Dona Matilde Calços Largos 2020 & Cia. | O vinho vai nu
"O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito, desfaz-se; basta uma simples reflexão." Machado de Assis
Dois vigaristas chegam a uma povoação governada por um rei que era famoso por gastar o orçamento do reino em ... roupas caras. Fazendo-se passar por tecelões, estes dois trapaceiros prometem criar para o soberano roupas incrivelmente bonitas e inovadoras. Eram tão distintas que apenas as pessoas com bom muito bom gosto as conseguiriam ver.
Viciado em alta costura, o rei contratou-os imediatamente. Logo nesse dia os dois comparsas montaram os teares e começaram o "trabalho". Todo este inusitado acontecimento despertou interesse em toda a vizinhança. Camponeses, funcionários do rei e até o próprio monarca foram passando pelo atelier. Todos viram o mesmo, ou melhor, não viram. Os teares pareciam vazios mas ninguém denunciou nada, com medo de ser acusado de possuir um mau gosto.
Passados alguns dias os vigaristas anunciaram que as roupas estavam prontas. "Vestiram" o rei com elas, e o monarca saiu em procissão diante de toda a cidade. Os habitantes, com o medo de parecerem ineptos ou estúpidos, entraram no engodo dos dois aldrabões e fingem-se abismados com a beleza das roupas que o rei carregava, até que ... uma criança deixa escapar uma frase que ficaria para a história ... «o rei vai nu!!!».
Embora assustado com os devaneios daquela criança, o rei continuou o seu passeio majestoso, caminhando ainda com mais orgulho. Este é um resumo de "A roupa nova do rei", um conto muito popular escrito em 1837 pelo autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Desde então, a expressão "o rei vai nu" passou a simbolizar a situação em que as pessoas adoptam a percepção das massas, daquilo que é popular, daquilo que é aceite unanimemente de modo a que com essa opinião "comunitária" se sintam mais conhecedoras, reconhecidas ou inteligentes.
Curiosamente, o rei costuma ir nu, algumas vezes, bem, na verdade, demasiadas vezes, no mundo dos vinhos. Hoje falo-vos de uma "espécie de nudez", a que está relacionada com o facto dos bons vinhos, possuírem obrigatoriamente (este advérbio complica muitas vezes o que se vai dizer a seguir) estágio em madeira. Eu próprio, quando me apresentam um vinho sem estágio em madeira, baixo, involuntariamente e imediatamente, as expectativas. O Dona Matilde Calços Largos 2020 (40 €, 92 pts.), no fim de semana passado, deu-me uma bela lição de nudez. :P
É um vinho com pouca extracção, fermentado com leveduras indígenas e estágio de 18 meses em inox, uma opção que assegura a exuberância de aromas, mantendo, a par, grande elegância e complexidade. Foi produzido a partir de uvas colhidas em vinhas velhas da Quinta Dona Matilde, com cerca de 80 anos e 30 castas tradicionais do Douro.
A apanha das uvas foi feita à mão em caixas de 25 Kg, seguindo-se a pré-selecção dos cachos à entrada da adega. Traja um vermelho-rubi denso e entra no nariz com frutos silvestres, eucalipto, urze, sous-bois e alguma pedregosidade. Tudo muito genuíno. Na boca é fresco, elegante, surpreendentemente austero e muito harmonioso. É um excelente companheiro para um arroz de pato mas também se bebe bem a solo, tão bem que mal nos demos conta do seu término. ;)
Aproveitei a ocasião para provar mais dois vinhos oriundos da Quinta Dona Matilde. O Dona Matilde Reserva branco 2019 (24 €, 88 pts.) é um field blend produzido a partir das castas Viosinho, Gouveio, Rabigato e Arinto, colhidas em várias vinhas da quinta, umas junto ao rio (e usadas tradicionalmente para a produção de vinho do Porto branco), outras localizadas em zona mais alta (altitudes entre os 50 e os 300 metros). Teve estágio de seis meses em barricas de 300 litros.
No copo apresenta-se amarelo-citrino, passando para o nariz com notas de maracujá, maçã verde, anis, acácia-lima, flor de limoeiro, anis e alguma tosta que acaba por equilibrar o conjunto. Na boca tem uma acidez salivante, é untuoso, ponderado e longo.
Voltando aos tintos, o Dona Matilde Reserva tinto 2017 (20 €, 90 pts.) tem uma relação qualidade/preço incrível. É produzido a partir das castas tradicionais (Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Amarela) e vinificado pelo ancestral método da pisa a pé nos tradicionais lagares de granito. Estagia 18 meses em barricas novas de carvalho francês.
É um vinho de cor rubi, com aromas de compota de frutos silvestres, ameixa, eucalipto, caruma e umas notas suaves a uva passa e baunilha. Na boca passeia-se com com intensidade, volume, taninos redondos, frescura, complexidade e concentração. São três grandes vinhos, ainda assim o que me ficou na cabeça, ou melhor no palato, foi o Dona Matilde Calços Largos 2020.
É caso para dizer, este vinho vai nu, despido, sem madeira, mas ao contrário da nudez do rei com que iniciei esta crónica, esta nudez não realça a padronização, é antes sim, um reflexo da quebra de preconceitos no mundo dos grandes vinhos do Douro. Parabéns pelo vinho, pelo risco e pelo modo com que gostam de fazer diferente.