Seixo by Vasco Coelho Santos | Rigor de Perdição
"Ao pé de um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma.” Camilo Castelo Branco
"Amava Simão uma sua vizinha" é uma das mais conhecidas frases da literatura portuguesa, imortalizada pelo grande Camilo Castelo Branco, naquela que é a sua mais famosa obra. Mas, na verdade, não era sobre Simão que Camilo falava, antes sim, de si próprio e da sua bela história de amor.
Essa história, entre Camilo Castelo Branco e Ana Plácido, é daquelas que merece ser contada, com tempo. No distante ano de 1858 o casal colocou a cidade do Porto num autêntico alvoroço, através de um romance escandaloso, que contrariava os bons costumes e a moralidade vigente na invicta de então.
Camilo Castelo Branco e Ana Plácido conheceram-se em 1839 quando Camilo, já um escritor de renome, viajou para Vila Real para resolver assuntos familiares. Ana Plácido, uma jovem mulher, tornou-se sua vizinha e os dois desenvolveram quase instantaneamente uma insaciável atracção mútua.
Depois deste feliz acaso os ter juntado, Camilo e Ana, trocaram inúmeras cartas apaixonadas, muitas delas marcadas por uma densidade emocional muito grande, quase a roçar o irracional, cheias de sofrimento afectivo e de descrições pormenorizadas das lutas que ambos acabariam por enfrentar.
Esta relação tumultuosa foi marcada por inúmeros obstáculos, entre eles o "pequeno pormenor" de Ana Plácido ser casada e mãe de família (um detalhe, portanto, meu caro Camilo :P). A sociedade portuguesa nesse tempo (as coisas entretanto não mudaram muito) não estava moralmente preparada para aceitar um relacionamento aberto entre duas pessoas casadas, sendo mesmo o adultério considerado um crime.
Denunciados às autoridades pelo marido de Ana Plácido, Manuel Pinheiro Alves, Ana Plácido foi presa a 6 de Junho de 1860 e acusada adultério. Camilo Castelo Branco num primeiro momento consegue fugir à justiça, mas acaba por se entregar a 1 de Outubro, sendo imediatamente acusado de“cópula com mulher casada”.
O julgamento tardou mais de um ano, o que fez com que o casal estivesse detido na Cadeia da Relação do Porto (onde actualmente se encontra o Centro Português de Fotografia). É precisamente lá que Camilo escreve o seu mais famoso famoso romance, “Amor de Perdição”, em apenas 15 dias!!!
Quando o julgamento finalmente chega, o casal é absolvido por falta de provas da tal "cópula com mulher casada”. Já agora, que tipo de provas estaria o júri à espera? :P Depois de absolvidos do crime de adultério, em 16 de Outubro de 1861, Camilo e Ana Plácido passam a viver juntos, mudando-se para a casa do falecido marido de Ana, em Famalicão, onde viveram o resto das suas vidas.
Toda esta batalha pelo amor e os desafios emocionais que Camilo enfrentou na sua relação com Ana Plácido, tiveram um impacto muito significativo na sua obra literária. É por isso que muitos de seus romances, incluindo "Amor de Perdição", acabam por reflectir as complexidades do amor, as barreiras sociais e os conflitos internos que o amor por vezes desperta.
A obra bebe alguns aspectos num caso verídico, ocorrido com um senhor que Camilo conheceu na prisão. O livro centra-se principalmente na relação amorosa entre Simão Botelho, de 17 anos, e Teresa de Albuquerque, sua vizinha de 15 anos, que tal como a sua relação, também havia sofrido com a crítica social (apesar de ambos pertencerem a famílias de origem fidalga, Simão tinha uma maior afinidade para com as pessoas do povo, coisa que era mal vista pela família de Teresa).
Desta forma o livro acaba por ser um pouco auto-biográfico, no que ao tema do amor impossível diz respeito, abordando ainda outros temas como a intensidade das emoções humanas, os conflitos sociais e as limitações da vontade individual diante das convenções e normas sociais. Todas estas temáticas são enriquecidas com um "personagem" que há primeira vista/leitura pode passar despercebido: o Rio Douro.
Embora a maior parte da acção decorra em Viseu e no Porto, o Douro vinhateiro é mencionado ao longo da obra, principalmente através das reflexões dos personagens e das cartas trocadas entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque. A beleza selvagem do Douro e das suas paisagens românticas são frequentemente evocadas na obra para simbolizar não somente o seu amor ardente mas também para impulsionar literariamente a intensidade das emoções que os protagonistas sentem um pelo outro.
Por outro lado, as descrições da natureza e do rio Douro também ajudam a criar um ambiente romântico-trágico, contribuindo para a atmosfera "desconfiada" da história. Assim, o Douro funciona quase como um sal literário que realça as sensações, as emoções, os sentimentos, as angústias e os desejos que Camilo nos quer transmitir.
Hoje falo-vos de um restaurante que usa a mesma receita, a do poema geológico, a da beleza absoluta (passando agora por Torga), para engrandecer a sua proposta gastronómica: o Seixo by Vasco Coelho Santos, na Quinta do Seixo. Para além do Douro, a memória e os sabores regionais são os outros dois pilares que sustentam o Seixo by Vasco Coelho Santos.
Naquela nova cozinha do Chef Vasco Coelho Santos (esse mesmo do Euskalduna Studio e do SEMEA by Euskalduna), o rio Douro e as suas vinhas centenárias assumem-se como um magnífico pano de fundo. O objectivo principal do Seixo by Vasco Coelho Santos é harmonizar conforto e tradição com uma explosão de sabor e emoção.
No menu, a ênfase recai sobre a sazonalidade e a sustentabilidade. Os ingredientes locais e nacionais desempenham um papel proeminente, entrelaçando-se com as narrativas das pessoas e da terra. O cliente é gentilmente convidado, em diversos momentos, a desfrutar não apenas da culinária, mas também a apreciar a beleza da paisagem circundante.
A nossa experiência começou com um Pão de massa mãe (de sabor levemente ácido, cheio de complexidade aromática - nozes e notas florais, e com crosta crocante e miolo macio) e azeite casa Ferreirinha e com uns Croquetes de rabo de boi, robustos, carnudos, intensos e com um sabor delicioso de carne grelhada.
Prosseguiu com Mexilhão escabeche, onde sabor agridoce e picante do molho escabeche contrastava na perfeição com o sabor salgado e marinho do mexilhão e da salicórnia. Os coentros frescos pincelavam tudo isto com uma nota herbácea refrescante que equilibrava os sabores mais intensos. As diferentes texturas engrandeciam o prato, muito simples, fresco, directo, prazeroso e alegre.
Entretanto surgiram na mesa umas Almôndegas para as crianças, dado que não as provei não vos posso transmitir muito sobre elas, no entanto, a Bia e o Gui "limparam tudo", acho que não deveriam de estar muito más... :P
O Robalo e açorda de gambas criava uma bela harmonia entre a terra e o mar, onde a combinação do robalo (suave e delicado) com as gambas (intensas e com um certo adocicado resultante da grelha) evoca um sabor marinho, enquanto a açorda trazia umas notas mais terrosas, reconfortantes e untuosas. Tudo muito equilibrado, cheio de sabor e com texturas complementares.
Na carne, chegou o meu prato favorito deste almoço: Vitela e arroz de forno a lenha. Um exagero organoléptico cheio de tudo, onde a combinação entre os elementos mais ricos e defumados do arroz de forno, quase confitado, com a carne suculenta e voluptuosa da vitela proporcionaram um experiência gastronómica que conseguia ser ao mesmo tempo rústica/tradicional e elegante/equilibrada. É um prato, que só de o descrever, já me faz salivar :P
Nas sobremesas, gostei muito da Torta de laranja e chocolate onde o sabor cítrico e refrescante da laranja combinava muito bem com a riqueza e doçura do chocolate; e do Pão de Ló e queijo de cabra que oferecia uma interacção prazerosa entre o doce e o salgado.
Esta última proposta gastronómica acabou por servir de metáfora para a cozinha que o Chef Vasco Coelho Santos propõe no Seixo. Uma cozinha assente na tradição, propulsionadora de contrastes, indutora de momentos de partilha, alegre, descomplicada, mas assente, sempre, no rigor. É tudo isto, mas sem perder o "ADN Vasco" que o catapultou para as luzes da ribalta, o da coerência, o da complexidade disfarçada de simplicidade, o da extracção máxima de sabores, o da brasa, o dos toques defumados e o de algumas pitadas irreverentes de influências de cozinhas além-fronteiras.
A excelência gastronómica emerge, também, quando um Chef se consegue adaptar ao contexto onde cozinha e perceber o terroir onde se encontra um determinado restaurante. Isso faz com que consiga sacar desse lugar aquele sal gastronómico-literário que vos introduzi com Camilo Castelo Branco, que acaba por elevar a um patamar ainda mais alto aquilo que nos é servido no prato. O Vasco faz isso muito bem no Seixo, um restaurante com sentido dedicado aos sentidos, que, por tudo o que vos disse, merece a vossa visita.
Para o final da refeição e para se embeberem ainda mais nesse contexto sócio-cultural, aconselho-vos uma visita à Quinta do Seixo, uma propriedade com origem no século XVII, adquirida pela Sogrape em 1987. Essa visita, cheia de mistério, destaca-se também pelo design da adega e seus lagares robóticos, finalizando com uma oferta de harmonização de vinhos e gastronomia num ambiente contemporâneo, com uma vista absolutamente arrebatadora e única para o Douro.
Das provas, a Tawnies Velhos (10, 20, 30 e 40 Anos - um século de Tawnies) vale bem a pena (o 40 anos é soberbo, cheio de baunilha, caixa de tabaco, crème brûlée e um equilíbrio enorme), assim como não podem deixar de experimentar o enorme Quinta do Seixo Vintage 2019, com notas de pimenta preta, acácia-lima, lagar, amora, sous-bois, cacau e um boca densa carregada de frescura, mineralidade e taninos austeros). Estes dois vinhos mostram o que de melhor o Vinho do Porto tem para oferecer.
Assim, o Seixo by Vasco Coelho Santos para além de uma proposta gastronómica assente numa tradição reinterpretada com originalidade, coerência e rigor, também é uma óptima desculpa para visitar a Quinta do Seixo que nos permite desfrutar da beleza natural do Douro, aprender sobre a produção de vinho do Porto, degustar vinhos de qualidade e mergulhar na rica história e cultura da região. Já agora, porque não ler umas páginas do "Amor de Perdição" com um Tawny 40 anos na mão e o Douro como testemunha? :P