"Há expressões da actividade humana – seja na arte, na literatura ou música – que achamos que são perfeitas. E depois há aquelas que são inesquecíveis. E estas são as que, podendo não ser perfeitas, mostram um carácter e uma personalidade tão vincada que sabemos logo que são inconfundíveis e inimitáveis." Manuel Guedes

O ano em que nascemos é apenas um número, totalmente irrelevante, a não ser que sejámos uma garrafa de vinho...
1937...

Segunda-feira, 15 de Março, 10h00, Chicago, EUA. Um médico judeu, húngaro-americano, de nome Bernard Fantus está prestes a salvar uma parte considerável da humanidade, sem eufemismos. Formado em farmacologia e medicina, a sua ideia revolucionária de um “laboratório de preservação de sangue” acaba de abrir no Cook County Hospital, com o objectivo de resolver o que era, na altura, um problema recorrente nos hospitais.

Segunda-feira, 26 de Abril, 16h30, Guernica, Espanha. Bombardeiros alemães reduzem esta cidade Basca a cinzas. O ataque aéreo de três horas tira a vida de 1.645 pessoas. Uns meses depois, no dia 12 de Julho é exposta ao público pela primeira vez o quadro "Guernica", na qual Picasso retrata o bombardeamento da cidade. O quadro é exposto no pavilhão da República Espanhola na Exposição Internacional de Paris. Conta-se que um oficial das SS que marcou presença nessa feira lhe terá perguntado, apontando para a pintura: "Foi o senhor que fez isso?". Picasso respondeu: "Não, foi o senhor".

Quinta-feira, 6 de Maio,19h21, Nova Jérsia, EUA.  Depois de uma viagem desde Hamburgo na Alemanha, e ao tentar atracar com seu mastro de amarração na Estação Aérea Naval de Lakehurst, o Hindenburg, o Titanic dos céus, um dirigível que ainda detém o recorde de maior nave que alguma vez voou, pega fogo. A bordo estão 97 pessoas (36 passageiros e 61 tripulantes). Morrem 36 pessoas (13 passageiros e 22 tripulantes, 1 trabalhador no solo). Acaba ali a era dos dirigíveis e inicia-se a dos aviões...

Domingo, 4 de Julho, 8h43, Howland Island, Nova Guiné. Houve-se a última transmissão de rádio de Amelia Earhart: "Estamos na linha 157 337".  A sua voz, naquele momento cala-se para sempre. Acabara de viajar 35.000 km, partindo de Oakland na Califórnia. Faltavam pouco mais de 10.000 para completar a volta ao mundo em avião, o seu objectivo.

No mesmo dia, às 10h20, na Rua Barbosa du Bocage, em Lisboa, António de Oliveira Salazar prepara-se para sair da sua viatura oficial, um Buick, estacionado em frente à casa do seu amigo Josué Trocado, em cuja capela privada costumava assistir à missa de Domingo. De repente, uma enorme explosão atroa os ares, assusta os vizinhos e esventra a rua. Fumo, pedras, lajes e placas voam pelos ares. Abre-se uma cratera larga e funda na rua. A perplexidade é total!!!

Quarta-feira, 7 de Julho, 14h00, Israel. A Comissão Peel, encabeçada por Lord Robert Peel, acaba de publicar o seu relatório. Nele é defendido que os objectivos judaicos e árabes na Palestina eram incompatíveis, propondo, para preservar a paz, que a Palestina fosse dividida em três zonas: um estado árabe, um estado judeu e um estado neutro que englobaria os lugares sagrados para ambas as crenças. Esta saga continua, infelizmente, actualmente.

Quinta-feira, 30 de Setembro, 15h30. Acaba de ser colocado o último dos 3047 azulejos que compõem os 24 painéis da estação do Pinhão.  Foram produzidos na Aleluia Cerâmicas (Aveiro) e são da autoria de João Oliveira. Estes painéis cobrem a quase totalidade das paredes do edifício principal e representam as diversas fases da produção do vinho do Porto, desde as vindimas ao pisar das uvas, passando pelo transporte do vinho em barcos rabelo pelo rio Douro até às caves em Vila Nova de Gaia. Ali ao lado, a Casa do Douro dá início aos serviços cadastrais para que, conhecendo as características das uvas de uma determinada propriedade e baseando-se em dados concretos, se pudesse realizar correctamente a distribuição do benefício.

Terça-feira, 21 de Dezembro, 20h30, EUA. Uma rainha malvada corrói-se com ciúmes da beleza de uma menina tão clara quanto a neve e manda mata-la. Mais tarde, descobre que a jovem não morreu e está escondida na floresta com sete pequenos amigos. A princesa é então envenenada pela rainha e só o beijo de um príncipe a pode salvar. Antes da "moda" do movimento woke era assim que os espectadores assistiam, pela primeira vez, à exibição cinematográfica da produção de Walt Disney, Branca de Neve e os sete anões.

Partindo de 1937, passamos pela condenação de Nelson Mandela a prisão perpétua por terrorismo em 1964; pelos protestos estudantis de Maio de 1968; pelo ano dourado da música de 1971 com os Rolling Stones, Janis Joplin, Elton John, Marvin Gaye, Elis Regina, Paul McCartney, The Who, Carlos do Carmo, ou os Black Sabbath; pela aprovação da Constituição portuguesa em 1976; pela clonagem da Ovelha Dolly em 1995; pela mudança de milénio em 2000,  pelo início da lenda CR7 na inauguração do novo Estádio de Alvalade em 2003 (sim, já lá vão 20 anos!!!); pelo acordo entre Israel e a Autoridade Palestiniana para o estabelecimento de um cessar-fogo em 2005 (!!!); e pela tomada de posse do primeiro presidente afro-americano dos EUA, Obama em 2009. De caminho, e como se não fosse já suficiente, passamos pela Segunda Guerra Mundial.

Era uma vez um ano... um vinho...
Na escuridão sedutora, silenciosa e empoeirada de uma cave no Douro, um pequeno pipo descansa embalado pela melancolia do momento. Nele, para além das memórias de todos os acontecimentos anteriores, estão guardadas esperanças de provador, segredos de alquimista, sonhos de produtor. O liquido escondido nesse pipo não vai proporcionar apenas a quem o vai beber sabor, introspecção e alegria.

Com todo este peso histórico, quando abrimos uma garrafa ou provamos um bom vinho, viajamos no tempo. O vinho é muito mais do que cepas, socalcos, uvas e fermentações, parte dos seus encantos é esta humanidade aprisionada numa garrafa de vinho. Como refere Ana Sofia Fonseca no seu livro Cada garrafa conta uma história, cada vinho carrega amores e ódios, acidentes, descobertas, podas, músicas, guerras, fantasmas e colheitas. Para além da físico-química, são as histórias e os momentos que ele nos proporciona que tornam um vinho único.

É por isso que há algo de mágico em beber um vinho que iniciou a sua jornada muito antes de nascermos e que tenha (sobre)vivido a tanta(s) história(s) : somos transportados "memório-ornolépticamente", através de uma cápsula do tempo líquida, para uma era anterior ao nosso choro natal. Se a tudo isto acrescentarmos vinhos que não só aguentam, como crescem com as rugas do tempo, estão criadas as condições para uma prova memorável, como aquela que o Paulo Cruz levou a cabo no Porto Extravaganza 2023: A excelência dos Vinhos Colheita da Quinta do Noval de 2009 a ... 1937. Evento que ocorreu na Casa Dos Penedos em Sintra, uma mansão palaciana do século XX projectada pelo renomado arquitecto português Raul Lino, cheia de romances e contos míticos do passado, charme e bom gosto. Para uma prova histórica ... um edifício histórico.

As provas organizadas pelo Paulo são sempre aquelas cujas publicações tardam mais (esta realizou-se a 12 de Março) e aquelas nas quais tenho mais dificuldade em encontrar o enquadramento histórico-cultural, característico das minhas crónicas. Isto tem muito a ver com a dificuldade em passar para letras a enormidade de sensações absorvidas, sejam elas mais (prova) ou menos objectivas (a tal história que cada garrafa carrega).  

Escolhi esta (não tão) breve contextualização para metamoforizar as dificuldades e sucessos que a humanidade foi encontrando enquanto um liquido precioso se escondia naquele pipo sedutor, silencioso e empoeirado. A sobrevivência humana e a maturação de um vinho em barrica podem parecer, à primeira vista, mundos distintos, mas na verdade compartilham algumas semelhanças notáveis. Ambas as experiências envolvem o processo de envelhecimento, paciência e a busca, mais ou menos intencional, pela excelência, podendo-nos ensinar lições proveitosas sobre como a passagem do tempo pode aprimorar e enriquecer a qualidade das nossas vidas.

Assim, como os seres humanos enfrentam desafios e adversidades ao longo das suas vidas, os vinhos também passam por um período de "adversidade" quando são colocados em barricas de carvalho. As barricas representam um ambiente hostil para o vinho, onde as condições de armazenamento, como temperatura, humidade e até mesmo o contacto com o oxigénio, podem parecer desfavoráveis.

 Assemelha-se aquele momento em que deixámos de receber o oxigénio pelo cordão umbilical e dá-mos aquela primeira inspiração já fora da barriga da nossa mãe. No entanto, é exactamente nesse contexto desafiador, novo, quiçá até desconfortável, que vinho e pessoa começam a sua jornada de enriquecimento e transformação. Com paciência, tempo e resiliência, podemo-nos tornar melhores e mais refinados. :P

Assim como alguns vinhos precisam de anos para desenvolver as suas complexas camadas de sabor, os seres humanos muitas vezes precisam de tempo para amadurecer, aprender com os erros e experiências, e crescer em sabedoria. A paciência ensina-nos a apreciar o valor do tempo e a compreender que, às vezes, as coisas mais valiosas requerem um período de incubação antes de atingirem a sua excelência. Chegados aqui, é a hora de tentar passar para palavras o que todo esse contexto, todo esse tempo, todo esse enriquecimento fez aos vinhos.

O âmbar Quinta do Noval Colheita 2009 (59.90 €, 94 pts.) brinda-nos com alcaçuz, telha de amêndoa, frutos silvestres frescos, chocolate e noz-moscada. Na boca é fresco, rico, intenso e mostra um final longo e vincado. Por sua vez o também âmbar Quinta do Noval Colheita 2007 (79.90 €, 95 pts.) exibe no nariz cereja, uvas passas, cacau, resina, pimenta branca, pinho e alguma pedregosidade. Na boca é complexo, equilibrado, fresco e fino.

 O Quinta do Noval Colheita 2005 (69.90 €, 93 pts.), laranja-âmbar, apresenta-se com figos secos, nozes, cereja e alcaçuz. Na boca é super elegante, longo, vivo, focado e com uma doçura ponderada. Já o Quinta do Noval Colheita 2003 (69.90 €, 93 pts.) trouxe para a sala ameixa vermelha, cereja, amêndoa amarga, fumo e caixa de tabaco. No palato passeia fresco, poderoso, persistente, elegante e frutado.

O âmbar torrrado Quinta do Noval Colheita 2000 (79.90 €, 94 pts.) carrega nozes torradas, crème brûlée, uva passas, figos secos, café e pimenta preta. Na boca tem uma acidez vibrante, é longo, quente, equilibrado e ligeiramente picante. O jogo que promove entre doçura e acidez é espectacular. O castanho alaranjado Quinta do Noval Colheita 1997 (179.90 €, 96 pts.) galanteia-nos com ameixa preta, casca de laranja, uvas passas, café e rosas. Na boca é especiado-picante, intenso, focado, musculado e muito longo.

Com o rubi-acastanhado-alaranjado Quinta do Noval Colheita 1995 (209.90 €, 96 pts.) dá-se um salto na evolução/complexidade. Exibe no nariz alperce, casca de laranja, figos secos, caramelo e avelã. Na boca é imensamente rico, intenso, equilibrado, cheio, denso e longo. Os frutos secos com que termina não querem sair do nosso palato.

O amarelo-acastanhado-alaranjado Quinta do Noval Colheita 1976 (369.90 €, 97 pts.) promove mais um salto ao nível da complexidade. Caramelo, resina, telha de amêndoa, acácia-lima, maçapão, baunilha e noz-moscada. No palato mostra uma acidez incrível, cremosidade, intensidade, harmonia e untuosidade. O âmbar-castanho-esverdeado Quinta do Noval Colheita 1971  (399.90 €, 97 pts.) mostra coco, cedro, nozes, caramelo, crème brûlée, Earl Grey, cravinho, anis e vinagrinho. No palato é harmonioso, equilibrado, voluptuoso, muito longo e exibe uma excelente acidez.

O Quinta do Noval Colheita 1968  (429.90 €, 98 pts.) veste um âmbar esverdeado muito sedutor que nos conquista com caramelo salgado, cedro, nozes, laranja cristalizada, ameixa seca, pedregosidade e notas metálicas. A boca é incrivelmente fresca, equilibrada, potente, elegante e surpreendentemente suculenta. 4 anos mais velho, o verde-acastanhado Quinta do Noval Colheita 1964  (499.90 €, 99 pts.) surge com verniz, resina, vinagrinho, melaço, caramelo, café e um inusitado caril. No palato é super elegante, longo, harmonioso, envolvente e persistente. 

Chegámos ao verde-marron Quinta do Noval Colheita 1937  (999.90 €, 100 pts.), um autentico "rebuçado de acidez"!!! Couro, figos secos, damasco caramelizado, maçã assada, amêndoa torrada, pedregosidade, figos secos e trufa. O paladar é super concentrado, balsâmico, delicado, harmonioso, longo e com uma bela acidez (sobre)viva. Há expressões da actividade humana – seja na arte, na literatura, música, ou nos vinhos – que achamos que são perfeitas. E depois há aquelas que são inesquecíveis. E estas são as que, podendo não ser perfeitas, mostram um carácter e uma personalidade tão vincada que sabemos logo que são inconfundíveis e inimitáveis. Este visto é um desses últimos casos.  Se cada garrafa conta uma história, a desta, ainda hoje a ouço...

Em 1937 Sintra vivia uma fase de grande desenvolvimento. Era a época dourada da Adega Regional de Colares, com o Dr. Brandão de Vasconcelos e Alberto Totta na direcção.  Ali ao lado, no Café Elite, haviam autênticas romarias para ver exposto o primeiro automóvel do concelho. 86 anos volvidos, a romaria repetiu-se, mas por outros motivos. De 1937 chega-nos também a publicação de um livro notável, "O Hobbit", escrito por J.R.R. Tolkien. Este livro é uma obra de fantasia que se tornou um clássico da literatura e serviu como prelúdio para a série "O Senhor dos Anéis", também escrita por Tolkien.

Em última análise, o anel do Senhor dos Anéis não é apenas uma relíquia histórica, é um símbolo de como a memória do passado, tanto das acções heróicas quanto das tragédias causadas pela corrupção e ganância, podem influenciar o presente e o futuro. O anel lembra-nos que é importante aprender com a história e que esquecer ou subestimar os eventos passados pode ter sérias consequências. Beber vinhos que cresceram durante essas curvas e contra-curvas da história, é um privilégio não apenas pelos aromas, texturas e sabores que nos oferecem, mas também pela herança cultural e contexto histórico que nos proporcionam.

 Uma última palavra (que o texto já vai longo) para o Paulo Cruz, o "senhor dos toneis", que para além de manter intactas todas as qualidades que lhe destaquei anteriormente na organização deste tipo de provas avassaladoras (qualidade, profissionalismo, exigência e bom gosto) tenta sempre acrescentar algo que engrandeça a experiência. Neste ano, o espaço escolhido para o Porto Extravaganza 2023 introduziu um contexto estético-paisagístico na prova muito difícil de bater e que nos remete para um certo misticismo. Muito obrigado e até uma outra viagem no tempo ;)