SAGARDI Porto | Amor num fogo que arde sem se contradizer
"É fácil argumentar que não há melhor lugar para comer na Europa do que no País Basco. Há lá mais restaurantes com estrelas Michelin per capita do que em qualquer outro lugar da Terra. Até as diárias que por lá se servem são excelentes. O amor pela comida e a insistência nos melhores ingredientes são fundamentais para a cultura e para a vida do País Basco." Anthony Bourdain
Se pudéssemos condensar toda a cozinha basca em apenas uma frase penso que a melhor seria: o uso conhecedor e complementar da madeira, do fumo e da chama como técnica culinária e aplicada a ingredientes da maior qualidade. Esta filosofia levou a que numa distância de 100 km possamos encontrar 30 estrelas Michelin e 5 dos 50 melhores restaurantes do mundo (tantos quantos em toda a França, berço da alta gastronomia). Mas mais importante que todos estes indicadores existe ainda outro.
O meu doutoramento em Física (já lá vão 10 anos) foi realizado em colaboração com a universidade do País Basco e com a Universidade de Cambridge, no Reino Unido. No ano que passei em Cambridge o meu peso não alterou, o mesmo não aconteceu no ano que passei no País Basco, pois aumentei ... 10 kg!!! :P Não percebo como é que este facto super relevante não surge, com destaque, nos guias gastronómicos da região. :P
Voltando à parte mais séria do assunto, nenhuma outra região do planeta pode ostentar tamanha densidade de estrelas Michelin. Como é que esta terra de pastores, comerciantes de ferro, pescadores e pequenos proprietários, que sofreu quatro décadas de terrorismo da ETA, conseguiu chegar ao topo da gastronomia mundial? Para percebermos isso, necessitamos de perceber os Bascos e o seu país.
O País Basco é uma região com um ambiente especial e um bairrismo muito próprio. Localizado no norte da Espanha e no sudoeste da França, é uma terra de prados verdes e altas montanhas, costas escarpadas, praias douradas, vales arborizados e planícies secas. Faz fronteira com o Golfo da Biscaia e atravessa as montanhas dos Pirenéus e os contrafortes fronteiriços entre França e Espanha.
Os bascos orgulham-se da sua identidade regional e possuem um espírito de independência (mais moral que territorial) que muitas vezes definiu a sua história. São descendentes de um povo antigo sem qualquer grau de parentesco com outros europeus e falam uma língua tão estranha quanto única, cheia de x's, k's e z's. É tão antiga que o basco já era falado muito antes dos romanos introduzirem o latim na Península Ibérica.
Esta língua passeia por uma terra de contrastes, entre rural e urbano, passado e presente, ricos e pobres. São exemplos destes contrastes as elegantes avenidas de Biarritz e San Sebastián; os arranha-céus vitrificados e o crescente modernismo de aço do Museu Guggeheim em Bilbao (que parece querer "contaminar" toda a região); as sombrias construções de pedra de Vitória; as pitorescas vilas de pescadores ao longo da costa; os subúrbios sujos da industria do ferro das grandes cidades; e as casas de pastores do interior com as suas paredes, portas e janelas pintadas de branco, vermelho e verde, as cores da bandeira regional.
Apaixonados por política e desporto (basquetebol, futebol, ciclismo e pelota basca), os bascos adoram uma boa discussão. E o que é que vai bem com uma bela troca de argumentos? 90% dos bascos (não fiz nenhuma sondagem mas a percentagem, com 80% de certeza, deve de estar certa ;)) responderia: boa comida. Os bascos gostam de cozinhar, sabem comer bem e gostam de competir pelo título de quem cozinha melhor. Fazendo uma divisão por sexos, as mulheres são conhecidas não apenas pela excelência da sua comida de conforto caseira, mas também pelo seu enorme sucesso enquanto donas de restaurantes. Os homens são mais conhecidos como os chefs de restaurantes mais exclusivos e por serem membros de sociedades gastronómicas (existem mais de 1300!!!) criadas no século XIX. Sociedades essas que foram especialmente importantes na perpetuação e promoção das tradições culinárias bascas.
Todos eles, homens e mulheres, compartilham filosofias semelhantes: a preferência por produtos locais e sazonais, o elevado conhecimento técnico, a imaginação e equilíbrio entre o tradicional e o vanguardista. Há também e sobretudo, respeito pela enorme herança que receberam dos seus antepassados. Assim, a cozinha basca reflecte um modo de ser e de viver que respeita um legado milenar. Está profundamente ligada à terra e ao mar, cuida do produto desde a origem até ao seu serviço, e sabe reinventar-se sem se contradizer.
Quanto aos ingredientes, o peixe e marisco frescos chegam diariamente da costa. O interior fornece a carne de porco, a vaca, o cordeiro e carne de caça. Parte destes são transformados em carnes curadas como os famosos presuntos e enchidos picantes. Dos mercados e das hortas chegam as frutas e hortaliças (tomates de Deusto, batatas de Álava, feijão de Navarra e Gipuzkoa e pimentos de Gernika). As florestas contribuem para o repasto com deliciosos cogumelos e por vezes com requintadas trufas.
As refeições são frequentemente acompanhadas por vinhos da sub-região de Alavesa, parte integrante da famosa Rioja. Há também o txakolí, um vinho basco feito na costa basca, fresco, leve, ligeiramente efervescente, frutado e seco. Embora os bascos produzam versões brancas, tintas e rosés de txakolí, os brancos são considerados os melhores, especialmente adequados para os pratos de peixe da região. Os tintos predominantes são produzidos no sopé norte dos Pirenéus, na região vinícola de Irouléguy.
A sidra basca é outra bebida popular, servida não só em casa e em restaurantes, mas também em sidrerías, casas com lagares de sidra e um restaurante, onde a sidra é extraída fresca das barricas e servida como acompanhamento de refeições em estilo campestre, que frequentemente incluem o famoso Txuleton basco. Continuando na comida, falta apenas falar noutro elemento, cultural e gastronómico, muito importante no País Basco: as tapas, ou serão antes os pintxos?
"Tapar" em Espanha tem o mesmo significado que em Portugal: cobrir alguma coisa. O termo "tapas" remonta há centenas de anos. Naquela época, os restaurantes e bares espanhóis costumavam oferecer um prato de presunto ou de chouriço aos seus clientes quando eles pediam um copo de vinho. Esse prato era também usado como cobertura para o vinho, de modo a protegê-lo dos insectos. E a partir desta origem humilde, as tapas foram aperfeiçoadas pelos espanhóis para se tornarem uma pedra angular da sua cultura. Assim, as "verdadeiras" tapas são grátis e servidas num prato.
Por sua vez, os pintxos são considerados por alguns, "apenas" a versão basca das tapas, mas são muito mais do que isso. A gastronomia do País Basco, como em muitos outros aspectos da sua cultura, difere da gastronomia do resto da Espanha. A cozinha basca é muito original e elaborada, assim como os pintxos que representam as principais especialidades gastronómicas em pequenas porções. São quase sempre em base de pão e servidas com um palito espetado por cima. Vem daqui a origem etimológica da palavra "pintxo", que vem do verbo 'pinchar' que significa "perfurar". Ao contrário das tapas, os pintxos são pagos (o seu custo máximo é de 3 euros) e são um excelente complemento para o vinho, para a cerveja ou para a sidra basca.
Com todo este contexto gastronómico, cultural, social e histórico, fico todo "torcido" quando alguém resume a gastronomia de nuestros hermanos, sobretudo a do País Basco, em: "aquilo é quase tudo batata frita". Para mim, o único problema dessa gastronomia é o de ser praticada no País Basco, a 600 km de distância. Sinto muita falta desta abordagem enogastronómica e descomplicada da vida, em que os finais de tarde-noite eram passados a comer algo enquanto se discutia ou seria a discutir algo enquanto se comia? ;)
Felizmente toda esta excelência da gastronomia basca tem levado à sua exportação. Um dos exemplos mais felizes/fieis que encontrei foi no Sagardi Porto. Após uma intensiva recuperação, as portas do edifício nº 54 da Rua de São João, a poucos passos da Ribeira do Porto e do Palácio da Bolsa, receberam o primeiro restaurante SAGARDI Cozinheiros Bascos de Portugal. Através de um conceito único e diferenciador, este espaço pretende afirmar-se como o novo ponto de encontro gastronómico da cidade, onde a partilha de sabores e experiências multissensoriais serão as palavras de ordem.
O Sagardi Porto está dividido em duas áreas distintas. As boas-vindas são dadas no piso térreo, onde se encontra a típica barra de pintxos, uma verdadeira montra de “alta gastronomia basca em miniatura”. Em cada pintxo (2,10 € cada unidade, e com o palito e base de pão respeitantes da tradição), brilham os produtos da época, provenientes de cultivo local. Destacamos os pintxos de queijo e jamon, o de anchovas e pimentos, o de “croquetas” de presunto ibérico, o de pasta de atum com ovo ralado e guindilla, e o de gamba com queijo, bacon e pimentos (o meu favorito).
Assim, neste ambiente de bar, e também na esplanada exterior, encontra-se uma proposta mais rápida e descontraída, ideal para a partilha de uma refeição entre amigos ou família. Já o piso inferior é o cenário perfeito para quem pretende uma degustação dos sabores genuínos da cozinha basca, sem pressas e em torno da famosa parrilla: um grelhador de design basco. Este é o verdadeiro coração do SAGARDI, onde pulsam os sabores do Txuleton, provenientes de Vacas Velhas rigorosamente seleccionadas em Trás-os-Montes e Galiza, maturadas depois em cave própria. Também o peixe fresco da lota de Matosinhos e dos principais portos bascos brilha na ementa. Adorei reencontrar a chistorra (uma linguiça basca) acompanhada por um saborosíssimo pão artesanal com massa-mãe (48 horas de fermentação).
A Tortilha de bacalhau estilo “Roxario” é um expoente máximo da untuosidade gastronómica, carregada de sabores, texturas e memória; e a delicadeza do Bacalhau fresco é realçada pelo molho de alho, manteiga e sala. O momento alto do menu de degustação, quanto a mim, é “Txuleton” de vaca velha, servido em três pontos, com uma crocância fumada no exterior e um suco muito rico aprisionado no interior, delicioso!!! É quase como se a parrilla transportasse para a carne a sabedoria secular da cozinha basca. Este Txuleton vale por si só a visita.
Os restantes elementos da família preferiram as sobremesas: a Clarisse apaixonou-se pela Tarte de queijo de leite de ovelha "latxa" (para além da Clarisse houve um jornal qualquer que o considerou o sabor do ano, acho que era um tal de New York Times :P) devido à sua doçura contida e sabor intenso; e as crianças adoraram o Fondant de chocolate com pão torrado com azeite virgem e vinagre (o pão parece um detalhe mas eleva esta sobremesa a um outro nível). Em boa verdade, eu que não sou muito de sobremesas, gostei bastante de ambas, no entanto, o Graham's 30 anos fez brilhar mais a tarte de queijo.
Numa carta variada, não faltam outros pratos tipicamente bascos, como o Marmitako Basco ou os Txipirones recheados com a sua tinta. Para acompanhar a refeição, a escolha recai sobre as sidras e vinhos oriundos também do País Basco. Não obstante, e como já repararam no caso da tarte, o menu contempla também vinhos da região do Douro, honrando as tradições do Porto. Outra das mais valias do SAGARDI Porto é o Chefe de sala Nuno Macedo, que depois de adquirir experiência no VINUM at Grahams - Restaurant & Wine Bar e no SAGARDI Londres, passeia simpatia, conhecimento e profissionalismo pela cidade invicta.
Nesta casa, o compromisso/exigência com a qualidade do produto é máximo, quer nos ingredientes mais premium como a carne maturada, quer nos mais modestos como a alface e os tomates. Isto explica-se, como Anthony Bourdain referiu, através do amor pela gastronomia e pelos ingredientes, amor esse que é fundamental para a cultura e para a vida do/no País Basco. Essa é a chama que sobe bem alto no Sagardi Porto, não a deixem esbater!!! ;)