"Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Fica no cimo de Portugal..." Miguel Torga
Miguel Torga imortalizou o Douro como "um excesso da natureza". Eu acho que não há melhor caracterização que essa, um rio bravio, dos rabelo, do vinho e das vinhas, que deambula por vales apertados e protegido por socalcos suportados por muros em pedra posta.
A 10ª edição do Festival do Vinho do Douro Superior permitiu-nos passar das palavras Torga para um dos postulados de Einstein: o do tempo ser relativo. Em 1905 Einstein afirmou que tempo e espaço eram relativos, estando profundamente entrelaçados. Essa relação pode fazer, não só com que o tempo passe mais rápido para uns e mais devagar para outros, mas também surgir universos paralelos. Esse namoro entre tempo, espaço e simultaneidade de universos é também encontrada no Douro.
Porquê? Porque o Douro está em toda a parte ao mesmo tempo, banhando as caves do vinho do Porto em Gaia e beijando, no mesmo instante, as margens do Meão, em Foz Côa. Está na Serra de Urbión onde nasce e simultaneamente na foz onde toca o Atlântico. Desta forma, ele liga através da água, passado, presente e futuro.
Para Miguel Torga, a beleza do Douro era menos científica. Ainda hoje é uma surpresa que o Douro, esse mesmo das temperaturas elevadas, das encostas íngremes carregadas de estevas e zimbros, da chuva austera, da terra grossa e com xisto, da geada mortífera e das cheias abruptas, dê bom vinho. Mais que uma surpresa, assume-se como uma dádiva às gentes durienses, às protectoras desse reino maravilhoso de que vos vou falar hoje.
A visita deste ano a este grande oceano megalítico começou com a participação no Concurso de Vinhos do Douro Superior, que decorreu no âmbito do Festival do Vinho do Douro Superior e que elegeu os melhores vinhos nas categorias de vinhos brancos, vinhos tintos e vinhos do Porto, entre 200 vinhos em competição.
Terras do Grifo Vinhas Velhas 2018 (brancos), Avô Escrivão Grande Reserva 2019 (tintos) e Quinta de Ervamoira Vintage 2020 (vinhos do Porto) foram os eleitos que se destacaram nas respectivas categorias.
Para além dos 3 vinhos vencedores foram, ainda, anunciadas 63 medalhas, 19 na categoria de brancos (6 Ouro e 13 Prata), 37 na categoria de tintos (12 Ouro e 25 Prata) e 7 na categoria de vinho do Porto (2 Ouro e 5 Prata), o que reflecte a qualidade dos vinhos em competição.
A edição deste ano do Festival do Vinho do Douro Superior, que decorreu nos dias 26, 27 e 28 de Maio, no EXPOCÔA – Centro de Exposições desta cidade da sub-região do Douro, alcançou um número recorde de visitantes, com cerca de 7500 pessoas, apesar da chuva e do final do campeonato de futebol.
Foi Organizado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa com a produção da ‘Grandes Escolhas’ e Contou com a presença da Ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa e do Presidente do Município de Foz Côa, João Paulo Sousa.
As actividades paralelas, no decorrer do evento, foram também muito participadas pelos visitantes, como foi o caso das provas comentadas e do showcooking que tiveram mesmo lotação esgotada, bem como a animação do certame e os concertos, igualmente com um recorde de assistência.
O cartaz musical contou, este ano, com nomes como Rui Luna no momento de abertura, Marisa Liz na sexta-feira à noite e Rui Veloso no sábado à noite, que tornaram este certame ainda mais abrangente. O programa destinado à imprensa contemplou ainda a visita a 3 produtores da região.
Começamos pelos vinhos da Quinta da Vineadouro em Numão, que produz vinhos do Douro Superior com base numa história com mais de 250 anos. São vinhos feitos segundo uma viticultura sustentável, que recorre a doses mínimas de tratamentos e adubações com respeito pela Natureza, e a uma enologia minimalista, que respeita o sentido de lugar, a história e a herança dos antepassados.
Destaco o Vineadouro Branco Special Edition 2021 (21.00 €, 89 pts.) com notas frescas de acácia lima, flor de limoeiro, limão e anis, e uma boca com uma acidez alegre, equilibrada e muito gastronómica; e o Vineadouro Vinhas Antigas Reserva Tinto 2019 (34.00 €, 90 pts.) com aromas de frutos silvestres, ameixa vermelha madura, pedregosidade, cravinho e alcaçuz, e um palato austero, fresco, harmonioso e com taninos redondos.
Seguiu-se Pedro Garcias e os vinhos Mapa. Pedro Garcias, jornalista e crítico de vinhos no jornal Público, deu início há mais de 15 anos, juntamente com a mulher Cristina Costa, ao seu projecto vínico em Muxagata, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, terra celebre pelos extraordinários vinhos que produz.
Um projecto familiar que produz vinhos de grande qualidade ligados à terra, com recurso unicamente a castas do Douro que reflectem a diversidade e a riqueza do lugar: vinhos de altitude, minerais, frescos, secos e altamente gastronómicos. Por tudo isto o número de garrafas é muito limitado, em que todas elas carregam o ADN organoléptico do local onde nasceram.
Gostei especialmente do Mapa Branco 2020 (11.00 €, 89 pts.) cheio de maçã verde, limão, anis, acácia lima, flor de limoeiro, pedregosidade e frescura; surpreendi-me com o Mapa Tinto Reserva Especial 2017 (45.00 €, 92 pts.) e a sua fruta fresca (amoras, mirtilos, framboesas), esteva, cacau, canela, grafite, baunilha, cardamomo, austeridade, finesse e complexidade; e apaixonei-me pelo Mapa Branco Vinha da Muxagata 2018 (45.00 €, 93 pts.) devido à sua generosidade na fruta (alperce, lima, maracujá), barrica super bem integrada e acidez estonteante, mordaz e penetrante.
Já no último dia do evento visitamos a Quinta do Gravançal, localizada entre as terras da Abelheira e Gravançal. Está exposta em “abicheiro”, como quem diz, virada a norte – predominantemente – mas também a nascente e a poente, protegendo e potenciando, em harmonia, a vitalidade e longevidade das vinhas para produção de uvas de altíssima qualidade.
Classificada de letra A, numa variação de cotas superior a 150m, privilegiaram-se 3 castas tintas: Touriga Francesa, Tinta Roriz e Tinta Barroca, à qual se entretanto se juntou a Touriga Nacional. Das castas brancas prevalecem o Rabigato, o Viosinho e a Malvazia-fina.
Gostei do Quinta do Gravançal Grande Reserva Branco 2019 (24.00 €, 89 pts.) com notas de limão, limonete, flores silvestres, noz moscada, baunilha, intensidade, frescura e untuosidade; e do Quinta do Gravançal Grande Reserva Tinto 2019 (24.00 €, 90 pts.) com fruta farta (frutos silvestres, cereja, cassis ), esteva, caril, corpo denso e estrutura firme e elegância.
Dos vinhos em prova na Feira, destaco a fruta fresca (morango, cereja, framboesa e amora), notas florais (violetas e rosas), bolha fina e acidez vincada do Espumante Quinta dos Castelares Cuvée Pinot Noir 2020 (24.99 €, 89 pts.); e dos citrinos, flores silvestres, baunilha, untuosidade, finesse e acidez vibrante do Dona Berta Vinha Centenária Reserva Branco 2019 (29.99 €, 91 pts.).
Passando para os tintos, gostei muito dos frutos silvestres, café, bergamota, acidez salivante e complexidade do Quinta do Romanos In memoriam Reserva 2010 (69.99 €, 93 pts.); da fruta preta, tabaco, cacau, pimenta preta, austeridade, acidez equilibrada e profundidade do Quinta das Mós Grande Reserva Sousão 2020 (29.99 €, 91 pts.); dos frutos silvestres, sous-bois, baunilha, fumo, frescura, elegância e taninos de veludo do Proibido Tinto Marufo 2021 (20.00 €, 90 pts.); e da esteva, amoras, framboesas, caixa de tabaco, baunilha, complexidade, frescura e equilíbrio do Quinta do Vale Meão 2020 (200.00 €, 98 pts.), um vinhaço!!!
Nos Porto, sobressairam o Quinta do Crasto 20 anos Tawny (60.00 €, 92 pts.) com as suas uvas passas, melaço, figos secos, canela, intensidade, finesse e equilíbrio; e o Burmester 40 anos Tordiz Tawny (100.00 €, 95 pts.) cheio de figos secos, caramelo, crème brûlée, avelã, cacau, mel, densidade, requinte e complexidade, este é um vinho que nunca mais acaba.
Foi um grande festival, carregado com com pessoas extraordinárias que cantam, dançam e trabalham o vinho do Douro. São as mesmas pessoas do trabalho nas margens do rio de oiro, lá em baixo, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca. Depois erguem-se os muros do milagre. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.
Miguel Torga disse que as pessoas que ficam naquele Reino Maravilhoso, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se na cama com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. Descanso? Esse, apenas o vão ter na eternidade, mas se na eternidade não houverem socalcos nem vinhedos para contemplar, tenho a certeza que as gentes durienses não têm pressa em lá chegar. Se quiserem saber um pouco mais deste reino maravilhoso, não há que enganar, fica no cimo de Portugal.
Até à próxima, neste, ou noutro universo paralelo, desde que lá haja vinho :-P