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No meu Palato

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Quinta das Carvalhas | O quinto quarto da laranja

"Ah, como a minha mãe percebia de vinho!!! Ela entendia o processo de amadurecimento das uvas, a fermentação, o envelhecimento que ocorre na garrafa, as mudanças na cor, as transformações lentas, e o nascimento de uma nova safra através do aparecimento de um bouquet de aromas, quase como um mágico faz surgir um ramos de flores de dentro da sua cartola."  Joanne Harris

Quinta das Carvalhas

É isso mesmo, o titulo da publicação de hoje é inspirado no livro de Joanne Harris «Cinco quartos de laranja». A protagonista é Framboise, uma velhinha que nos conta, com suspense e algum segredo, um momento fracturante da sua vida. Enquanto criança de nove anos, que vivia no interior de França durante a Segunda Guerra Mundial, Framboise manteve um relacionamento agridoce com a sua mãe (solteira), Mirabelle. O seu pai havia morrido na guerra, fazendo com que esta pequena família orfa (ela, a mãe e os seus irmãos) lutasse diariamente para estabelecer uma dinâmica mais afortunada, por entre um turbilhão de eventos ao seu redor. 

Quinta das Carvalhas

Framboise, para além de protagonista, assume também o papel de narradora, contando-nos que ela e os seus dois irmãos durante o verão mantiveram uma relação capitalista com Tomas, um soldado nazi, trocando segredos sobre seus vizinhos por chocolates e livros de banda desenhada. Framboise acrescentava sempre a estes subornos o pedido de uma laranja. Mais tarde, Framboise usava a sua casca para atormentar a mãe Mirabelle, que quando cheirava laranjas sofria uma espécie de feitiço em forma de enxaquecas horríveis.  Mirabelle, para além de viver atormentada por estas dores,  era também  uma cozinheira super talentosa, apreciadora de (bons) vinhos e que vivia ainda perseguida por alguns problemas psicológicos bastante graves. 

Quinta das CarvalhasComo acontece com qualquer putativa relação com a extrema direita (;)), o acordo "comercial" das crianças com os nazis corre mal e a família é obrigada a fugir, em segredo, para uma cidade francesa (Les Laveuse). É neste momento que se dá o salto temporal para a Framboise com 60 anos, viúva, e que por um motivo oculto esconde todo o seu passado. Todo este trabalho de se tornar invisível é posto em causa quando o restaurante onde trabalha é avaliado numa revista gastronómica nacional.

Quinta das Carvalhas

É neste momento que o passado e o presente nos parecem inextricavelmente entrelaçados, particularmente num álbum de receitas e memórias que Framboise herdou de sua mãe. É também aqui que Framboise percebe duas coisas: que tem muito mais a ver com a sua mãe do que aquilo que inicialmente pensava e que o diário contém a chave para tragédia que marcou indelevelmente aquele verão da sua infância.

Quinta das Carvalhas

Harris construiu um enredo de várias camadas, pontuado com descrições deliciosas de iguarias francesas e narrações dos efeitos da guerra sobre uma família frágil. Este livro transborda sensualidade e sensibilidade, mas... porquê cinco quartos de laranja? Se pensarmos bem, cinco quartos de uma laranja ... não existem. Bem, essa suposta imprecisão é apenas a autora a ser brilhante, como o havia sido anos antes em «Chocolate». Nesses cinco quartos de uma laranja encontramos a lógica inocente das crianças: se dividirmos uma laranja em cinco, o que obtemos? Cinco quartos... 

Quinta das CarvalhasEstes cinco quartos são também uma excelente metáfora para a capacidade de uma criança misturar realidade com imaginação, capacidade essa que, por vezes, influencia o nosso destino de modo preponderante.  Neste nevoeiro de superstição e realidade surge a Velha Mãe, um peixe (lúcio) que vive no Rio Loire e que concederá a realização de um desejo a quem a conseguir apanhar. 

Quinta das Carvalhas

No entanto, há também o reverso da medalha, se enquanto alguém tenta apanhar a Velha Mãe despertar a atenção do peixe, essa pessoa ou alguém que ame, irá morrer em breve.  A cena em que Framboise finalmente captura a Velha Mãe e faz o seu desejo é arrepiante. Fiquei ofegante ao ler a prosa descritiva desse momento e confesso que quase chorei (porque os homens não choram :P) ao ponto de não querer ler mais uma palavra escrita por Harris.

Quinta das Carvalhas

Depois de me passar a neura literária, percebi que a principal lição deste livro, quer sejamos crianças ou mais adultos, é parecida com aquela que Fernando Pessoa nos deu através de Caeiro, a de que para conhecermos realmente alguma coisa é necessário, primeiro, pensar essa coisa com os olhos e com os ouvidos, com as mãos e com os pés, com o nariz e com a boca. Temos de vê-la, senti-la, cheirá-la. Para que quando lhe comamos o seu fruto, ela nos saiba ao seu sentido.

Quinta das Carvalhas

No livro de Harris este conhecimento embedido de alguma coisa é destacado sobretudo na relação que a mãe de Mirabelle mantinha com o vinho, relação essa que está bem patente na citação com que iniciei esta publicação. É com base nesta filosofia de conhecer verdadeiramente algo, partilhada por Mirabelle, Pessoa e Harris, e perfumado, aqui e acolá, com um bonito aroma a laranja, que vos vou falar da Quinta das Carvalhas e dos seus vinhos. 

Quinta das Carvalhas

A visita que ocorreu no final do ano passado contemplou a prova de 5 vinhos e aproveitei a oportunidade para apresentar a Quinta à família, uma vez que da última vez a Bia ainda era pequenita e não era recomendável que subisse os 550 metros que nos conduzem ao topo das Carvalhas. Curiosamente ao recordar essa visita de 2017 percebi que também ela havia sido marcada por outro aroma característico da propriedade, o de lavanda. 

Quinta das CarvalhasComeço pelo aroma do amarelo-citrino Quinta das Carvalhas Branco 2019 (30.00 €, 94 pts.) carregado de baunilha, flor de laranjeira, damasco, esteva, acácia lima, alguma pedregosidade (pedra molhada) e uns tostados muito sedutores. No palato é largo, intenso, persistente e bastante fresco.  Por sua vez o Quinta das Carvalhas Touriga Nacional 2017 (35.00 €, 94 pts.) exibe um belo violeta quase opaco e emana bergamota, violetas, frutos do bosque e caixa de tabaco. Na boca é rico, elegante, carnudo e possui uma acidez irreverente. 

Quinta das Carvalhas

O Quinta das Carvalhas Vinhas Velhas 2018 (46.00 €, 95 pts.), rubi escuro, tem um aroma muito bonito e complexo com amora, ameixa, limonete, baunilha e pimenta preta. Na boca é riquíssimo, bem estruturado, com bela acidez e com os taninos intensos e redondos. Precisa de garrafa, mas já dá imenso prazer na prova. 

Quinta das Carvalhas

Antes do momento alto (vinicamente falando) da visita, o Quinta das Carvalhas Touriga Nacional 2017 (35.00 €, 94 pts.) de porte rubi, brinda-nos com aromas a frutos silvestres, ameixa, sous-bois, alguns toques de mineralidade e uma madeira muito bem integrada. No palato tem um belo volume, equilíbrio, taninos redondos e uma acidez bastante viva, que o torna super elegante.  

Quinta das CarvalhasFinalizamos a prova com o Royal Oporto Colheita 1977 (180.00 €, 96 pts.). A cor diz logo ao que vem, âmbar com uma auréola esverdeada, passeando-se no nariz, pavoneante, com gengibre, laranja confitada, chá verde,  tabaco, pêssego em calda, amêndoa torrada e algum caramelo. Na boca é viciante, suculento, harmonioso, ponderado e elegante: uma verdadeira aristocracia vínica. 

Quinta das CarvalhasCuriosamente todos os cinco quartos vínicos desta Quinta das Carvalhas permaneceram ligados, de um modo ou de outro, à laranja, seja no seu aroma mais puro, na sua flor, na sua casca, na sua cor e até na sua flor. Que desejo terá pedido a Bia ao cheirar aquela? ;) Informo ainda que a pequena não me comunicou nenhum tipo de enxaqueca.  ;)