Roadtrip Costa Vicentina (III) | O sorriso que nostalgicamente ofereceres
"Todos nós temos as nossas máquinas do tempo. Algumas levam-nos para trás, são chamadas de memórias. As outras levam-nos para a frente, são chamadas de sonhos." Jeremy Irons
Vocês acreditam em viagens no tempo? Pois bem, no final deste texto vão perceber que essa possibilidade fantasiosa é na verdade uma realidade cientifica. Sempre que nos lembramos de algo do passado ou imaginamos o nosso futuro, a nossa mente entra numa viagem no tempo. Mas vamos por partes, alguns cientistas da Universidade de Cambridge (EUA) começaram por descobrir que, quer viajemos mentalmente para o passado, quer o façamos para o futuro, activamos sempre as mesmas regiões do cérebro.
Uma dessas regiões é o hipocampo, uma estrutura cerebral muito conhecida pelo seu papel na construção de memórias a longo prazo. Danos no hipocampo causam-nos problemas de memória, mas também prejudicam a nossa capacidade de imaginar experiências futuras. Essa conexão cerebral no hipocampo entre o passado e o futuro, sugere que a memória, o planeamento e a tomada de decisões futuras podem estar profundamente entrelaçadas.
Como é óbvio, a capacidade de formar memórias permite-nos reavivar o passado, mas o que a ciência dos dias de hoje nos diz é que, muito provavelmente, a nossa capacidade para criar memórias tenha evoluído de tal forma que condiciona o modo como pensamos e planeamos o futuro. Um pequeno quebra-cabeças vai tornar esse condicionamento mental um pouco mais evidente.
Tentem encontrar uma maneira para bater com uma raquete numa bola de pingue-pongue, de modo a que a bola percorra uma certa distância, inverta o sentido, e regresse para vocês. Neste vosso exercício não podem fazer com que a bola adquira uma trajectória curvilínea, nem que embata em algo durante todo o percurso (tirando, é claro, a pancada inicial). Se nunca tiverem jogado, ou visto jogar, pingue-pongue têm maior probabilidade de encontrar a resposta certa do que aqueles que já o fizeram.
A solução para este enigma é bastante simples (tentem encontrá-la antes de a verem no final da publicação), no entanto, as vossas memórias estão a condicionar a vossa capacidade de imaginar o que poderá acontecer no futuro. A parte mais interessante de tudo isto é o porquê deste bloqueio mental ocorrer. Alguns especialistas argumentam que as pessoas têm dificuldade em resolver este enigma porque os cenários que podem imaginar estão limitados pelas experiências passadas, pois acostumaram-se a ver as bolas de pingue-pongue a moverem-se na horizontal/curvilineamente.
Quando imaginamos a bola na nossa mente, é difícil concebe-la movendo-se na vertical porque as nossas memórias principais não estão associadas a esse tipo de movimento. Na nossa mente, passado e futuro são um casal que vivem em união de facto numa casa que se chama presente. Os cientistas de Cambridge para evidenciarem esta relação entre passado, presente e futuro, fizeram várias experiências, concluindo, quer em humanos quer em ratos, que os seres vivos com danos no hipocampo (por exemplo com amnésia) têm muito mais dificuldades em criar cenários (por exemplo a imaginar-se numa praia com uma modelo da Victoria's Secret a servir-lhe um Porto Tónico :P) do que pessoas saudáveis.
Mesmo em pessoas saudáveis essa relação é bastante patente. Quando num grupo de pessoas sem patologias a nível do hipocampo era pedido para recordarem algo do passado (o primeiro beijo, a última vez que bebeu um Barca Velha ou o último aniversário, em segredo, da amante :P) e mais tarde imaginarem algo que nunca fizeram (uma viagem à ilha de Grande Caimão, a prova de um Domaine de la Romanee-Conti Grand Cru 1945 ou um date com a "voluptuosa" Nicole Scherzinger), foi verificado que as descrições desses eventos, passados e futuros, incluíam um número semelhante de detalhes.
Para além disso, o pensar sobre esses dois eventos activou também uma rede semelhante de regiões do cérebro, especialmente no hipocampo. Essas descobertas sugerem que o hipocampo trabalha com outras áreas do cérebro tanto para nos deixar lembrar o passado quanto para nos permitir imaginar o futuro.
Esses estudos mostram-nos que as nossas memórias de eventos passados desempenham um papel importante quando pensamos sobre o futuro e tomamos decisões. Talvez tenhamos evoluído para ter memórias não apenas para nos debruçarmos sobre o passado, mas também para que possamos prever (ou no mínimo fazer concepções sobre) o futuro, de modo a tomarmos decisões mais ponderadas/acertadas/assertivas no presente.
Assim, quando chegamos a um entroncamento existencial, seja por termos de decidir qual vinho abrir ou a que peça de teatro assistir, podemos imaginar cada uma das escolhas, e essa simulação mental pode-nos ajudar a avaliar como nos sentiríamos "vestindo o futuro" com cada uma das possibilidades que temos no presente, usando como "batota mental" aquilo que vivemos no passado.
Já Winston Churchill, o antigo primeiro-ministro do Reino Unido parecia ser conhecedor desta informação privilegiada, décadas antes de ser cientificamente publicada: a de que as memórias coletivas ditam as experiências futuras de um povo, afirmando que uma nação que esquece seu passado não tem futuro. Esta bonita relação entre passado, presente e futuro é especialmente sui generis quando gostamos de viajar. Outros investigadores (prometo que é a última vez que falo em ciência hoje), desta vez chineses, constataram, no ano passado, que memórias de viagens felizes no passado nos fazem querer voltar a viajar no futuro, "drogando" o nosso cérebro com neurotransmissores potenciadores de nostalgia...
A publicação de hoje tem tudo a ver com aquilo que vos falei nesta introdução, pois esses neurotransmissores têm estado bastante activos desde os acontecimentos que hoje vos narro. Falo-vos da terceira (e última) parte da nossa crónica relativa à Roadtrip na Costa Vicentina. Tínhamos ficado na Praia da luz (Lagos), no Baía Da Luz Resort, já vos tínhamos falado do hotel, faltava-nos dizer alguma coisa sobre o seu restaurante.
A Bia tinha ficado encarregue de escolher o local para jantar nessa noite, e depois de andarmos "uma semana a peixe e marisco", a pequena queria massa, pizza ou risotto. Onde é que encontramos tudo isto? Num italiano é claro. ;) O Alloro é especialista em cozinha italiana e tem um ambiente eclético, mas informal, e com um serviço bastante simpático.
Está encostado à piscina principal do Baía Da Luz Resort e por isso goza de vista privilegiada. O jantar iniciou através de um Antipasto Misto com presunto, salame Napoli, legumes grelhados, alcachofras marinadas, tomates assados, mozzarella fresca, pesto e ciabatta grelhada, que nos remeteu logo para aquilo que de melhor a dieta mediterrânea tem para oferecer.
As Gamberoni Fritti, gambas salteadas com alho, malaguetas, limão e salsa, cheias de sabor e ligeiramente picantes serviram de prequela para os pratos principais. Pasta recheada de espinafres e ricota, servida com molho de tomate e rúcula (com massa do dia e ingredientes da máxima qualidade); Risotto com cogumelos selvagens salteados e parmesão (al dente e muito rico) e Pizza Margherita, a favorita da Bia e com uma massa deliciosa.
Nas sobremesas Tiramisu, a minha favorita, com mascarpone fresco embebido em licor e café, carregada de delicadeza e generosidade ornanoléptica; e a esteticamente apelativa Torta de chocolate, com bolo de chocolate quente, molho de chocolate e gelado de baunilha. Esta última provocava um jogo de contrastes saborosíssimo.
Em todas estas criações, gostei especialmente de verificar que as especiarias, as ervas e os condimentos não mascararam a mestria dos sabores genuinamente mediterrâneos que a cozinha italiana transporta (ou deve transportar) consigo. Não é a mesma coisa de nos sentarmos à mesa do La Notizia de Nálopes do grande Chef Enzo Coccia, mas remeteu-me para lá, e este é o melhor elogio que posso tecer ao restaurante Alloro.
Continuamos em direcção a Oeste e encontramos a povoação do Burgau a 10 minutos da praia da Luz, muito conhecida pela sua praia. Está situada no limite poente do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. O areal estende-se ao longo de uma pequena enseada que funciona como porto piscatório e onde ainda se praticam formas artesanais de pesca, sendo utilizadas artes como o alcatruz, a rede de amalhar ou o aparelho de anzol.
Para lá chegar é necessário descer a localidade para encontrar uma rampa que vai dar à praia e ao porto piscatório, onde ainda estão os famosos e coloridos barcos tradicionais. Com sorte é possível observar o regresso de alguns desses barcos à praia carregados de peixe, que mais tarde podem ser saboreados nos restaurantes do Burgau. A disposição das arribas conjugada com a orientação do areal faz com que a praia do Burgau esteja protegida dos ventos e das intempéries, proporcionando banhos super tranquilos.
A outros dez minutos chegamos ao hotel com a melhor vista (e sejamos justos uma habitação com 3 pisos ajuda a aumentar ainda mais esta percepção ;)): o NAU Salema Beach Village. A 500 metros da Praia da Salema, este hotel ostenta uma localização fantástica na vila piscatória de Salema. A vila permanece ainda genuína e longe do turismo massificado do litoral algarvio, com as suas tradições ligadas ao mar, ruas estreitas e casas caiadas de branco. A grande mais valia do NAU Salema Beach Village é a de nos permitir desfrutar, pitorescamente, de um Algarve secreto, com o conforto e a hospitalidade que o grupo NAU já nos habituou.
Lá, a privacidade e a vista mar imperam, numa paisagem que ilustra o postal de férias perfeito com o azul do mar contrastando com os tons brancos das villas. Depois de uma curta viagem de carro, 15 km, chegamos a Sagres. Conhecida pelas suas fortalezas protegidas pelo vento, espalhadas ao longo das suas falésias esculpidas pelo mar, Sagres transmite-nos sensação única de ponta do mundo que nos faz viajar para o passado e para antigas façanhas marítimas de Portugal.
Nessa primeira metade do séc. XV a presença do Infante D. Henrique por aquelas paragens era frequente. Foi ali que foram abraçadas as primeiras milhas da nossa imponente navegação atlântica e da descoberta da costa africana até ao Golfo da Guiné, facto que associou para sempre este simples (mas bonito) porto de pesca aos Descobrimentos lusitanos. Na Ponta de Sagres, um gigantesco dedo de pedra apontando para o Oceano, algumas edificações evocam ainda este passado glorioso que faz parte da história do mundo, lembrando a vila do Infante que imortalizou a terra.
Mudando a direcção para Norte, começamos a subir por algumas praias escarpadas, quase desertas e com uma deliciosa brisa carregada de zimbro e esteva (Praia do Telheiro, Praia da Ponte Ruiva e Praia do Castelejo). Em Vila do Bispo visitamos a Igreja Matriz do século XVI, algumas ruas antigas da cidade velha, o Jardim da Fonte e o Menir do Padrão (este último deu um pouco de trabalho até ser encontrado ;)) Abandonamos então a lindíssima N268 e apanhamos a N120 que nos levaria ao mosaico metafórico que é Aljezur, pintando em tons azuis de mar, verdes dos campos e acinzentados da colinas.
Na cidade há ainda para visitar o castelo de Aljezur, além de museus e inúmeras igrejas. Seguiram-se mais algumas praias em estado selvagem (Amoreira, Carreagem, Vale dos Homens, Samouqueira) muito tranquilas e delimitadas por imponentes arribas de xisto, até chegarmos ao Restaurante A Azenha do Mar da Carla Dâmaso. Tem a fama de ser o restaurante conhecido da costa Alentejana.
Quando entramos pela sua gastronomia a dentro, percebemos o porquê. Peixe e marisco da máxima qualidade, super frescos e saborosos. São confeccionados de modo exímio e que lhes preserva todo o mar de onde vieram. Aconselhamos a salada de polvo, os percebes (provavelmente os melhores de toda a viagem), o mexilhão com molho de cebolada, as ovas de choco, a feijoada de marisco e o arroz de marisco. O peixe fresco chegado diariamente do porto de pesca local é uma escolha segura (o nosso robalo estava divinal!!!).
É um restaurante para ir com tempo, curiosidade e com o objectivo de aproveitar o presente. Retomamos a N120, passamos por S. Teotónio, Odemira, Vila Nova de Mil Fontes, Sines, Santiago Cacém, Grândola e Comporta. Nesta parte do percurso aconselhámos a reservarem 3 dias para irem desfrutando dos diversos pontos turísticos que surgem no caminho.
A vista mar a partir do Largo da Capela de Nossa Senhora e o porto de entrada da Barca em S. Teotónio; o farol do Cabo Sardão e o jardim ribeirinho do Mira em Odemira; o Forte de São Clemente e a Praia de Almograve em Vila Nova de Mil Fontes; a antiga vila de pescadores, o castelo medieval e o museu arqueológico de Sines; o castelo e as fascinantes ruínas romanas de Miróbriga em Santiago do Cacém; e o Museu do Mineiro e a Barragem do Pego da Moura em Grândola.
A Comporta é a nossa Côte d'Azur, mas em bom!!! :P Areias douradas, águas azul-turquesa, um horizonte verdejante das florestas de pinheiros e um estado quase virginal da natureza muito sedutor. Na própria aldeia da Comporta, caiada de branco, tudo parece parado no tempo, e até as cegonhas parecem preguiçosas, ao construírem, demoradamente, os ninhos em cima das chaminés. O banco, a igreja, a padaria, os escritórios, as fábricas e as casas dos trabalhadores mantêm seu carácter rústico e descontraído, que combina de modo harmonioso com construções mais contemporâneas. Não conhecia mas apaixonei-me pela "descontracção com classe" daquele local.
A meia hora de carro encontramos a Serenada. Localizada no coração da Serra de Grândola, este enoturismo possui quatro quartos duplos e quatro suites, no meio de uma paisagem que se estende entre serra e o oceano Atlântico. Para além dos vinhos, é a ampla natureza envolvente que torna este local único.
A atmosfera geral é serena e aconchegante. O silêncio está sempre presente, e a natureza ultrapassa e inspira os hóspedes com sua beleza e tranquilidade. É algo que nasce das árvores, dos cantos dos pássaros, das uvas das videiras, do verde sem fim. Não se compra nem empresta, simplesmente vive-se e partilha-se. Passamos lá uma tarde e ficamos para jantar (ficando prometida, para mais tarde, uma visita mais demorada).
No restaurante é diariamente confeccionado um menu único (entrada, prato principal, sobremesa, água e café), com base na gastronomia local, que poderá ser desfrutado na sala comum ou no terraço exterior, havendo ainda a possibilidade das iguarias serem acompanhadas pelos melhores vinhos da herdade. Aconselhamos a provarem o monocasta Touriga Nacional, para se deixarem conquistar pelas deliciosas notas balsâmicas, frutos secos, frutos do bosque, compota de ameixa, pimenta preta e alcaçuz. É um vinho muito complexo e super elegante.
Para último a maior surpresa da viagem, surpresa essa que lhe garantiu o titulo de hotel rural do ano: o Hotel da Barrosinha. Está estrategicamente situado numa das áreas mais bonitas de Alcácer do Sal e inserida na Herdade com mais de 2000 hectares, ladeada pelo Rio Sado. Do enquadramento com as vinhas e com a natureza que as embalam, nasce um mundo de modernidade, classe e requinte. Entre paredes, a contemporaneidade cruza-se, de forma singular, com as tradições ancestrais e com a ruralidade tipicamente alentejana.
Essa inspiração rural está bem patente nas originais peças de tapeçarias, nos instrumentos agrícolas, nos mármores alentejanos e nos instrumentos da lavoura, que partilham o espaço com objectos de decoração mais modernos (mobiliário, candeeiros e obras de artes), transmitindo uma almofada de conforto muito agradável. É o lugar ideal para relaxar, usufruir da fantástica gastronomia local, desfrutar da natureza, provar os vinhos da casa, fazer uma caminhada ou refrescar-se com um mergulho na piscina com vista para toda esta ruralidade moderna. Conta com 37 quartos (entre os quais, duas suites) que nos brindam com todos os mimos e classe que um espaço como este exige.
O restaurante bebe inspiração na gastronomia alentejana, recorrendo aos produtos produzidos na herdade em regime biológico quer nas áreas agrícolas, na vinha, no olival ou na produção animal. Falamos do mel, dos ovos, do arroz, do azeite e dos diversos produtos hortícolas. Destacamos o Torricado de sardinha assada e escabeche de pimentos; o Filete de Peixe-Galo com açorda de tomate gambas e hortelã pimenta; a Perna de pato confitado com batata doce assada e molho de laranja; e o Bife de vaca com creme de alho assado, jus de novilho e chips de batata doce. Nas sobremesas e para acompanhar o belo Moscatel da Barrosinha aTorta de laranja da Ti Julia uma delicia!!!); e a Delicia de noz e Moscatel da Barrosinha.
Há ainda a Taberna da Barrosinha. Um espaço marcante da etnografia da aldeia da Barrosinha e que foi recentemente recuperado, tendo-se mantido a sua traça original mas introduzindo valências que lhe permitem acolher, com total conforto, o mais variado tipo de comensais. Lá é servida comida de conforto, generosa, genuína e com muito sabor. Na Barrosinha existem ainda outras actividades como as provas de vinho, escapadinhas românticas, vindimas, passeios no Sado e percursos pela Herdade. Este é um daqueles sítios especiais que merece levar o selo de "Altamente Recomendado" pelo blogue ;)
Abílio Guerra Junqueiro, político, jornalista e poeta (pus por ordem crescente de importância ;)) da segunda metade do século XIX, senhor de uma poesia positivista sobre relações sociais, defendia que "o sorriso que ofereceres, a ti voltará outra vez", não há muitos sorrisos como o da imagem de acima, faria de novo os 1150 km desta viagem para o rever naquele contexto, apenas para dar trabalho ao meu hipocampo. :P
Todos nós temos as nossas máquinas do tempo. Algumas levam-nos para trás, são chamadas de memórias. As outras levam-nos para a frente, são chamadas de sonhos, que tenhamos sempre muitos sonhos impulsionados por belas recordações como estas, que nos fazem ter saudades do futuro, numa nova estrada, num novo vinho, num novo lago, num novo restaurante, numa nova praia, numa nova serra, num novo hotel, num novo cruzamento, numa nova aventura ... num novo sorriso.
Solução para o enigma: basta bater na bola verticalmente para cima, a bola subirá, mas depois pela acção da gravidade inverterá o sentido e cairá.