Riverside Santa Apolónia Hotel | Expresso do subconsciente: tęsknota, um guia para a vida
"A nossa vida é uma constante viagem, do nascimento até à morte. A paisagem muda, as pessoas mudam, as necessidades transformam-se, mas o comboio, esse segue adiante. A vida é o comboio, não a estação!!!" Paulo Coelho
Já há uns meses que procurava um enquadramento literário para a publicação relativa ao The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel, em Lisboa, no entanto, o mesmo apenas ficou mais "claro" ontem, após ter terminado "The Books of Jacob", de Olga Tokarczuk. Ainda não há tradução para português, mas acredito que será qualquer coisa como "As escrituras de Jacob".
São mais de 900 páginas, divididas por sete livros mais pequenos, lidos nos últimos meses. Interessei-me pela obra na roadtrip deste ano pelos Bálticos, pois tinha sempre lugar de destaque na maioria das livrarias e supermercados pelos quais fomos passando. Em Varsóvia estava em tudo o que era montra.
Foi apenas no regresso a Portugal que associei, verdadeiramente, o livro, à sua autora. Olga Nawoja Tokarczuk, uma escritora polaca que se licenciou em Psicologia pela Universidade de Varsóvia. Em 2019, foi distinguida pela Academia Sueca com o Prémio Nobel da Literatura pela sua «imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida».
Na minha (bastante) mais humilde opinião, Olga Nawoja Tokarczuk, e tendo por base apenas esta obra, tem uma escrita alucinante, que faz a prosa parecer poesia. "The Books of Jacob", traduzido para inglês apenas no final de 2021, é um romance que começa em 1752 na cidade de Rohatyn e termina em Korolówka, em pleno Holocausto.
O suposto personagem principal, que dá nome aos livros, é Jacob Frank, um judeu polaco que afirmava ser o Messias. Esta "septologia" combina dezenas de perspectivas em terceira pessoa, daqueles mais ligados a Jacob Frank. Tokarczuk mantém o ritmo desconcertante do seu romance com quebras de secção bastante precisas e narrando o desenvolvimento psicológico dos seus personagens de modo quase umbilical, pincelando toda essa narrativa com a tensão da descoberta e uma percepção lenta, mas progressiva, do pensamento de cada um dos diferentes personagens.
Há por ali qualquer coisa de Saramago, pois é quase um desafio à literatura dos dias de hoje, de todo o tipo de literatura. Desafia a nossa falta de tempo para ler (ler "aos poucos" não vai servir pois iríamos perder alguns pormenores que mais à frente se revelariam "pormaiores"), desafia os nossos curtos períodos de atenção, desafia o ciclo frenético de informação das massas (que passa rapidamente da guerra para a pandemia e da pandemia para a morte da rainha Isabel II); desafia o tweet conciso, por vezes impreciso; e desafia o "scroll" rápido nos stories de quem seguimos.
Ao escrever a partir de uma perspectiva excêntrica (desviada do centro do assunto) sobre o porquê das mulheres serem excluídas dos arquivos históricos, Tokarczuk ensina-nos uma nova forma historiográfica de ver, o que foi, propositadamente, escondido: aprendemos a ver o que pode não ser aparente, mas ainda assim está presente.
Assim, "As escrituras de Jacob", não são um tutorial para percebermos se Jacob é, ou não o Messias, é antes sim uma sebenta, facultada ao leitor, para encarar a vida ... É extraordinário devido à sua enorme quantidade de detalhes, tão sensuais, tão precisos, tão simples, que os leitores ficam presos à construção subtil deste belo romance.
Ali as palavras deixam de existir apenas como veículo de comunicação e passam a ser coisas reais, como um copo, um coração ou uma faca... Os sete livros vêm com um guia de leitura, que nos deixa um aviso, o de que nos vamos sentir transportados e transformados. O aviso, materializou-se, cada vez que experimentei este romance, em função das diferentes perspectivas individuais que cada um dos diferentes personagens me dava. Iam-me tornando numa pessoa diferente, com preconceitos e curiosidades diferentes.
Sendo um livro, tão "fora da caixa", se o personagem mais importante fosse Jacob, sentir-me-ia defraudado, isso não aconteceu... Os livros oferecem ainda um nível incomum de conexão com a história e perspectivas antagónicas sobre a sociedade e a religião, que iluminam tanto o passado quanto o futuro, e nos faz questionar sobre o que define um verdadeiro protagonista.
Essa luz, no inicio bastante ténue, é dada, sobretudo, por outros dois personagens: um é a própria narradora e a outra é resultante de um realismo mágico, uma mulher chamada Yente... Esta ultima, quanto a mim, é a alma do romance, mas o seu potencial para se assumir como personagem central nunca é totalmente preenchido.
É fascinante perceber que muitos dos eventos narrados por Tokarczuk tenham sido referenciados por fontes históricas bastante credíveis (não as mesmas fontes de Dan Brown ;)), mas isso quase que passa para segundo plano. O que, verdadeiramente, importa é a coerência interna do mundo que Yent cria através da linguagem e da sua capacidade para nos guiar através de exames à fé ilimitada e às falhas humanas, que nos leva a passear pela identidade cultural do que somos e pelo ostracismo que por vezes aplicamos aos outros. No final, as manipulações da crueldade inabalável e impensada dos supostos amigos passam a ser legos de valores que nos ajudam a construir a nosso próprio castelo de identidade.
Acima de tudo, Yent mostra-nos a importância da nossa busca permanente de sentido e por sentido. Este romance extraordinário faz parte dessa procura. Nessa busca conjunta, entre leitor, personagens e narrador, Tokarczuk está dividida entre sua afeição pelos complicados, parciais e imperfeitos parentes terrestres e sua aspiração por uma omnisciência divina. O resultado de todo este embróglio, é uma narradora que se recusa a admitir que está a narrar, colocando-se numa posição em que está em todo o lado e em sítio nenhum.
Quando chegamos ao final do sétimo livro, embora Jacob esteja sempre no centro da narrativa, constatamos que participa activamente apenas numa parte bastante diminuta da obra, ainda assim, em toda ela, mantém-se uma figura misteriosa que vamos conhecendo em encontros de intimidade variável. Seria fácil retrata-lo como um charlatão e oportunista, pois o seu controle sobre seus discípulos é enervante e seu comportamento sexual chega a ser abusador, mas Jacob é também alguém que "retira" o melhor de quem o rodeia.
Tokarczuk, uma não crente, permite-lhe, se calhar por essa certa abnegação (ainda que contida), um certo carisma sedutor, um certo toque de Midas que realça as virtudes dos outros, e uma certa ligação emocional com os leitores. Porque lá no fundo, ele até é um tipo sincero. Essa ligação emocional era ainda mais forte com os seus discípulos, alguns deles, personagens bastante conhecidas da nossa história recente (não vou dar nomes para não estragar a leitura de quem se entregar aos livros). Todas estas ligações eram materializadas em cordas bastante fortes: na verdade, na identidade e na coerência.
E este é a principal lição destes livros, a capacidade de ver verdade, de ver coerência e de ver sentido, em coisas que "à primeira vista" não possuem essas características. Mais, essa unidade identitária, aquilo que verdadeiramente somos, pode ser encontrada em coisas, aparentemente díspares ou retalhadas. Essa é a lógica artístico-literária por trás deste livro: a probidade de ver nas entrelinhas.
É também segundo essa bitola que darei a minha opinião acerca do The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel, e é também com base nela que opinarei (e é apenas isso, uma opinião individual) que o Chef do restaurante do Hotel, André Silva, merece a estrela. Curiosamente essa opinião foi reforçada num restaurante que não a merece, claramente, restaurante esse que foi um dos que mais me marcou este ano e que vos recomendo vivamente. Confusos? Espero que no final a tęsknota vos ajude a perceberem tudo, esteja, ou não, isso escrito :P
Já conheço o Chefe André Silva há quase dez anos, e foi apenas por saber que tudo o que ele faz, faz bem, que fui em família, propositadamente, a Lisboa para conhecer o The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel.
Está localizado na antiguinha Estação de Santa Apolónia, inaugurada a 1 de maio de 1865, ainda no reinado de D. Luís I. Ao longo de mais de 150 anos passaram por aquele local milhões de viajantes e ali aconteceram momentos históricos fracturantes.
Foi de lá que o general "sem medo", Humberto Delgado, partiu em direcção ao Porto e à liberdade; e que o papa João Paulo II saiu para visitar o país mais a norte; e foi também ali que chegou Simone de Oliveira depois de cantar a desfolhada no Festival Eurovisão da canção de 1969 em Madrid, assim como os exilados políticos no pós 25 de Abril de 1974 (entre os quais Mário Soares e Salgado Zenha).
Foi ponto de passagem para milhões de emigrantes que nos anos sessenta e setenta chegavam e partiam para França ou Alemanha, em busca de uma vida melhor. Santa Apolónia perdeu importância com a Expo 98 e após a inauguração da estação do Oriente, mas continuam a passar por lá algumas centenas de milhares de pessoas por ano.
Este fóssil histórico, ganha agora uma "nova vida" e uma nova cor, com o The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel que ocupa metade das suas instalações. Este hotel brinda-nos com uma atmosfera requintada, sóbria sem ser austera, elegante na sua leveza de anfitriã de histórias e desenhada para viajantes que gostam de quebrar fronteiras.
Como é óbvio, os comboios e as viagens são os temas principais da decoração deste encantador hotel. Lá é possível embarcar numa viagem pelas histórias da História, marcada pelo compasso de beijos de despedida e abraços de reencontros, e guiada por linhas, nem sempre de ferro, que se estendem até ao limite da nossa memória. The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel é, assim, uma porta de acesso a uma plataforma de embarque em experiências que se perdem entre a linha do horizonte, vista à janela de um comboio de emoções e com os olhos postos no próximo destino.
Possui 2 pisos, 126 quartos, uma sala de reunião, um ginásio e um restaurante com cozinha bistrô de matriz regional. Este último, como já vos referi anteriormente, foi o motivo principal da nossa visita. Materializa-se numa cozinha moderna, assente em produtos nacionais, por vezes modestos, mas sempre enobrecidos pela arte de quem os respeita e confecciona.
O serviço informal mas com identidade é realçado pelas referências à estação, aos comboios e às viagens. Começamos a notar a chancela "André Silva" nos candeeiros que acrescentam algum requinte e elegância; no papel de destaque que é dado ao bar, relembrando-nos que estamos num gastropub; no ambiente clean mas confortável, e na amplitude e espaço da sala (curiosamente a mais pequena foi a que lhe deu a estrela ;)).
Passando para uma análise mais pormenorizada da comida, não estava à espera do nível que ali encontrei. Em todos os outros restaurantes por onde o André passou e que tive o privilégio de visitar (Largo do Paço - que saudades dos tempos em que por ali se inovava e arriscava, Porta - que saudades ... apenas saudades, e Auge - que saudades do biscoito Teixeira), o André esteve sempre na cozinha, desta vez, estava a mais de 300 km de distância.
Seria possível manter o binómio identidade-qualidade assim distante? A experiência gastronómica começou numa pequena "sala de estar" onde provamos alguns cocktails muito originais (preparados pelo amicíssimo e bastante aventureiro Luís Gil). Quando escrevi todos, fomos mesmo todos, as crianças também tiveram direito a desfrutarem de umas bebidas sem álcool, acho que as fotos de acima deixam transparecer o que eles acharam. ;)
Já na mesa, a amuse-bouche Croquete de feijoada de choco, molho de beterraba e chip de maça desidratada, serviu de anfitriã para algo bastante simples mas que eu adorei. Atum em conserva, esmagado de grão, molho de escabeche e salada de pimentos e rebentos de beterraba, um prato muito fresco, em que o grão acrescentava alguma consistência ao conjunto e elevava o atum em conserva (preparado no restaurante). A combinação ponderada dos diferentes aromas, texturas e intensidades, num produto tão simples, enamorou-me...
A Cavala fumada com salada de folhas verdes, molho de anchovas, pickle de beterraba e ovo de codorniz marinado em beterraba assumiu-se como uma espécie de salada César gourmet, elevada a um outro nível de sabor pela gordura fumada da cavala, pela vegetalidade da salada, pela acidez do pickle e pela originalidade do ovo. É rica, é completa, é surpreeendentemente complexa, e torna nobre um peixe mal-amado.
Seguiu-se Setúbal da terra ao mar, com salmonete de Setúbal e o molho dos seus fígados, chalotas, espinafres e batata doce. O peixe estava cozinhado no ponto (a pele crocante estava deliciosa!!!), os acompanhamentos foram pensados ao pormenor (acrescentando untuosidade, doçura, texturas e salinidade), a apresentação estava simples mas elegante, e a cada garfada ia surgindo uma boa dose de surpresa nos sabores. Ali vivem as mais puras recordações do mar português, das suas gentes, e de quem os glorifica com criações como estas. Muito bom!!!
O Arroz de peixe (com bisque do arroz carolino, camarão, tamboril, garoupa e robalo), surgiu cheio de tecnicidade e delicadeza, brindando-nos com sabores marítimos que combinam subtileza e carácter. Todos os diferentes elementos estavam cozinhados no ponto, provocando um autentico mergulho no mar...
D'A Capoeira apareceu um frango recheado com alheira, batata em mil folhas, molho de asas de frango, courgette e espinafres. Teve o condão de me relembrar uma coisa que já há algum tempo havia esquecido, que sou apaixonado por um bom frango no churrasco. :P Este tinha uma decadência aristocrática que me fez lamber os dedos. Isto é André Silva, fazer muito, fazer marcante, com praticamente tudo o que lhe possam por à frente. Curiosamente, uns meses depois, encontrei um prato muito parecido num estrela Michelin, mas isso fica para outra história...
As Bochecas confitadas com vinho tinto (8 horas), pera bêbeda e puré de batata ágria estavam super ricas, sedosas, com imenso sabor e carregados de aromas, sucos e contrastes. Adorei o modo como a canela da pera adicionava uma orientalidade à iguaria, e também a conjugação de sabores que me fez achar o prato, simultaneamente, fresco e untuoso. O puré estava divinal!!!
Nas sobremesas começo pela minha favorita: Torta de azeitona, sorvet de lima, pólen de abelha, azeitonas, curd de limão e microgreens. Só poderia ter saído da cabeça do André. É seca e doce, é ácida e untuosa, e é subtil e exagerada. Passeia-se no palato, cheia de si, e com uma explosão de sabores, texturas imensas e uma acidez estonteante.
O repasto terminou com as Farófias com gema de ovo, gelado de moscatel rocho e amêndoa e gel de laranja, com muita intensidade, frescura e originalidade, mas o meu palato ainda estava com a torta de azeitona...
Na manhã seguinte e para desgastar um pouco as calorias armazenadas na noite anterior, caminhamos até ao Panteão Nacional (2 km) e apanhamos um táxi até à zona de Belém (10 km). Regressamos ao hotel a tempo de tomarmos o pequeno almoço (recomendamos os Ovos Benedict e a Tortilha de Batata) e almoçamos uns rápidos e deliciosos snacks (prego e hambúrguer) antes de regressarmos a Guimarães.
Por tudo isto devem visitar o hotel pois é realmente especial, coloca-nos numa outra época cheia de sons, sotaques e idiomas, passeando no tempo, sem perdermos a ligação com a comodidade de um hotel de charme, mas não podem, não podem mesmo, não visitar o seu restaurante. O André provavelmente não estará lá, ou melhor, "estará", mas apenas o veremos de uma outra forma :P
Basta colocar os óculos historiográficos de Tokarczuk para conseguirmos ver o que apesar de não ser aparente, ainda assim está presente. E isto foi o que aprendi com esta visita, que é possível manter a exigência, a identidade, o compromisso e os valores, mesmo a 300 km de distânica e com produtos (ainda só que por vezes) menos nobres. Isto porque o local e paisagem podem mudar, as pessoas podem abandonar-nos, as necessidades podem transformarem-se, mas o comboio identitário que faz de nós aquilo que somos, esse segue adiante. A vida é o comboio, não a estação, e este, sei bem, onde um dia (re)chegará... ;)
N'"As escrituras de Jacob", há uma palavra que aparece na versão poloca do romance e que não foi traduzida para inglês: tęsknota. Percebi que é um sentimento muito parecido com a nossa saudade, mas mais doloroso, distante e que se refere não somente ao passado como também ao futuro.
Tokarczuk define-o como a dor da alma de quem lutou para ser livre de algo, uma condição obrigatória para sermos, verdadeiramente, originais. Tęsknota, para Tokarczuk é também uma "falta intensa e muito sentida", ainda que inconsciente ou reprimida, escondida no subconsciente, de algo que achamos que temos direito. Toda a experiência gastronómica que tive no Riverside Santa Apolónia Hotel, mostrou-me que no caso do André, tęsknota também significa inevitabilidade, seja ela, mais ou menos demorada.
Quanto aos verdadeiros protagonistas, aprendam com o livro que vos falei hoje, só no final da história é que percebemos quem são!!! ;)