Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

No meu Palato

No meu Palato

Riverside Santa Apolónia Hotel | Expresso do subconsciente: tęsknota, um guia para a vida

"A nossa vida é uma constante viagem, do nascimento até à morte. A paisagem muda, as pessoas mudam, as necessidades transformam-se, mas o comboio, esse segue adiante. A vida é o comboio, não a estação!!!"  Paulo Coelho

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelJá há uns meses que procurava um enquadramento literário para a publicação relativa ao The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel, em Lisboa, no entanto, o mesmo apenas ficou mais "claro" ontem, após ter terminado "The Books of Jacob", de Olga Tokarczuk. Ainda não há tradução para português, mas acredito que será qualquer coisa como "As escrituras de Jacob".

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelSão mais de 900 páginas, divididas por sete livros mais pequenos, lidos nos últimos meses. Interessei-me pela obra na roadtrip deste ano pelos Bálticos, pois tinha sempre lugar de destaque na maioria das livrarias e supermercados pelos quais fomos passando. Em Varsóvia estava em tudo o que era montra.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelFoi apenas no regresso a Portugal que associei, verdadeiramente, o livro, à sua autora. Olga Nawoja Tokarczuk, uma escritora polaca que se licenciou em Psicologia pela Universidade de Varsóvia. Em 2019, foi distinguida pela Academia Sueca com o Prémio Nobel da Literatura pela sua «imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida».

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelNa minha (bastante) mais humilde opinião, Olga Nawoja Tokarczuk, e tendo por base apenas esta obra, tem uma escrita alucinante, que faz a prosa parecer poesia. "The Books of Jacob", traduzido para inglês apenas no final de 2021, é um romance que começa em 1752 na cidade de Rohatyn e termina em Korolówka, em pleno Holocausto.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelO suposto personagem principal, que dá nome aos livros, é Jacob Frank, um judeu polaco que afirmava ser o Messias. Esta "septologia" combina dezenas de perspectivas em terceira pessoa, daqueles mais ligados a Jacob Frank. Tokarczuk mantém o ritmo desconcertante do seu romance com quebras de secção bastante precisas e narrando o desenvolvimento psicológico dos seus personagens de modo quase umbilical, pincelando toda essa narrativa com a tensão da descoberta e uma percepção lenta, mas progressiva, do pensamento de cada um dos diferentes personagens. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelHá por ali qualquer coisa de Saramago, pois é quase um desafio à literatura dos dias de hoje, de todo o tipo de literatura. Desafia a nossa falta de tempo para ler (ler "aos poucos" não vai servir pois iríamos perder alguns pormenores que mais à frente se revelariam "pormaiores"),  desafia os nossos curtos períodos de atenção, desafia o ciclo frenético de informação das massas (que passa rapidamente da guerra para a pandemia e da pandemia para a morte da rainha Isabel II); desafia o tweet conciso, por vezes impreciso; e desafia o "scroll" rápido nos stories de quem seguimos. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelAo escrever a partir de uma perspectiva excêntrica (desviada do centro do assunto) sobre o porquê das mulheres serem excluídas dos arquivos históricos, Tokarczuk ensina-nos uma nova forma historiográfica de ver, o que foi, propositadamente, escondido: aprendemos a ver o que pode não ser aparente, mas ainda assim está presente. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelAssim, "As escrituras de Jacob", não são um tutorial para percebermos se Jacob é, ou não o Messias, é antes sim uma sebenta, facultada ao leitor, para encarar a vida ... É extraordinário devido à sua enorme quantidade de detalhes, tão sensuais, tão precisos, tão simples, que os leitores ficam presos à construção subtil deste belo romance.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelAli as palavras deixam de existir apenas como veículo de comunicação e passam a ser coisas reais, como um copo, um coração ou uma faca... Os sete livros vêm com um guia de leitura, que nos deixa um aviso, o de que nos vamos sentir  transportados e transformados. O aviso, materializou-se, cada vez que experimentei este romance, em função das diferentes perspectivas individuais que cada um dos diferentes personagens me dava. Iam-me tornando numa pessoa diferente, com preconceitos e curiosidades diferentes.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelSendo um livro, tão "fora da caixa", se o personagem mais importante fosse Jacob, sentir-me-ia defraudado, isso não aconteceu... Os livros oferecem ainda um nível incomum de conexão com a história e perspectivas antagónicas sobre a sociedade e a religião, que iluminam tanto o passado quanto o futuro, e nos faz questionar sobre o que define um verdadeiro protagonista.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelEssa luz, no inicio bastante ténue, é dada, sobretudo, por outros dois personagens: um é a própria narradora e a outra é resultante de um realismo mágico, uma mulher chamada Yente... Esta ultima, quanto a mim, é a alma do romance, mas o seu potencial para se assumir como personagem central nunca é totalmente preenchido. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelÉ fascinante perceber que muitos dos eventos narrados por Tokarczuk tenham sido referenciados por fontes históricas bastante credíveis (não as mesmas fontes de Dan Brown ;)), mas isso quase que passa para segundo plano. O que, verdadeiramente, importa é a coerência interna do mundo que Yent cria através da linguagem e da sua capacidade para nos guiar através de exames à fé ilimitada e às falhas humanas, que nos leva a passear pela identidade cultural do que somos e pelo ostracismo que por vezes aplicamos aos outros. No final, as manipulações da crueldade inabalável e impensada dos supostos amigos passam a ser legos de valores que nos ajudam a construir a nosso próprio castelo de identidade. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelAcima de tudo, Yent mostra-nos a  importância da nossa busca permanente de sentido e por sentido. Este romance extraordinário faz parte dessa procura. Nessa busca conjunta, entre leitor, personagens e narrador, Tokarczuk está dividida entre sua afeição pelos complicados, parciais e imperfeitos parentes terrestres e sua aspiração por uma omnisciência divina. O resultado de todo este embróglio, é uma narradora que se recusa a admitir que está a narrar, colocando-se numa posição em que está em todo o lado e em sítio nenhum.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelQuando chegamos ao final do sétimo livro, embora Jacob esteja sempre no centro da narrativa, constatamos que participa activamente apenas numa parte bastante diminuta da obra, ainda assim, em toda ela, mantém-se uma figura misteriosa que vamos conhecendo em encontros de intimidade variável. Seria fácil retrata-lo como um charlatão e oportunista, pois o seu controle sobre seus discípulos é enervante e seu comportamento sexual chega a ser abusador, mas Jacob é também alguém que "retira" o melhor de quem o rodeia.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelTokarczuk, uma não crente, permite-lhe, se calhar por essa certa abnegação (ainda que contida), um certo carisma sedutor, um certo toque de Midas que realça as virtudes dos outros, e uma certa ligação emocional com os leitores. Porque lá no fundo, ele até é um tipo sincero. Essa ligação emocional era ainda mais forte com os seus discípulos, alguns deles, personagens bastante conhecidas da nossa história recente (não vou dar nomes para não estragar a leitura de quem se entregar aos livros). Todas estas ligações eram materializadas em cordas bastante fortes: na verdade, na identidade e na coerência. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelE este é a principal lição destes livros, a capacidade de ver verdade, de ver coerência e de ver sentido, em coisas que "à primeira vista" não possuem essas características. Mais, essa unidade identitária, aquilo que verdadeiramente somos, pode ser encontrada em coisas, aparentemente díspares ou retalhadas. Essa é a lógica artístico-literária por trás deste livro: a probidade de ver nas entrelinhas. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelÉ também segundo essa bitola que darei a minha opinião acerca do The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel, e é também com base nela que opinarei (e é apenas isso, uma opinião individual) que o Chef do restaurante do Hotel, André Silva, merece a estrela. Curiosamente essa opinião foi reforçada num restaurante que não a merece, claramente, restaurante esse que foi um dos que mais me marcou este ano e que vos recomendo vivamente. Confusos? Espero que no final a tęsknota vos ajude a perceberem tudo, esteja, ou não, isso escrito :P

The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel

Já conheço o Chefe André Silva há quase dez anos, e foi apenas por saber que tudo o que ele faz, faz bem, que fui em família, propositadamente, a Lisboa para conhecer o The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelEstá localizado na antiguinha Estação de Santa Apolónia, inaugurada a 1 de maio de 1865, ainda no reinado de D. Luís I. Ao longo de mais de 150 anos passaram por aquele local milhões de viajantes e ali aconteceram momentos históricos fracturantes.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelFoi de lá que o general "sem medo", Humberto Delgado, partiu em direcção ao Porto e à liberdade; e que o papa João Paulo II saiu para visitar o país mais a norte; e foi também ali que chegou Simone de Oliveira depois de cantar a desfolhada no Festival Eurovisão da canção de 1969 em Madrid, assim como os exilados políticos no pós 25 de Abril de 1974 (entre os quais Mário Soares e Salgado Zenha). 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelFoi ponto de passagem para milhões de emigrantes que nos anos sessenta e setenta chegavam e partiam para França ou Alemanha, em busca de uma vida melhor. Santa Apolónia perdeu importância com a Expo 98 e após a inauguração da estação do Oriente, mas continuam a passar por lá algumas centenas de milhares de pessoas por ano.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelEste fóssil histórico, ganha agora uma "nova vida" e uma nova cor, com o The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel que ocupa metade das suas instalações. Este hotel brinda-nos com uma atmosfera requintada, sóbria sem ser austera, elegante na sua leveza de anfitriã de histórias e desenhada para viajantes que gostam de quebrar fronteiras.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelComo é óbvio, os comboios e as viagens são os temas principais da decoração deste encantador hotel.  Lá é possível embarcar numa viagem pelas histórias da História, marcada pelo compasso de beijos de despedida e abraços de reencontros, e guiada por linhas, nem sempre de ferro, que se estendem até ao limite da nossa memória. The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel é, assim,  uma porta de acesso a uma plataforma de embarque em experiências que se perdem entre a linha do horizonte, vista à janela de um comboio de emoções e com os olhos postos no próximo destino.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelPossui 2 pisos, 126 quartos, uma sala de reunião, um ginásio e um restaurante com cozinha bistrô de matriz regional. Este último, como já vos referi anteriormente, foi o motivo principal da nossa visita. Materializa-se numa cozinha moderna, assente em produtos nacionais, por vezes modestos, mas sempre enobrecidos pela arte de quem os respeita e confecciona. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelO serviço informal mas com identidade é realçado pelas referências à estação, aos comboios e às viagens. Começamos a notar a chancela "André Silva" nos candeeiros que acrescentam algum requinte e elegância; no papel de destaque que é dado ao bar, relembrando-nos que estamos num gastropub; no ambiente clean mas confortável, e na amplitude e espaço da sala (curiosamente a mais pequena foi a que lhe deu a estrela ;)).

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelPassando para uma análise mais pormenorizada da comida, não estava à espera do nível que ali encontrei. Em todos os outros restaurantes por onde o André passou e que tive o privilégio de  visitar (Largo do Paço - que saudades dos tempos em que por ali se inovava e arriscava, Porta - que saudades ... apenas saudades, e Auge - que saudades do biscoito Teixeira), o André esteve sempre na cozinha, desta vez, estava a mais de 300 km de distância.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelSeria possível manter o binómio identidade-qualidade assim distante? A experiência gastronómica começou numa pequena "sala de estar" onde provamos alguns cocktails muito originais (preparados pelo amicíssimo e bastante aventureiro Luís Gil). Quando escrevi todos, fomos mesmo todos, as crianças também tiveram direito a desfrutarem de umas bebidas sem álcool, acho que as fotos de acima deixam transparecer o que eles acharam. ;) 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelJá na mesa, a amuse-bouche Croquete de feijoada de choco, molho de beterraba e chip de maça desidratada, serviu de anfitriã para algo bastante simples mas que eu adorei. Atum em conserva, esmagado de grão, molho de escabeche e salada de pimentos e rebentos de beterraba, um prato muito fresco, em que o grão acrescentava alguma consistência ao conjunto e elevava o atum em conserva (preparado no restaurante). A combinação ponderada dos diferentes aromas, texturas e intensidades, num produto tão simples, enamorou-me... 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelA Cavala fumada com salada de folhas verdes, molho de anchovas, pickle de beterraba e ovo de codorniz marinado em beterraba assumiu-se como uma espécie de salada César gourmet, elevada a um outro nível de sabor pela gordura fumada da cavala, pela vegetalidade da salada, pela acidez do pickle e pela originalidade do ovo. É rica, é completa, é surpreeendentemente complexa, e torna nobre um peixe mal-amado.

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelSeguiu-se Setúbal da terra ao mar, com salmonete de Setúbal e o molho dos seus fígados, chalotas, espinafres e batata doce. O peixe estava cozinhado no ponto (a pele crocante estava deliciosa!!!), os acompanhamentos foram pensados ao pormenor (acrescentando untuosidade, doçura, texturas e salinidade), a apresentação estava simples mas elegante, e a cada garfada ia surgindo uma boa dose de surpresa nos sabores. Ali vivem as mais puras recordações do mar português, das suas gentes, e de quem os glorifica com criações como estas. Muito bom!!!

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelO Arroz de peixe (com bisque do arroz carolino, camarão, tamboril, garoupa e robalo), surgiu cheio de tecnicidade e delicadeza, brindando-nos com sabores marítimos que combinam subtileza e carácter. Todos os diferentes elementos estavam cozinhados no ponto, provocando um autentico mergulho no mar...

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelD'A Capoeira apareceu um frango recheado com alheira, batata em mil folhas, molho de asas de frango, courgette e espinafres. Teve o condão de me relembrar uma coisa que já há algum tempo havia esquecido, que sou apaixonado por um bom frango no churrasco. :P Este tinha uma decadência aristocrática que me fez lamber os dedos. Isto é André Silva, fazer muito, fazer marcante, com praticamente tudo o que lhe possam por à frente. Curiosamente, uns meses depois, encontrei um prato muito parecido num estrela Michelin, mas isso fica para outra história...

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelAs Bochecas confitadas com vinho tinto (8 horas), pera bêbeda e puré de batata ágria estavam super ricas, sedosas, com imenso sabor e carregados de aromas, sucos e contrastes. Adorei o modo como a canela da pera adicionava uma orientalidade à iguaria, e também a conjugação de sabores que me fez achar o prato, simultaneamente, fresco e untuoso. O puré estava divinal!!!

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelNas sobremesas começo pela minha favorita: Torta de azeitona, sorvet de lima, pólen de abelha, azeitonas, curd de limão e microgreens. Só poderia ter saído da cabeça do André. É seca e doce, é ácida e untuosa, e é subtil e exagerada. Passeia-se no palato, cheia de si, e com uma explosão de sabores, texturas imensas e uma acidez estonteante. 

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelO repasto terminou com as Farófias com gema de ovo, gelado de moscatel rocho e amêndoa e gel de laranja, com muita intensidade, frescura e originalidade, mas o meu palato ainda estava com a torta de azeitona...  

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelNa manhã seguinte e para desgastar um pouco as calorias armazenadas na noite anterior, caminhamos até ao Panteão Nacional (2 km) e apanhamos um táxi até à zona de Belém (10 km). Regressamos ao hotel a tempo de tomarmos o pequeno almoço (recomendamos os Ovos Benedict e a Tortilha de Batata) e almoçamos uns rápidos e deliciosos snacks (prego e hambúrguer) antes de regressarmos a Guimarães.  

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelPor tudo isto devem visitar o hotel pois é realmente especial, coloca-nos numa outra época cheia de sons, sotaques e idiomas, passeando no tempo, sem perdermos a ligação com a comodidade de um hotel de charme, mas não podem, não podem mesmo, não visitar o seu restaurante. O André provavelmente não estará lá, ou melhor, "estará", mas apenas o veremos de uma outra forma :P  

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelBasta colocar os óculos historiográficos de Tokarczuk para conseguirmos ver o que apesar de não ser aparente, ainda assim está presente. E isto foi o que aprendi com esta visita, que é possível manter a exigência, a identidade, o compromisso e os valores, mesmo a 300 km de distânica e com produtos (ainda só que por vezes) menos nobres. Isto porque o local e paisagem podem mudar, as pessoas podem abandonar-nos, as necessidades podem transformarem-se, mas o comboio identitário que faz de nós aquilo que somos, esse segue adiante. A vida é o comboio, não a estação, e este, sei bem, onde um dia (re)chegará... ;)

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelN'"As escrituras de Jacob", há uma palavra que aparece na versão poloca do romance e que não foi traduzida para inglês: tęsknota. Percebi que é um sentimento muito parecido com a nossa saudade, mas mais doloroso, distante e que se refere não somente ao passado como também ao futuro.  

The Editory Riverside Santa Apolónia HotelTokarczuk define-o como a dor da alma de quem lutou para ser livre de algo, uma condição obrigatória para sermos, verdadeiramente, originais. Tęsknota, para Tokarczuk é também uma "falta intensa e muito sentida", ainda que inconsciente ou reprimida, escondida no subconsciente, de algo que achamos que temos direito. Toda a experiência gastronómica que tive no Riverside Santa Apolónia Hotel, mostrou-me que no caso do André,  tęsknota também significa inevitabilidade, seja ela, mais ou menos demorada. 

Quanto aos verdadeiros protagonistas, aprendam com o livro que vos falei hoje, só no final da história é que percebemos quem são!!! ;)

 

 

Brancos Casa Velha da Adega de Favaios | Orgulho e Preconceito

"A cada manhã, exijo ao menos a expectativa de uma surpresa, quer ela aconteça ou não. Expectativa, por si só, já é um entusiasmo. Quero que o fato de ter uma vida prática e sensata não me roube o direito ao desatino."  Martha Medeiros

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosTodos (pelo menos aqueles que gostam de vinhos) conhecem a Adega de Favaios, uma das mais prestigiadas adegas de Portugal que, desde 1952, com o espírito de cooperativismo dos seus 550 associados aliado ao saber das “gentes de Favaios” potenciaram a produção da casta moscatel galego branco. É assim criada a designação de Moscatel de Favaios, um dos mais famosos e emblemáticos moscatéis portugueses, produzido com qualidade e rigor.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosO que muitos não sabem, é que para além desse fortificado de excelência, a aldeia vinhateira dos moscatéis do Douro tem excelentes condições para a produção de brancos de altitude. As novas colheitas DOC Douro Casa Velha da Adega de Favaios, das quais vos falo hoje, evidenciam a vitalidade desta cooperativa de viticultores, 70 anos após a sua fundação.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosO novo fôlego deste Douro preterido no passado (o planalto de Favaios ficou arredado da produção de Vinho do Porto durante quase duas décadas, entre 1935 e 1951) e hoje cada vez mais apreciado é, na realidade, um trabalho que já leva mais de 20 anos na Adega de Favaios.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosA preocupação em manter a sustentabilidade da adega e responder à necessidade de produção dos associados justificaram a aposta nos vinhos brancos de qualidade superior. Para tal a equipa de enologia que iniciou funções em 2001 (Celso Pereira e Filipe Carvalho), incentivou os produtores locais a substituírem algumas das suas castas por outras mais adequadas ao planalto.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosSão elas o Viosinho, o Gouveio, o Gouveio Real, o Arinto, e o Rabigato –, sendo que actualmente está a ser também incentivada a plantação de castas quase desaparecidas como o Samarrinho e o Donzelinho Branco. Hoje, como já vos disse anteriormente, vou falar-vos de quatro vinhos produzidos por aquelas bandas.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosComeço pelo Casa Velha Gouveio 2021 (5.75 €, 87 pts.) que, quanto a mim, tem um dos mais bonitos/originais rótulos da região. Antes de engarrafado sofreu uma maceração pré-fermentativa longa (até três dias) e mosto de sangria sem recurso a clarificação. A fermentação muito longa (15 a 20 dias) ocorreu em cuba de inox. O estágio foi também totalmente em inox.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosÉ um vinho com uma cor citrina muito cristalina, é bastante exuberante e expressivo, com notas de pêssego, limonete, uma pitada vegetal e alguma pedregosidade, mas é na boca que este vinho se sente melhor: revelando autenticidade, franqueza e frescura, frescura e ... mais frescura.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosPor sua vez, o Casa Velha branco 2021 (4.50 €, 85 pts.) é produzido a partir de uvas colhidas a uma altitude entre 600 e 700 metros, e contém uma pequena percentagem de Moscatel (20%), que contribui com o seu perfume para a harmonia do lote e combina muito bem com o Gouveio (40%) e Viosinho (40%). O vinho estagia depois entre três e seis meses (20% em barricas usadas e 80% em inox).

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosApresenta uma cor citrina brilhante e é bastante mineral no nariz. Surgem também notas de pêra, ananás, lima e limonete. Na boca exibe intensidade, uma acidez viva e uma subtil untuosidade. 

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosO Casa Velha Reserva branco 2020 (8 €, 89 pts.) é um lote com as castas Gouveio, Viosinho e Rabigato. É resultado de um estudo e selecção das melhores parcelas e clones, bem como de um acompanhamento mais próximo dos viticultores associados que fornecem as uvas. Para terem uma melhor noção de como é feita esta triagem, dos 550 associados, apenas 6-10 vêm as suas uvas incorporadas no Reserva ou no Grande Reserva.

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosEste esforço culmina na vindima manual para caixas de 20 quilos e, posteriormente, na selecção dos melhores lotes de vinhos. O estágio de um ano ocorre em barrica de terceiro ano (70%) e cuba de Inox (30%). É um vinho de cor cítrica bastante cristalina e que no nariz mostra damasco, limonete, anis e flor de laranjeira seca. Na boca pede, incessantemente, por comida e é estruturado, complexo e equilibrado. Para o preço que custa, este vinho é um achado!!!

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosPor último, o Casa Velha Grande Reserva branco 2019 (15 €, 90 pts.) é composto por uvas cuja selecção foi ainda mais criteriosa que no Reserva,  e que incluem as castas Gouveio, Viosinho e Arinto, colhidas a uma altitude entre os 500 e 600 metros. Estagiou um ano em barricas de 1º e 2º ano (90%) e cuba de inox (10%). Tem uma cor amarela citrina, mais densa, quase já a querer fugir para o dourado, e uma fruta muito madura no nariz (alperce e laranja). A madeira (fumados e avelã) esconde um pouco essa fruta. No palato surgem apontamentos vegetais e o vinho mostra-se fresco, untuoso e muito equilibrado. 

Brancos Casa Velha da Adega de FavaiosÉ pena que não se tenha dado um pouco mais de tempo a este Grande Reserva, porque ele tem tudo para crescer em garrafa. Há que guardar algumas na garrafeira... ;)

Confesso-vos que fiquei surpreendido pela qualidade destes brancos: frescos, equilibrados e genuínos. São vinhos como estes que estão a ajudar a derrubar o preconceito associando aos vinhos das Adegas Cooperativas. Se a vinha velha em field blend, é "vendida", com orgulho, também graças à complexidade e largura que potencia nos vinhos, algo parecido deveria de acontecer com estes Adega Blend!!! ;)

Sal na Adega | Quanto do teu sal, são lágrimas de um comensal?

"O mar não recompensa os que são por demais ansiosos, ávidos ou impacientes. Estar constantemente a tentar encontrar tesouros mostra não só impaciência e avidez, mas também falta de fé. Paciência, paciência e paciência é o que nos ensina o mar. Paciência e fé. Precisamos de nos deitar vazios, abertos e sem exigências, como a praia que aguarda por um presente do mar." Anne Morrow Lindbergh

Sal na Adega - AdegaMãePoucas pessoas sabem que quando colocamos sal num bom naco de carne na brasa, estamos, na verdade,  a revesti-lo com dois compostos voláteis e muito perigosos. No entanto, esse acto apenas seria suicida caso os elementos que compõe o sal, o sódio e o cloro, estivessem a solo. Em comunhão de ligações iónicas, juntos, formam o cloreto de sódio – o "vulgar" sal de cozinha, que na realidade é uma das substancias químicas com maior impacto na nossa história enquanto civilização.

Sal na Adega - AdegaMãeO papel vital deste mineral não se limita à química do nosso corpo (a falta de sal conduz a dores de cabeça, enjoos, vómitos, fraqueza muscular e sonolência) mas estende-se ao longo da história humana, temperando os nossos comportamentos. O sal foi o primeiro bem de comércio internacional e uma mercadoria tão preciosa que foi usada como uma antiga forma de "moeda". Quando percebemos que ele nos ajudava a preservar a comida que havia em excesso e que não poderia ser consumida no imediato (carne e peixe), elevámos a sua fama ao patamar de relíquia. 

Sal na Adega - AdegaMãeHá uns tempos quando preparava uma publicação cujo tema também se entrelaçava com o sal, deparei-me com algumas passagens do livro "Salt: A World History" que me fizerem querer conhecer esta evolução conjunta entre humanos e cloreto de sódio. Entretanto consegui ler o livro, que me passeou por entre a extracção da água do mar na China antiga; até o delta do Nilo no Egipto onde as suas propriedades de preservação da carne atingiram um novo nível, através da mumificação de cadáveres (especialmente os de personalidades importantes); passando também pela Roma antiga, onde o sal era sinónimo de poder.

Sal na Adega - AdegaMãeLer este livro foi um desafio, pois a narrativa para além de estar sempre a saltar de século e país, por vezes sem aparente lógica, tinha o condão de me dar fome e sede... :P Por entre o esmiuçar da longa e (não tão)  célebre história do sal, o autor, Mark Kurlansky, vai apimentando o texto com receitas nas quais o cloreto de sódio desempenha um papel importante, se não crucial. É um livro fascinante, que inclui todos os tipos de curiosidades relacionadas com o sal, desde os primórdios do Tabasco até a um esquema engenhoso para introduzir camelos nos desertos do oeste americano.

Sal na Adega - AdegaMãeEntre outras pitadas históricas surpreendentes (por exemplo o facto do sal ter tido um papel determinante na independência dos  Estados Unidos da América:  ao restringir o comércio e atacar as salinas americanas, o Reino Unido desencadeou a guerra naquele continente; ou a revelação de um segredo secular: o da conversão de uma mina de sal de Wieliczka, na Polónia, num vasto complexo de turismo enogastronómico, por volta do século XVII, repleto de salões de baile, salas de jantar e uma lagoa submarina onde a coroa receberia convidados reais) há duas, particularmente deliciosas, ou não estivessem relacionadas com o vinho. 

Sal na Adega - AdegaMãeKurlansky explora brevemente a importância que o sal e o bacalhau tiveram como companheiros de equipa, de modo a tornarem possível a viagem de peixes pescados nas comunidades litorais para outros locais muito longe do mar ou então para sítios onde esses peixes pura e simplesmente não existiam (história essa que é extrapolada mais detalhadamente no livro sobre o "Bacalhau: a biografia do peixe que mudou o mundo", outro que já está em lista de espera), alimentando, assim, povos que nunca viram uma rede de pesca. 

Sal na Adega - AdegaMãeDe modo semelhante, esta capacidade de conservação do sal, serviu também aos mais abastados na conservação dos seus vinhos, isto é claro antes da descoberta das rolhas de engarrafamento. Uma pitada de sal no vinho não só o mantinha "fresco", como também lhe acrescentava um sabor inusitadamente interessante. Depois, na página 159 do livro, havia uma referência a Banyuls, o vinho mais conhecido de uma região vínica no sul da França (Pirenéus Orientais). Deixo-vos abaixo um enxerto do modo como começa essa página.

Sal na Adega - AdegaMãe"O povo de Collioure vivia do vinho e do peixe salgado. Pescavam anchovas de Maio a Outubro em pequenos barcos de madeira que podiam navegar sobre as rochas do porto raso, movidos por uma vela latina... Em Outubro, quando a temporada de anchovas terminava, começavam as vindimas nos socalcos das colinas acima da vila. O vinho, chamado Banyuls, tem uma doçura picante escura que é um contrapeso perfeito para as anchovas salgadas. O povo de Collioure trabalhava no seu canteiro de vinhas, podando-as e preparando-se para o ano seguinte, até que as folhas e os brotos chegassem, e então era de novo Maio, tempo de deixar as uvas crescerem e de voltar a pescar anchovas. Assim, cada família tinha um barco para pescar e um canteiro nos socalcos para as vinhas".

Sal na Adega - AdegaMãeMais curiosa que esta relação entre sal, vinho e peixe, é o resultado que esta dieta teve na imunização da vila contra ... pandemias. No século XIV eclodiu a peste bubônica, cujas vítimas delirantes morriam em poucos dias, com dores excruciantes.  Essa pandemia varreu todo o velho continente, matando 75 milhões de pessoas (a COVID-19 vai com uma décima parte desta infeliz contabilidade), valor esse, que segundo algumas estimativas credíveis, equivalia a metade da população da Europa de então. Número de fatalidades em Collioure? 

Sal na Adega - AdegaMãeZero!!! Muitos historiadores, nutricionistas e epidemiologistas defendem que foi a junção de todos os elementos nessa dieta que os salvou. Provas irrefutáveis deste milagre enogastronómico não existem, mas este par de histórias tem, pelo menos, a mais valia de nos mostrar a bonita e longa relação entre mar, sal, peixe, vinho e humanos. A publicação de hoje centra-se num local que evoca este bonito legado, de modo particularmente eficaz: o restaurante Sal na Adega da AdegaMãe

Sal na Adega - AdegaMãeEste restaurante é o mais recente projecto de excelência lançado pelo enoturismo da AdegaMãe. Inaugurado já em 2020, em plena pandemia, impôs-se como um palco de interpretação da cozinha tradicional portuguesa, em harmonização com os vinhos elegantes, frescos e minerais, nascidos no terroir atlântico. 

Sal na Adega - AdegaMãeO Sal na Adega surge num espaço único, em pleno rooftop do edifício da AdegaMãe, numa área funcional e requintada, desenhada com o objectivo de proporcionar as melhores experiências em torno da gastronomia e do vinho. O espaço tem disponibilidade para 52 lugares sentados, é complementado com um winebar e uma loja, e orientado para a extraordinária paisagem de vinhas que domina a região.

Sal na Adega - AdegaMãeO bacalhau, o fiel amigo, símbolo maior da gastronomia portuguesa, assume um papel de relevo na carta do restaurante Sal na Adega, mas são igualmente valorizados outros produtos tradicionais e de época, da terra e da costa. Sugerimos que comecem a vossa experiência enogastronómica com a visita à adega da AdegaMãe, de modo a se embeberem na filosofia de quem pensou aquele espaço.

Sal na Adega - AdegaMãeEsta é uma das adegas mais modernas do nosso país, onde a inovação surge, paulatinamente, a cada canto. Para além deste aspecto funcional, talvez o mais importante, é um espaço esteticamente muito apelativo, onde podemos contemplar a grandiosidade das cubas de armazenamento e fermentação, o detalhe do laboratório e a tranquilidade ecléctica da Sala do Tempo, sitio onde os vinhos repousam, estagiam e envelhecem, originando uma mistura de aromas bastante sedutor. 

Sal na Adega - AdegaMãeNesta peça única de engenharia, harmoniosamente enquadrada na paisagem da região, surgem também pequenas janelas para o exterior que permitem a entrada de luz natural e a saída do nosso olhar em direcção às vinhas. Vinhas essas que também podem ser contempladas na varanda panorâmica que nos brinda com uma paisagem arrebatadora. 

Sal na Adega - AdegaMãeVoltando ao restaurante, o repasto começou com uns deliciosos Bolinhos de bacalhau e um Ceviche de bacalhau super fresco, rico, vegetal e com uns apontamentos adocicados proveniente das uvas que lhe davam uma alegria contagiante.  Os Chocos fritos com maionese de alho e coentros são super viciantes, crocantes por fora e com um interior cheio de mar. 

Sal na Adega - AdegaMãeA Bia pediu para ela (e para o Gui) um peixe grelhado (o amicíssimo Chefe de sala João Silva sugeriu garoupa) com arroz caldoso, o melhor elogio que posso tecer ao peixe é o facto das crianças se terem gladiado por cada garfada. Acho que a imagem de acima (4 fotos atrás) transmite bem a suculência e mestria na confecção desse peixe nobre. 

Sal na Adega - AdegaMãeO Arroz de tomate malandrino com bochechas de bacalhau à Bulhão Pato brindou-nos com untuosidade, acidez, intensidade e maresia. O arroz estava al dente, quase como um risoto marítimo, sem parmesão mas com o bacalhau a dar essa camada extra de sabor. Este é um prato que em conjunto funciona muito bem.

Sal na Adega - AdegaMãeSeguiu-se, quanto a mim, a estrela da refeição:  Lombos de bacalhau com crocante de presunto em cama de batata e cebolada. O bacalhau com apenas um ligeiro toque do garfo lascava logo e exibia um sabor a mar inspirador. Em conjunto com a ligeira doçura dos legumes e o fumado crocante do presunto, provocava uma experiência gastronómica reconfortante que era enobrecida pelas notas de ameixa, cera,  pedra de isqueiro, flores secas, pedregosidade, acidez viva, untuosidade e estrutura do AdegaMãe Vital Vinhas Velhas 2019 (20.00 €, 93 pts.), um vinho sobre o qual conversaremos, mais calmamente, noutra ocasião. 

Sal na Adega - AdegaMãeNa carne,  a Costeleta de cabrito, migas e molho de viosinho com mostarda surgiu cheia de si. O cabrito estava carregado de sabor, intensidade, tenrura e suculência. A riqueza das migas (broa, lombarda, feijão, cenoura, alhos e coentros) conjugado com a pungência, acidez e perfume penetrante do molho, foram a guarda de honra perfeita deste delicioso prato. O AdegaMãe Reserva Tinto 2017 (14.5 €, 91 pts.) elevou-o a um outro patamar, com o cacau, os frutos silvestres, a pimenta preta, alguma salinidade, e muita elegância. A finalizar, A nossa mousse de chocolate, com frutos secos, pimenta rosa e ... sal, assim muito resumidamente, foi "só" a melhor que provei até hoje.

Sal na Adega - AdegaMãePor tudo isto, o Sal na Adega é um restaurante cheio de sentido e que desperta os nossos sentidos. Lá, tudo está muito bem conjugado: arquitectura, paisagem, vinhos, gastronomia e serviço. Também lá, percebemos que, afinal, a nossa memória do sal, não tem de ser, forçosamente, a do "Mar Português" de Pessoa, pode ser bem mais alegre. Vaticino que este restaurante se vá tornar num caso sério de sucesso, não direi que vos fará chorar de alegria, mas tenho a certeza que vos fará olhar com outros olhos, para esta bonita relação entre vinho, sal e boa comida. 

Até esses tempos de glória, basta aprender com o mar, e ter paciência, paciência e paciência, o "tesouro" há-de chegar!!! ;)