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No meu Palato

No meu Palato

A Cozinha por António Loureiro | Ensaio sobre o ser

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." José Saramago 

A Cozinha por António LoureiroEstamos numa fila de automóveis que, impacientemente, respeita um sinal vermelho. O semáforo, finalmente, muda para o verde, e todos os carros (re)iniciam a marcha. Bem, na verdade, todos não. Um deles permanece parado, bloqueando todos aqueles que se encontravam na faixa do meio. A que se devia essa paragem? A uma avaria? A uma mulher que não acertava com o ponto de embraiagem? (:P) Falta de combustível?

A Cozinha por António LoureiroEssas teorias são desmentidas através de um grito, que repetia tão incessante quanto apavorantemente as mesmas três palavras: ''Eu estou cego.'' Perturbado e sem perceber o que lhe havia acontecido, o homem cego é acompanhado até sua casa por um estranho (aparentemente) gentil. O que o cego não sabia é que esse "bom samaritano" é na realidade um ladrão de carros. Depois de ter deixado o cego em sua casa, ele foge com o seu carro. O roubo mais fácil da vida do ladrão. 

A Cozinha por António LoureiroO carma não demora muito em se manifestar de modo exuberante. Pouco tempo depois, também o ladrão fica cego. Mas que raio é que se passará aqui? O primeiro cego desta história consulta um oftalmologista. Diz-lhe que a sua cegueira não é escura, mas antes um branco brilhante e impenetrável. O oftalmologista examina cuidadosamente os olhos desse homem, mas não encontra  degenerações, sinais de doença ou lesões. Intrigado com este estranho caso, o médico passa a noite a ler livros sobre medicina, na tentativa de encontrar uma explicação para aquela patologia desconcertante.  

A Cozinha por António LoureiroMal sabia ele que a última coisa que veria, seriam as suas próprias mãos contra as lombadas dos livros. Depois do primeiro cego, do ladrão e do médico, a cegueira capturou a menina dos óculos escuros, o menino estrábico, o velho e toda a cidade. O governo toma então medidas para travar o contágio, conhecido como o "mal branco". Aqueles que já estão cegos e aqueles que tiveram contacto com eles são reunidos e conduzidos a um asilo psiquiátrico abandonado na periferia da cidade. 

A Cozinha por António LoureiroEntre os primeiros internados estão o médico e a mentirosa da sua esposa. Esta mentiu para ficar perto do marido. Afirma que contraiu a cegueira branca, mas na verdade, é a única que não perde a visão. Porque terá sido ela poupada? À medida que o número de cegos aumenta, as condições do asilo deterioram-se. Não há comida suficiente: uns comem mais do que sua parte, outros passam fome. 

A Cozinha por António LoureiroTambém não há assistência médica. Qualquer tentativa de deixar o asilo é recebida com força letal por parte dos soldados, que impelidos pelo medo de também eles sucumbirem à cegueira, perdem a humanidade que ainda lhes restava. O asilo torna-se mais um campo de concentração do que um hospital. O pavor é tanto, que entre os militares há quem sugira que seria mais simples matar todos os cegos. Entretanto chegam novos cegos ao asilo... 

A Cozinha por António LoureiroCom eles trazem relatos do mundo exterior: tumultos, acidentes rodoviários e aviões que se despenham. Com o tempo, a vida no hospital degenera numa luta hobbesiana pelo poder e pela sobrevivência: terror cego, ódio cego, mas também - pois Saramago é um dos escritores mais apaixonados - amor cego. 

A Cozinha por António LoureiroNuma das passagens do livro "Ensaio sobre a cegueira", a esposa do médico passeia pela enfermaria completamente lotada, já em plena noite. Repara então em dois jovens recém-chegados entregues aos prazeres carnais por entre a imundície que pincelava o chão. Passados uns minutos (se este casal fosse de Guimarães Saramago teria de alterar o texto para "passadas umas horas" :P) o cego e a cega adormeceram, separados, no entanto, um deitado ao lado do outro, de mãos dadas.

A Cozinha por António LoureiroEram realmente jovens, daquela juventude bonita que por vezes quase que nos irrita. Talvez fossem namorados que foram ao cinema e que ficaram cegos enquanto assistiam a um filme, ou então, talvez uma coincidência milagrosa os tenha reunido naquele lugar sombrio. Mas, se apenas se tivessem conhecido ali, como se apaixonaram sem se olharem?  Outro escritor, Antoine de Saint-Exupéry, oferece-nos a resposta através do Princepezinho, “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos”.

A Cozinha por António LoureiroAssim, e apesar de Saramago submeter todos os seus personagens a uma série de provações desanimadoras decorrentes de premissas essencialmente pessimistas (uma pandemia, o possível fim do mundo, uma sociedade tão egoísta ao ponto de se tornar suicida), o brilhante Nobel português também nos oferece algumas armas para sobrevivermos enquanto comunidade: a inteligência, a esperança, a compaixão, a moral e o amor. 

A Cozinha por António LoureiroQuanto a mim, a parte mais bonita do livro e que me levou a escolhe-lo para vos introduzir a critica relativa ao restaurante A Cozinha por António Loureiro, tem a ver não só com o modo muito subtil como Saramago decide abordar as questões de familiaridade, pertença e identidade, mas também com o facto de que se quisermos transmitir todas essas "nossas coisas" a alguém, deveríamos usar narrativas literárias, e consequentemente a arte, para nos fazermos ouvir. 

A Cozinha por António LoureiroAo longo de todo o livro, os personagens de Saramago esforçam-se para perceber o que aconteceu com eles e com a sua cidade. Esforçam-se também por tentar salvar a sua comunidade e a sua memória colectiva. Esforçam-se por tentar resgatar aquilo que são. Diante de circunstâncias tão inexplicáveis, tão desafiantes, tão inconcebíveis, todos os personagens acabam por dar sentido às suas vidas por meio de narrativas que muitas vezes acabam por definir, indelevelmente, as suas identidades. 

A Cozinha por António LoureiroSaramago mostra, assim, como as narrativas que as pessoas escolhem para se apresentarem aos outros, podem ajudar a construir aquilo que somos enquanto comunidade. Essas narrativas não precisam de ser um retrato fiel do nosso ADN ou do berço onde nascemos, antes sim, necessitam de ser o suficientemente cativantes para entramos naquilo que a outra pessoa é. Esse bater à porta da cave mental que faz o outro, tem de ser audível sem fazer ruído.

A Cozinha por António LoureiroÉ por isso que as pessoas que queiram apresentar o seu mundo a alguém fora dele, em vez de tentar definir objectivamente a realidade devem aceitar a ambiguidade, a arte e a incerteza, permitindo navegar "aos apalpões" pelas suas memórias. Hoje falo-vos de alguém que transporta aquilo que é, a terra onde nasceu e os valores que adquiriu, para um prato servido na sua Cozinha: O Chefe António Loureiro.

A Cozinha por António LoureiroA Cozinha é verdadeiramente especial. É quase como se entrássemos numa outra dimensão, onde a azáfama do dia-a-dia acalma, enternece e ganha um outro sentido, ou melhor, outros sentidos. O restaurante ocupa uma sala cuidada nos detalhes, sofisticadamente tradicional, uma combinação de paredes, pedra, madeira e azulejos que brindam ao experimentalismo geométrico do cubismo com garrafas de vinho.

A Cozinha por António LoureiroLocalizada no centro histórico da cidade-berço, em plena antiga judiaria vimaranense, actual Largo do Serralho, e vigiada pela imponente Torre dos Almadas, A Cozinha abriu há sete anos, procurando pôr-nos à mesa refeições sensoriais, saudáveis, criativas, modernas, elegantes, sustentáveis, cheias de aromas, cores e memórias.

A Cozinha por António LoureiroComo já vos tinha dito anteriormente, o Chefe António Loureiro faz rimar como poucos, tradição e inovação. Ao contrário do que se possa pensar, estes não são termos assim tão distantes, desde que tenhamos uma boa técnica e conhecimentos para os conciliar. Depois, há ainda a obsessão diária com a excelência e com as cores impressionistas, quase como se cada criação fosse concebida por um pintor. 

A Cozinha por António LoureiroA tudo isto foi acrescentando, ano após ano, menu após menu, prato após prato, aquilo que o Chefe é. A preocupação com a sustentabilidade e com o mundo que deixamos para as gerações seguintes; a identificação com as causas sociais daqueles que nos rodeiam;  a utilização de produtos locais; e a narrativa ambígua, pessoal, incerta e forçosamente subjectiva daquele que é o seu berço: Guimarães, as suas gentes, as suas tradições e os seus valores.

A Cozinha por António LoureiroNo final duma refeição n'A Cozinha por António Loureiro ficamos mesmo com a sensação que conhecemos o Chefe. Que brincamos consigo na montanha da Penha, que a subimos a seu lado em dias de peregrinação, que entrámos na casa da sua mãe enquanto esta cozinhava e sentimos os aromas familiares que saiam das panelas, ou então que festejámos com ele aquele golo do Ricardo a 26 de maio de 2013. 

A Cozinha por António LoureiroNa última vez que estivemos n'A Cozinha por António Loureiro as amuse-bouche foram servidas em forma de Tartelette de atum, com manga, coco e alga Nori (fresca, doce e untuosamente marítima); Bolo Lêvedo dos Açores com mousse de queijo da ilha e ovas de robalo fumadas (que curiosamente me remeteu para os aromas da quinta, muito reconfortantes); Cannelloni de rabo de boi e cebolinho (crocante, intenso, rico e suculento); e Enchidos do Minho com couve portuguesa e flôr de alho (generosos, fumados e com uma vegetalidade que os enriqueciam).

A Cozinha por António LoureiroCom o palato desperto, seguiu-se a Enguia & Trufa que metaforizou num prato o conceito humami: é saboroso, é intenso, é rico e é viciante. Mas para além de tudo isto, combina de modo magistral a carne acidulada da enguia com a nobreza organoléptica da trufa. Tão bom quanto inesperado e original. A Sopa de peixe & bivalves, com gamba da costa, bivalves e caviar,  parecia ser o resultado de uma redução de mar, muito densa, rica e intensa. O caviar não roubava protagonismo ao marisco, acrescentando-lhe complexidade, untuosidade e uma vincada salinidade que lhe assentava muito bem. Em conjunto é uma criação que exibe equilíbrio, ponderação e muito sabor!!! A apresentação é digna de museu.

A Cozinha por António LoureiroO Bacalhau & Bacalhau (samos, língua e tapioca) trajou o fiel amigo de gala, com fraque, gravata e espuma, num prato que organolepticamente respeita a memória e tradição que temos desse peixe. É intenso, rico, delicado, saboroso, equilibrado e voluptuoso. Mas é sobretudo genuíno, generoso e alegre. O detalhe da "espécie de patanisca" crocante acrescenta ainda mais familiaridade ao prato. Uma delícia!!! Por sua vez, o Mar português & Bulhão pato, com peixe da costa, ameijoa e brioche com coentros, trouxe para a mesa outra característica do Chefe. A preocupação (quase obsessiva) com o detalhe.  O peixe estava cozinhado no ponto, a apresentação desafiante e imaginativa colocava-nos no mar e na espuma das suas ondas, e os citrinos uniam todos os ingredientes. Fazendo jus ao nome do prato, ali viviam as mais puras recordações do mar português e das suas gentes. 

A Cozinha por António LoureiroPassando para a carne, o Coelho do campo com puré de feijão e gelatina de cenoura brindou-nos com um coelho delicado, tenro, suculento e saboroso. Mas para além disso teve o condão para remeter para uma monumental epopeia sobre memórias que me sentou de novo à mesa com os meus pais e irmão umas décadas atrás (não acredito que já envelheci o suficiente para poder dizer estas coisas :-P). Voltei a viver aqueles dias de menino, em que passava o inverno na aldeia, povoada de frio, nevoeiro, cheiros, sons e sensações, quase que era capaz de vos jurar que este coelho tinha o aroma da caruma que ardia na fogueira feita pelos meus avós. O Corço, abóbora & cogumelos, com lombo de corço do Gerês, cogumelos, terrina de abóbora e batata tinha um sabor pleno e intenso, que se derretia na boca, solidificando, mais tarde, na nossa memória. Havia a doçura e acidez do molho, havia o humami dos cogumelos, havia a untuosidade da terrina e havia também a generosidade do Corço. O detalhe da "castanha" encarna bem o ensaio sobre o ser.

A Cozinha por António LoureiroNas sobremesas, a pasteleira Maria Barroso brindou-nos com Citrinos & pistáchios (cremosa, delicada, doce, fresca, untuosa e texturalmente rica), e com Chocolate, pera & frutos secos. Este ultimo, consistia numa espécie de salada de frutos secos, café, chocolate, baunilha e pera, que ganhou complexidade ao nível da textura, apresentação, sabor e harmonia. Muito bem conseguida e extremamente prazerosa. Um hino à vida, aos sabores ricos e à boa comida, onde o chocolate é rei... Falta falar do elemento aglutinador de todos estas diferentes partes que vos fui falando d'A Cozinha ... o amor que se serve em cada prato.

A Cozinha por António LoureiroAmor pela gastronomia, pelas origens e pelo que somos. Só o amor pelo aquilo que fazemos permite ao Chefe António Loureiro conceber pratos, com tantos elementos, com tantas texturas, com tantas cores, com tantos contrastes, com tanta dedicação, com tantos detalhes. Tem ao lado a esposa Isabel que lhe permite ser um pouco mais todos os dias e uma equipa (parabéns Hélder Silva e Patrícia) que lhe permite ambicionar algo ainda maior que o que já alcançou em Guimarães.

São especialistas, em tudo aquilo que não se vê com o olhar.