, realçam o facto, mais ou menos evidente, de que a grandeza de algo parece ter o tamanho dos horizontes a que se propõe.

Quinta do Noval Antes de podermos responder com maior certeza à pergunta com que iniciei esta publicação, convém restringir alguns parâmetros. Se estivermos a falar da nossa grandeza enquanto indivíduos, quem deverá avaliar essa grandeza? Nós ou os outros? E se estivermos a falar de algo inanimado como um objecto, uma empresa ou uma ideologia? Será possível definirmos critérios que avaliam eficazmente a sua grandeza? 

Quinta do Noval Atentemos ao mito de Narciso e de Eco, que na minha modesta opinião se deveria intitular "Como perderes a tua grandeza" ;)  Eco era uma ninfa que habitava e protegia as montanhas, as cavernas e as grutas. Esta ninfa era reconhecida pelo seu encanto, juventude e beleza, ficando também famosa por ter acompanhado a deusa Hera quando esta se casou com o todo poderoso Zeus.

Quinta do Noval Zeus incumbiu Eco de distrair a atenção de Hera, com conversas e cantos, sempre que este se ausentava nas suas aventuras erótico-amorosas, com outras deusas e algumas mortais. Assim que descobriu esta artimanha, Hera castigou Eco, retirando-lhe a voz e fazendo-a repetir sempre a última sílaba das palavras que eram proferidas na sua presença. 

Quinta do Noval Certo dia enquanto Eco passeava por uma floresta encontrou o jovem Narciso enquanto ele caçava, apaixonando-se imediatamente pela sua beleza. Sem voz própria, Eco não conseguiu chamar por Narciso. No entanto, o jovem caçador teve a sensação de estar a ser observado, levando-o a perguntar: "quem está aí?" Eco apenas podia responder "aí". (Já agora, foi por isto que um eco se passou a chamar eco!!!)

Quinta do Noval Após mais algumas tentativas de comunicação falhadas, Eco acaba por deixar o seu esconderijo, ficando cara a cara com Narciso. Narciso como era incapaz de amar outras pessoas, rejeitou cruelmente Eco, levando a que esta se refugiasse nas florestas da montanha, deixando para trás apenas restos da sua voz.

Quinta do Noval Nêmesis, a deusa grega da Retribuição, que assistiu a esta e a outras rejeições de Narciso, resolveu intervir fazendo com que o belo rapaz se apaixonasse por si próprio. Certa tarde, enquanto caçava, Narciso encontrou um lago no qual poderia saciar a sua sede. Foi este o momento que Nêmesis escolheu para lançar o seu "feitiço". Ao inclinar-se para beber, o jovem caçador deparou-se com o seu próprio reflexo, apaixonando-se imediatamente pela sua imagem. Paradoxalmente, a única pessoa por quem se apaixonou era também aquela que jamais poderia ter: ele próprio. Desta forma, e tal como havia acontecido com tantas outras pretendentes do belo rapaz, o amor Narciso fora também rejeitado.

Quinta do Noval Face a este destino cruel, Narciso morre nas margens do lago, infeliz e auto-apaixonado, isto apesar das súplicas e propostas de amor eterno por parte de outras ninfas. Alguns dias depois, ao perceberem que Narciso havia morrido, essas ninfas vão procurar um caixão onde pudessem colocar o seu corpo. Quando regressam às margens do lago, repararam que a única coisa que lá restava era uma flor, a flor de Narciso.

Quinta do Noval Esta flor absorveu algumas das características do belo Narciso: a de ter seu eixo inclinado para baixo (como que a beber e a contemplar a sua beleza) e a de crescer perto de locais com água (o que a deixa à mercê do seu reflexo). A flor de Narciso, desde então, simboliza o egoísmo, o amor frívolo e uma lição: a de que o que torna algo verdadeiramente grandioso é a capacidade de engrandecer tudo o que se encontra em seu redor, em detrimento do auto-engrandecimento. 

Quinta do Noval É devido a esta lição dada por uma flor que, se analisarmos o mito com detalhe, percebemos que os grandes líderes do nosso mundo não foram aqueles que tomaram, necessariamente, as maiores decisões, as mais populares ou as mais reconhecidas (olá Winston Churchill), ou que as maiores invenções da história não sejam o iPhone, o Tesla, os robots, ou outra coisa necessariamente cara (olá habitante anónimo da Mesopotâmia que inventou roda). 

Quinta do Noval É também por isto que autores, poetas, músicos, artistas, políticos e bloggers (:P) sempre souberam que uma pessoa verdadeiramente grande é aquela que torna ainda maior aquilo que se encontra ao seu redor. O que talvez vocês não saibam é que esta bitola avaliadora de grandeza, também pode, e deve, ser usada para medir os vinhos.

Quinta do Noval Já todos nos deparamos com aquela frase lapalissada “os grandes vinhos fazem-se vinha”, o que aprendi na última visita à Quinta do Noval é que apesar de certa, esta afirmação está também incompleta. Para a completar acho que seria útil  enquadrarmos-la não só no mito de Eco e de Narciso, como também enevoarmos-la com algum mistério, característico dos terroirs grandiosos.  

Quinta do Noval Na última vez que estive na Quinta do Noval, disse-vos que um dia destes vestia minha capa de Vespúcio Ortigão e iria procurar resolver o mistério da estrada de Mendiz, em pleno local onde decorrem estranhos acontecimentos que fazem dos vinhos da Quinta do Noval, principalmente os Porto, os mais grandiosos deste país. Mais tarde perceberão que o "principalmente" da frase anterior é injusto.

Quinta do Noval Visitei a Quinta do Noval, desta vez em família, no inicio das vindimas do ano passado, e percebi que a grandiosidade das suas vinhas, passava quase como por osmose, para aquilo que as rodeava: para as uvas, para os vinhos e para as pessoas. Esta contaminação qualitativa não cessa, nem com mudança de proprietários nem com desgraças. Senão vejamos, esta quinta foi inicialmente propriedade, durante mais de um século, da família Rebello Valente que a recebeu do Marquês do Pombal em meados do século XVIII. No começo do século XIX um acordo matrimonial, passa as terras ao Visconde Villar d’’Allen, um bon vivant e que ficaria conhecido na história por ter trazido memoráveis festas à Quinta do Noval. 

Quinta do Noval Entretanto, no final do século XIX o Douro é atacado pela filoxera. Com a rentabilidade da quinta posta em causa pela praga, a Noval é então colocada à venda. Em 1894 é adquirida pelo por António José da Silva, um distinto comerciante de Vila Nova de Gaia e produtor de vinho do Porto. António da Silva revitalizou a Quinta do Noval, replantando as vinhas e renovando as adegas.

Quinta do Noval Ao contrário de quase todas as outras casas produtoras de Porto (que usaram porta-enxertos americanos), na Noval a filoxera foi controlada através de fumigação intensa, mantendo as vinhas, desta forma, o seu "pé franco".

Quinta do Noval Luiz Vasconcelos Porto, genro de António da Silva e que geriu a quinta nos 30 anos seguintes, foi o autor de um vasto conjunto de inovações, transformou os antigos e estreitos socalcos em socalcos mais largos e com as escadas caiadas de branco, uma característica distintiva da Noval. Estes socalcos permitem uma utilização mais eficiente do solo e uma melhor exposição solar das vinhas, tendo na altura sido considerados revolucionários.  

Quinta do Noval Com a reforma de Luiz Vasconcelos Porto, a Noval passa para os netos Fernando e Luiz Van Zeller que a têm de reconstruir após um incêndio catastrófico ocorrido em 1981, mantendo a quinta na família até Maio de 1993, ano em que é vendida ao grupo AXA. Apesar de todas estas pragas, incêndios e trocas sucessivas de proprietários, a Noval consegue manter uma espinha dorsal de valores que a vão engrandecendo: o compromisso com a excelência, a evolução ponderada assente na inovação e no respeito pela história da quinta e a compreensão de todo este legado histórico não como uma garantia de sucesso mas sim como uma responsabilidade que, por vezes, cria oportunidades. 

Quinta do Noval Esta relação entre adversidade, resiliência e oportunidade para crescimento é particularmente feliz no ano de 1931.  Nesse ano, devido não só à enorme produção do Vintage de 1927 como também à recessão, a maioria dos produtores de Porto acabam por não declarar Vintage. A Noval, vinculada aos valores anteriormente referidos, arrisca a declaração (apenas mais duas casas o fizeram)... 

Quinta do Noval O resultado desta capacidade de arriscar/acreditar são 2 vinhos do Porto que mais sensação causaram durante o século XX: o Quinta do Noval Porto Vintage Nacional 1931 e o Quinta do Noval Porto Vintage 1931.  O sucesso, reputação e grandeza atingidos por estes vinhos estabeleceram a Quinta do Noval entre os grandes nomes do vinho do Porto Vintage nos mercados Inglês e norte-americanos, uma posição de liderança em termos de reputação, que ainda hoje mantém.

Quinta do Noval A grandeza dos Vintage Noval acaba por contaminar outros Portos que se encontravam a seu lado: os Old Tawnies com a indicação de idade (10,20 e 40 anos), os colheita de um ano particular,  os Porto Late Bottled Vintage (a Noval foi a primeira casa a lançar um LBV em 1958: o LBV 1954), e os Noval LBV Unfiltered (produzidos inteiramente a partir de uvas da Quinta e pisadas a pé em lagar, à semelhança dos Vinhos do Porto Vintage e que nada ficam a dever a alguns Porto Vintage de outras casas).

Quinta do Noval  Seguiu-se um novo contágio de grandeza, agora entre os Porto e os vinhos tranquilos, brancos e tintos, suportado nos 100 hectares de nova vinha que a Noval tem vindo a replantar desde 1994. Estas novas parcelas foram replantadas, deixando de lado o misticismos da vinha velha com mistura de castas (em boa verdade, com a tecnologia dos dias de hoje, o motivo preventivo deste tipo de cultivo deixou de existir). 

Quinta do Noval Assim, cada vinha é plantada com uma casta única adequada ao seu respectivo terroir segundo três critérios principais: a altitude, a exposição solar e o tipo de plantação aplicável, permitindo "sacar" o melhor de cada casta (a solo ou em blend). Aquando desta ultima visita apercebi-me que está a ocorrer actualmente um outro processo osmótico de grandiosidade, bem evidente, entre os vinhos da Noval e os vinhos produzidos noutras Quintas, entretanto adquiridas pela Noval. É sobre alguns vinhos que "personificam" estas transições de grandiosidade que vos falo hoje. ;)

Quinta do Noval Começo pelo refrescante Noval Extra Dry White Porto (12.00 €, 89 pts.). De traje amarelo-cítrico um pouco carregado, exibe um  nariz com  damasco, anis e flores brancas. Na boca é elegante, equilibrado e fresco. Vai muito bem com amêndoas do Douro salgadas e num descomplicado Porto tónico.

Quinta do Noval O amarelo-pálido Passadouro branco 2020 (10.00 €, 88 pts.) está cheio de acácia-lima,  pêssego, toranja, e alguma pedregosidade. Na boca revela uma acidez mordaz, elegância e intensidade. É um vinho muito honesto e com algumas arestas.

Quinta do Noval

Continuo a achar o Cedro do Noval Branco 2020 (14.50 €, 91 pts.) a melhor edição deste vinho. De cor dourada clara e cristalina exibe aromas complexos a pêssego, anis, toranja, limonete, flores brancas, baunilha e uma ligeira pedregosidade. No palato tem bom volume, excelente acidez, equilíbrio e uma ligeira untuosidade que lhe fica muito bem.

Quinta do Noval Nos monocastas reencontrei a primeira edição de dois grandes tintos. O Quinta do Noval Sirah 2016 (29.90 €, 92 pts.) exibe no nariz uma cereja muito delicada, pimenta preta, notas minerais (xisto partido), café, cacau e cassis.  Aparecem já umas ligeiras notas de evolução como a trufa e o coco. Tem um palato fresco, longo e equilibrado. 

Quinta do Noval Por sua vez, o Quinta do Noval Petit Verdot 2016 (29.90 €, 93 pts.), de traje rubi denso, brinda-nos com um nariz extravagantemente complexo e fresco com mirtilos, amoras, notas balsâmicas (cedro), ligeiro fumo e suaves aromas amadeirados. Na boca está sustentado pelos taninos redondos, é intenso, estruturado e elegante. 

Quinta do Noval Mudámos para os Portos e também de Quinta. O Silval Vintage 2015 (40.90 €, 92 pts.), vinificado nos lagares da Noval, oferece uma excelente relação qualidade/preço. De porte rubi muito escuro, quase opaco,  tem uma concentração de fruta (mirtilos, amoras e cereja maduras) impressionante e na boca é muito equilibrado, elegante, directo e com taninos sedodos.  

Quinta do Noval Saltando para a Liga dos Campeões, no que aos Porto diz respeito, começo pelo Quinta do Noval Colheita 2000 (50.00 €, 94 pts.). De cor âmbar-tawny exibe um nariz muito delicado, denso e complexo com nozes, figos secos, uvas passas, pimenta preta e casca de laranja. Na boca passeia-se encorpado com taninos sedosos e um final de boca longo e suculento. 

Quinta do Noval O Quinta do Noval Vintage 2003 (150.00 €, 97+ pts.) está na altura ideal para ser desfrutado. No copo ainda se apresenta com uma cor jovem e densa, quase violeta, denunciando ligeiramente a sua idade apenas na auréola. No nariz exibe ameixa seca, alcaçuz, café, chocolate preto, tinta da China, esteva, resina e tabaco. Na boca é fresco, longo e equilibrado, mostrando também uns taninos super elegantes. Provei há uns tempos o seu irmão, o Noval Vintage Nacional 2003, apesar de bastante diferentes mostram ambos a excelência do local donde vêm. 

Quinta do Noval Ainda houve tempo para visitar a nova loja da Noval no Pinhão. Um antigo armazém de vinho do Porto que se transformou num lugar de descoberta, de partilha e sobretudo de prova. Lá podem encontrar uma gama completa de vinhos da Quinta do Noval e de artigos relacionados com o vinho e com a quinta. Há ainda um pequeno "museu" interactivo onde através de algumas tecnologias é possível descobrir o terroir e o caráter único das vinhas da Quinta do Noval. Sigam o meu conselho e experimentem a prova de Portos com Chocolate, não se vão arrepender!!!! ;) 

Quinta do Noval Tinha muitas mais coisas para contar, mas a publicação já vai longa, ficam para uma outra oportunidade. Esta visita fez com que a minha curiosidade sobre o que verdadeiramente faz a grandeza dos vinhos da Noval se transformasse na compreensão de que essa excelência advém não só da complexidade e profundidade dos seus vinhos mas também da verdade lapalissada de que para que as vinhas possam fazer grandes vinhos, necessitam de quem perceba a sua história e a carregue até ao próximo vinho, até à próxima quinta, até ao próximo proprietário. Ali memória e identidade rimam com história e responsabilidade. Para mim é este o segredo na Noval.

Obrigado Ana e Patrícia (que para a Bia passaram a ser as meninas que fazem vinho ;)) por estes dois dias fantásticos, sois grandes... ;)

Vila953 | As coisas que, calado, no silêncio confessei

"O talento ou o acaso não escolhem, para manifestar-se, nem dias nem lugares." José Saramago

Vila953Mas afinal o que define um bom Chef de cozinha? A resposta para esta pergunta não é nada óbvia. Terá de ter estrelas Michelin? Garfos de ouro? O seu restaurante ter um lugar assegurado na lista dos 50 melhores melhores do mundo? Será obrigatório que trabalhe num local desenhado por um arquitecto da moda e com uma sala carregada de mobiliário art deco, toalhas de linho e talheres banhados a ouro? Caso estas questões relacionadas com localização, forma, reconhecimento e fama não sejam importantes, bastará que o Chef perceba os aromas, sabores e ingredientes apenas o suficiente para que os consiga misturar em harmonia?

Vila953 Ou um grande Chef tem, forçosamente, de ir mais além que isso. Terá obrigatoriamente de promover uma experiência que vá além da simples mistura aritmética dos sabores, articulando também o ambiente em redor com a sua concepção gastronómica? Não será necessário que vá traduzindo igualmente a cultura e a linguagem culinária em algo que todos possam entender, numa história que faça sentido? Assim sendo, e do mesmo modo que algumas pessoas têm características físicas e temperamentais que as tornam bons cientistas, corredores de maratona ou pianistas, deve existir um conjunto de características que definam um bom Chef.

Vila953Esses Chefs têm de ser antes de tudo, bons cozinheiros, aqueles privilegiados que muitas vezes são descritos como possuidores de um ''talento alquimista'', de um "sexto sentido no olfacto'', ou de um ''toque mágico nos ingredientes'', algo especial, que eleva qualquer comida que eles preparem, sejam uns simples ovos mexidos ou uma trabalhosa lièvre à la royale, a uma experiência sublime. Será possível distinguir esses cozinheiros com toque de Midas de outros que são apenas esforçados? Nasceram já destinados ao estrelato ou será que isso é apenas uma questão de formação e dedicação? O que é exactamente esse ''factor X'' na cozinha?

Vila953A resposta a todas essas perguntas foi solicitada, no ano em que nasci, 1983, pelo New York Times, aos 20 melhores Chefs, aos professores de culinária mais conhecedores e aos autores gastronómicos mais respeitados de então. Embora as respostas fossem tão variadas quanto um quadro de Picasso, surgiu um surpreendente consenso em torno de  três características. Três qualidades de um cozinheiro excepcional que são comuns às de um equilibrista circense: paixão pelo trabalho, coragem para arriscar e um sentido de equilíbrio apuradíssimo. A estas três acrescenta-se uma outra, exclusiva de quem trabalha com comida: o amor e respeito pelos ingredientes. 

Vila953As primeiras três até se podem aprender, esta última parece ser inata.  É quase como um pianista. Podemos ensinar qualquer pessoa a tocar piano, mas só aqueles verdadeiramente especiais vão conseguir compor uma melodia. Existem inúmeras características que fazem passar esses excelentes cozinheiros à categoria de Chef. O título de “Chef” é uma honra que apenas é alcançada ao passar incontáveis horas a aprender e a aprimorar as habilidades culinárias, dia após dia, queimadela após queimadela. A principal característica que diferencia um Chef de um cozinheiro, é que um "apenas" cozinha, enquanto que outro concebe, lidera e reinventa. Voltando ao exemplo da musica, um pianista seria um cozinheiro enquanto que um maestro seria o Chef. Apesar de ambos perceberem de música, as funções de ambos são bem diferentes.

Vila953 Assim sendo, para passar de um excelente cozinheiro para um excelente Chef é necessário mais um punhado de características: compromisso, liderança, intuição, capacidade para orientar os outros, atenção ao detalhe, trabalho multidisciplinar e paciência, muita paciência. Na minha opinião (e é apenas isso ... a minha opinião) estas sete exigem que se passe uma boa parte do processo de formação com um Chef já em "velocidade cruzeiro" e sem a necessidade de provar nada a ninguém. Neste aspecto dou sempre o exemplo de Gordon Ramsay, que antes de ser quem é, trabalhou para Joël Robuchon, Guy Savoy e três anos para Marco Pierre White no Harvey’s em Londres.

Vila953Hoje falo-vos de um Chefe, que apesar de bastante novo, já deixou de ser "apenas" um excelente cozinheiro e caminha a passos largos na criação de uma identidade gastronómica que um dia o levará, certamente, na direcção do reconhecimento, fama e consolidação. Estou a falar de Nuno Matos, Chefe do restaurante Vila953, em Vila do Conde. Conheci o Nuno em Outubro de 2014, numa era pré blogue, num Rota das Estrelas, no restaurante Largo do Paço (na Casa da Calçada em Amarante). Essa passagem pelo Largo do Paço (numa altura em que este era uma das melhores "escolas" de Chefs do país) garantiu-lhe contacto com a estrela de Vítor Matos e com a estrela de André Silva (que aquando dessa estrela passava por uma das fases mais brilhantes da sua concepção gastronómica). Mais tarde acompanhou André Silva na sua viagem até ao Porta em Bragança. 

Vila953Depois de uma das maiores injustiças que assisti ao nível gastronómico do nosso país,  o projecto Porta encerra e o Nuno resolve usar algumas das características que definem um bom Chef, nomeadamente a coragem para arriscar, a intuição, o trabalho multidisciplinar, a paciência, e sejamos sinceros, uma pitada de loucura, para se lançar a solo num restaurante localizado num food court de um Shopping. Isso mesmo, leram bem, o Vila953 está localizado no Vila do Conde Porto Fashion Outlet.

Vila953Sabendo de toda a bagagem profissional que o Nuno já tinha, por ter sido o braço direito do André Silva e por "estranhar" o local onde agora exercia a sua profissão, confesso-vos que fiquei imediatamente interessado em visitar o espaço para vos poder contar a história que agora vos narro.  Um dos pratos que lá encontrei, foi dos melhores que provei no ano passado e deixou-me sem palavras. Dele falaremos mais à frente. 

Vila953As boas-vindas chegaram em forma de um Ceviche de salmão e folha de arroz, de uma Trufa de alheira e de um Tártaro de Vitela. Todos eles muito honestos, complementares e assentes em produtos de qualidade. A acidez de uns, a untuosidade de outros, as diferentes temperaturas e a diversidade de texturas contribuíram, em conjunto, para uma espécie de preâmbulo despertativo que teve o condão de atrair o interesse para o que se seguiria.  O Tataki de atum com sementes de sésamo, microvegetais e molho Teriyaki com yuzo serviu como elemento de transição, entre as propostas anteriores, menos densas, com as seguintes, carregadas de sabor. Os vegetais acrescentavam alegria ao prato e introduziam uma certa adstrigência herbácea que combinava muito bem comas notas balsâmicas dos molhos e com a untuosidade aristocrata do atum. Simples mas directo, com sentido e eficaz, muito fixe!!!

Vila953Seguiu-se uma Sopa de peixe com salmão, robalo, camarão e caviar de arenque. Gostei muito do toque fumado que o peixe carregava, da crocância e maresia do camarão e das explosões salgadas que as ovas de arenque provocavam no caldo carregado de intensidade, acidez, frescura e uma ligeira doçura que o tornava intrigante. Não é nada fácil fazer tanto com tão pouco. 

Vila953A este caldo apuradíssimo sucedeu o momento alto da noite: Robalo de mar com puré de cenoura assada raiz de lótus, legumes salteados, caviar de arenque, telha de pele de robalo e espuma de espumante. O prato estava muito bem concebido a nível estético mas, no entanto, o sabor supera o efeito visual, com uma autêntica erupção de texturas, influências e sabores, com o poder de nos transportar umas centenas de metros, em direcção ao mar, que naquela noite se encontrava bravo. O robalo estava cozinhado no ponto e os acompanhamentos serviam "apenas" para engrandecer a sua nobreza gastronómica. 

Vila953Um desses acompanhamentos, a espuma de espumante (uma espuma a sério daquelas carregadas de sabor e firmeza) com um ligeiro toque a mostarda e incrível acidez, quando provada em conjunto com a delicadeza do peixe, com o fumado do puré e com a crocância dos vegetais, fez com que as minhas papilas gustativas se ajoelhassem e batessem palmas ao Nuno. Não lhe consegui dizer isto na altura porque fiquei sem palavras. Há anos que não provava um robalo assim, curiosamente, a ultima vez aconteceu ali bem perto. Todos os pratos que experimentei (nesta visita e noutras duas "à paisana") eram muito bons com uma espécie de cozinha de autor adaptada ao local e às pessoas que o frequentam. Este, em particular, era excelente e merecia estar num qualquer Michelin por este país fora. Foi neste prato que o Nuno me disse metaforicamente/gastronomicamente e em silêncio: "eu ainda estou aqui, não me perdi, só preciso de um pouco mais de paciência para chegar onde sei que consigo chegar"

Vila953A proposta seguinte era um Magret de Pato com molho de laranja, batata doce confitada, cebola assada e creme de ervilha com alho. O pato estava estaladiço na gordura exterior e suculento na carne interior. Muito rico, fino, saboroso e com uma enorme dimensão no palato.  A gordura, untuosidade e "exagero voluptuoso" do pato são equilibrados pela frescura da laranja, pela doçura fumada da batata e pela extravagância balsâmica do creme de ervilha confitado. Um prato que se percebe que deu imenso trabalho, quer na confecção, quer na correcção ;) Mas, confesso, ainda tinha a cabeça no robalo...

Vila953Nas sobremesas surgiu um Pavê de limão com farofa de amêndoa e merengue italiano muito cremoso, acídulo, guloso e executado com toda a mestria e um Petit Gateau de caramelo com gelado de amendoim e gel de hortelã. Neste último, os sabores estavam muito equilibrados, as texturas complementavam-se e o gel de hortelã, apesar de discreto, dava ao prato uma certa dose de surpresa e uma alma inusitada que lhe ficavam muito bem. Se alguma vez encontraram algo assim num food court por favor avisem-me porque devo de andar muito distraído!!! :P

Vila953Destaco ainda o extremo bom gosto na decoração do restaurante que nos consegue isolar do ambiente frenético do shopping e o profissionalismo, boa onda e perfeccionismo do sommelier Henrique Gonçalves (é outro que vai longe ;)). O investimento (arriscado) num conceito disruptor como este por parte dos sócios Eduardo Rodrigues e Paulo Borges mostra que, por vezes, há alturas em que o universo parece conspirar para que um conjunto de pessoas se encontre para criarem algo verdadeiramente inspirador. Fico feliz por ter presenciado uma dessas ocasiões. 

Vila953Sei que muita gente vai "torcer o nariz" em visitar um restaurante com estas características, mais ainda em o incluir nos guias gastronómicos da moda, mas este Vila953 merece claramente uma visita, sobretudo daqueles que apreciam boa gastronomia, sem pretensiosismos, mas com identidade. Este paradoxo entre boa gastronomia e localização humilde fez-me recordar Saramago. Em algumas das sua obras, Saramago, faz com que os seus personagens nos relembrem a importância do sentido da visão e do mesmo ser uma excelente metáfora para a atenção que damos às coisas, sobretudo aquelas que vemos e fingimos não ver.

Vila953No poema "No silencio dos olhos", particularmente na sua ultima frase ("Dirão, em som, as coisas que, calados, no silêncio dos olhos confessamos"Saramago cria uma narrativa que nos procura relembrar a responsabilidade de ter olhos quando os outros os parecem ter perdido, seja por vaidade, por orgulho ou por um certo elitismo bacoco. Acho que o mesmo se deveria aplicar a outro nobre sentido: o palato!!! ;) O talento não escolhe, para manifestar-se, nem dias nem lugares. Nesta ocasião aconteceu num food court de um Shopping, num dia de tempestade outonal.