"O génio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio." Fernando Pessoa
O primeiro titulo desta publicação era "caindo na toca do coelho", mas a tradução da expressão original não expressava a imagem que lhe queria emprestar. O uso (pelo menos o mais conhecido) dessa expressão em inglês, “down the rabbit hole”, ocorreu através do grande Lewis Carroll que a introduziu em 1865 em "Alice no País das Maravilhas".
Nesse bonito conto, a pequena Alice, cai, literalmente no buraco do Coelho Branco, um acaso que a transporta para esse país mágico. Desde então, cair na toca do coelho passou a significar a entrada num universo alternativo, diferente, fabuloso, quase encantado. Sei que no mundo das redes sociais essa expressão ganhou outro sentido, mas não é sobre ele que vos falo hoje.
No conto original, a pequena Alice descansa, sentada na relva, num dia quente de Verão, até que vê um coelho a passar em ritmo apressado, trajando um colete axadrezado e consultando impacientemente o seu relógio de bolso. Surpreendida por toda aquela situação, a menina segue-o, até acabar por cair no buraco, vendo-se emergida num mundo desconhecido e cheio de lagartas falantes, ratos narcolépticos e rainhas surgidas de um baralho de cartas: o País das Maravilhas, em toda a sua estranha e sedutora beleza.
Ao querer criar um mundo extraordinariamente excêntrico, Lewis Carroll brinca com elementos metafísicos como o espaço e o tempo, de modo a os reinterpretar, reforçando o sobrenatural do ambiente encantado dos seus contos. No que diz respeito ao tempo, algo de muito intrigante ocorre em"Alice no País das Maravilhas".
No mundo real, o tempo é usualmente medido em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses ou anos. Independentemente do modo como é contado, a sua definição permanece a mesma. As crianças metamoforizam-no no “tick tack” e os adultos descrevem-no como “o progresso contínuo indefinido da existência e eventos no passado, presente e futuro”.
O tempo no universo de Lewis Carrol é diferente e tem muito a ver com inocência, paciência e verdade. A descida por esse buraco temporal, na verdade, significa uma subida significativa na busca por um conhecimento significativo. Será que essa toca, é um buraco filosofal?
Poderá ele conduzir-nos a um mundo onde podemos voltar ao cérebro "não moldado" por preconceitos? Quando abordamos o livro com isto em mente, as suas páginas oferecem-nos interpretações interessantes e significativas de diversos aspectos da nossa vida, sendo uma delas relativa ao tempo e o modo como o passamos, ou deixamos passar. O tempo no País das Maravilhas parece ser algo turbulento e confuso. As personagens correm a todo o momento, ansiosas, predominando uma sensação de impaciência.
Quando o Coelho Branco chega atrasado logo no início da história (dando início às principais aventuras), Alice questiona-o sobre a duração da eternidade — algo imensurável, mas recebe uma das respostas mais marcantes do livro: “Às vezes dura apenas um segundo”. Para sermos objectivos, se um relógio estiver parado, como o do coelho (são sempre 6 horas), um segundo é verdadeiramente uma eternidade.
O Coelho Branco é, em muitos aspectos, uma metáfora do burocrata moderno desgastado pelo tempo e pela pressão implacável a que a falta dele inevitavelmente conduz. É claro que ninguém na sociedade contemporânea acredita, verdadeiramente, que esteja mais ocupado do que a geração anterior, preferimos acreditar que estamos antes "constantemente ligados" e conectados, através de uma nuvem digital, a mais pessoas nas diferentes vidas da nossa vida.
Se pensarmos na diferença entre a vida pré-primeira Guerra Mundial (onde 90% da população vivia da agricultura); e a vida pós-primeira Guerra Mundial (onde essa situação foi revertida com a imergência na vida urbana), percebemos que o tempo na nossa vida deixou de ser medido pelo relógio sazonal da agricultura para passar a ser consultado num relógio, sempre atrasado e veloz, de um Coelho Branco.
Numa determinada etapa da nossa vida, longe da altura em que desejávamos que os dias passassem rápido e que os anos se sucedessem abruptamente, parece que começamos a sentir a necessidade de segurar o tempo: queremos deixar de ser o Coelho Branco. É aqui que os segundos passam a ter um valor incalculável. A maturidade é algo que nos faz ter não só a capacidade mas também a coragem de nos desfazermos do ímpeto de querer alcançar o máximo de tudo no mínimo de tempo possível.
Com esse "desprendimento" o passar dos dias passa a ter um outro significado. E nesse caso, sim, um segundo pode ter a duração de uma eternidade. Mas isso não é magia, é maturescência, aquela que nos faz saber esperar e dar valor ao tempo e às coisas que só o tempo permite alcançar. No mundo da gastronomia, por vezes, este modo coelho-brancamente ansioso de encarar o "negócio", de lucrar para ontem, do imediato, do hoje, do comum, do unanimemente aceite, predomina, mas noutras vezes, há quem tente entrar na toca e abrandar as coisas, acrescentando valor através do tempo, esse é o caso do Conceito – Restaurante, de Daniel e Vanessa Estriga.
Essa preocupação com a significância do tempo, esse "desacelerar," começa logo quando a porta se abre com a chegada dos clientes e é explicada a filosofia do espaço. Uma cozinha aberta para a sala, onde se procura sempre que o equilíbrio entre ambos os espaços resulte numa experiência distinta, para descobrir e saborear sem pressas. Na cozinha, figuram os melhores produtos dos mercados e produtores locais, que são trabalhados com exigência, cuidado, respeito e paixão.
Essa forma única de lidar com o tempo gastronómico bebeu inspiração no modo em como o Daniel Estriga se construiu enquanto Chefe, sem obrigatoriedades, preconceitos, imposições ou pressas. Nasceu numa família de pasteleiros, e se calhar por isso, sempre pensou que o seu caminho não passaria pela restauração. No entanto, o primeiro estágio no ícone lisboeta Bica do Sapato mudou todo o futuro que tinha concebido para si. A adrenalina gastronómica começou a correr das suas veias, e de lá não mais saiu.
Seguem-se trabalhos com Paulo Morais, Bertilio Gomes, Miguel Castro e Silva e José Avillez, e passagens por restaurantes de renome como Quique D’Acosta em Alicante, Espanha (3 estrelas Michelin). Com toda esta bagagem nas costas, aos 23 anos decide abrir o Conceito – Restaurante, naquele que apelida ainda hoje de "um acto de loucura".
Segundo Pessoa, actos de loucura como esse estão normalmente associados a uma inadaptabilidade ao meio, a uma vontade de querer fazer diferente, a uma tendência de querer acrescentar algo aquilo que já existe. E é isso mesmo que, na minha opinião, define o Conceito – Restaurante: comida de autor; menus de degustação coerentes e com sentido; máxima exigência nos produtos, confecção e serviço; extrema atenção aos detalhes; tudo isto enlaçado num espaço casual chic e sem pretensiosismos.
Existe ainda o efeito "down the rabbit hole" ao abrirmos a porta do restaurante, quando passamos de uma área urbana movimentada à entrada de um prédio, para o espaço intimista, com bom gosto e garboso do restaurante. Após sermos recebidos com um delicioso couvert com pão de massa mãe e pão de milho acompanhados por um conjunto de manteigas, azeite e patés muito originais (limão confitado, azeitona, ovo, peixe e cogumelos: o paté feito com as sobras dos peixes tinha um sabor a mar inspirador!!!) surgiu na mesa uma "simples" Salada.
Composta por beterraba, aipo, miso, amendoim e alface, transportava inúmeras texturas, crocância, vegetalidade, um toque picante do sal e uma espuma ligeiramente cítrica e consistente que acabava por ligar todos os elementos. Era fresca, untuosa e muito complexa, quase que a querer enganar os nossos sentidos. O Choco, camarão e batata fumada remeteu-me para uma espécie de "foie do mar", devido à sua riqueza, textura e voluptuosidade.
Por sua vez a Caldeirada de peixe com espuma de ouriço, pescada, abrótea, raia, lula, gamba da costa, mexilhão e berbigão parecia ser o resultado de uma redução de mar, muito densa, rica e intensa. Os Citrinos, cenoura e espumante serviram de limpa palato requintado para o Carabinero, sapateira e lentilhas. A leguminosa não roubava protagonismo ao marisco, acrescentando-lhe complexidade, untuosidade e uma ligeira orientalidade. Em conjunto é uma criação que exibe equilíbrio, ponderação e muito sabor!!!
Para finalizar, uma piña colada "mastigável" gourmet, carregada de texturas e sabores complementares, em forma de Limão, ananás e coco, incrivelmente elegante, fresca, e cheia de alegria. Muito provavelmente não vão encontrar estes pratos quando se deslocarem ao Conceito – Restaurante, pois o Daniel e a Vanessa gostam de mudar frequentemente de menus de modo a acrescentarem algum mistério e emoção à experiência gastronómica que propõem no seu espaço.
O Menu Viagem com 7 momentos (com o custo de 72€ , mais completo que o Menu Essência a 51€) promete, sempre, sejam qual forem os pratos integrantes, uma imersão total na filosofia "down the rabbit hole”, reflectindo a evolução destes últimos 11 anos. O suplemento vínico eleva ainda essa experiência gastronómica.
Cheguei a semana passada de uma viagem aos países Bálticos onde conheci restaurantes integrantes do Guia Michelin localizados em esplanadas no passeio, em quintas no meio da floresta e em "salas de jantar" no jardim por baixo de árvores centerárias, todos eles com uma boa dose de loucura. Fico muito contente, não só por encontrar essa irreverência também em Portugal, mas também devido ao facto do Daniel e da Vanessa terem materializado no Conceito – Restaurante o seu modo de exprimir a sua inadaptabilidade ao meio, acrescentado novas ideias, novas roupagens e um estilo muito próprio. Não mudem!!! Quando saímos do restaurante, o meu relógio marcava 6 horas e 1 segundo ;)