"O ouriço-do-mar é como o mundo: redondo, frágil, escondido, molhado, secreto e hostil. O ouriço-do-mar é como o amor." Pablo Neruda
Estamos naquilo que hoje em dia chamámos África do Sul, há 200-150 mil anos atrás, e existem apenas 900 hominídeos. A humanidade enfrenta uma extinção eminente. Mas como chegamos ao chamado gargalo populacional, aquele momento em que a humanidade quase se perdeu para sempre? Alguns dos nossos primeiros ancestrais humanos foram confrontados com um evento climático que mudou a vida como a conheciam. Registos fósseis sugerem que o planeta, nessa altura, entrou num longo período glacial. Isso expandiu os desertos, tornou a atmosfera fria e seca, e causou uma grande queda na população de uma espécie conhecida como Homo sapiens.
Esse evento climático que se revelou catastrófico para muitos Homo sapiens originou também um fenómeno interessante: a baixa diversidade genética da nossa espécie, que permaneceu até aos dias de hoje. Na nossa maioria somos o mesmo, pretos e brancos, altos e baixos, europeus e orientais, israelitas e palestinianos. Todos nós descendemos desses 900 Homo sapiens. Aliás, é por causa desse gargalo que somos das espécies animais que menor diversidade genética exibe.
Com base em provas fossilizadas, parece que todos nós podemos ser rastreados até esse pequeno gargalo. Devido à localização geográfica deste acontecimento fracturante, ocorre outra coisa extraordinária com esses 900: um aumento desmesurado dos cérebros do Homo sapiens e consequentemente da sua inteligência (tendo em conta a percentagem de peso corporal, o cérebro humano é 15 vezes maior do que o de um gorila).
Este grande cérebro é a característica definidora dos seres humanos, dando origem à nossa capacidade incomparável de pensar, lembrar, formar abstrações, ser ... humano. O professor Michael Crawford, do Imperial College de Londres, defende em vários artigos científicos, conferências e no seu livro sobre nutrição evolutiva, “The Driving Force”, que temos “evidências incontestáveis” de que esse rápido crescimento cerebral do Homo sapiens (e da nossa dependência do DHA, uma das gorduras ómega-3, para a saúde do cérebro) deveu-se provavelmente a uma dieta rica em produtos do mar, mais especificamente, marisco.
O professor Crawford desafia, deste modo, a ênfase dada à teoria do Homo sapiens caçador. Ele chama a atenção para o facto de que ainda hoje, com as ferramentas modernas, a caça na savana africana é um desafio que requer funções cognitivas complexas, isto para já não falar da fabricação de ferramentas muito precisas. O facto dos seres humanos poderem abrir marisco com uma simples ferramenta afiada, ou até mesmo esmagá-lo com uma pedra, tornou esta rica fonte de alimento disponível para os nossos primeiros antepassados (não estando acessível aos outros animais). Basicamente, precisamos de cérebro para caçar. E nos anos desse gargalo, ainda não tínhamos muito cérebro.
Esse pequeno bando de 900, expulso das planícies áridas e agrupado ao longo da costa sul-africana, tinha à sua disposição marisco, que empunhando pedras e ferramentas primitivas, conseguiam abrir e comer. Os primeiros restos humanos fossilizados da região de Pinnacle Point, na África do Sul, indicam claramente que o marisco era um alimento básico crucial da dieta ancestral, juntamente com as crias e os ovos de aves marinhas.
E os cérebros do Homo sapiens, já um pouco maiores que os de outros hominídeos, começaram a crescer rapidamente, e a partir daí sim, começarem a caçar. Tendo tudo isto em consideração, parece que os humanos foram salvos por mexilhões, amêijoas, vieiras, ostras e ouriços do mar.
Aquilo que hoje somos, devemos-o à genética, ao ambiente em que crescemos, à educação que fomos submetidos, à nutrição (ou à falta dela), à exposição frequente a estímulos cognitivos e a uma boa saúde mental. Mas a tudo isto, temos de juntar ... o marisco ;)
Aprendi grande parte do que vos escrevi acima, na procura de algo para vos contar acerca dos ouriços-do-mar. E porque é que era importante uma história sobre estes ouriços? Porque aquando da preparação da nossa visita à Tasquinha da Linda em Viana do Castelo, optou-se, ao contrário do que costumámos fazer, por colocar o foco nesse produto, mais concretamente na sua "versão" Arroz de Ovas de Ouriço-do-Mar. Sérgio Ramos, filho da dona Deolinda Ferreira, disse-nos que este era um prato que merecia ser desfrutado, com tempo, barriga e atenção.
A Tasquinha da Linda está localizada à beira do cais do Lima, ao lado do Forte de Santiago da Barra, num antigo armazém de pesca, transformado num magnifico restaurante onde serve os seus clientes com o melhor marisco e peixe fresco de Viana do Castelo. Sérgio dá também uns toques na sala e é o sommelier do restaurante. Oferece uma impressionante variedade de vinhos, totalizando mais de 350 referências, incluindo 40 da região dos vinhos verdes.
A mãe Deolinda, a Linda que empresta o nome ao restaurante, tem uma ligação quase umbilical ao mar, e sua herança familiar estende-se até seu bisavô, que também era pescador. Antes de entrar no sector da restauração, Deolinda Ferreira administrou uma empresa de venda e exportação de peixe. Toda esta experiência banhada a mar, muniu-a de uma vantagem significativa na selecção dos ingredientes que serve aos seus clientes, garantindo a máxima qualidade e frescura. Neste negócio familiar, é a filha Anaisa Ramos, pasteleira, que trata das sobremesas.
Mas voltemos aos ouriços, que foi por isso que fomos a Viana. Dentro dessas criaturas espinhosas em forma de globo há um canal alimentar simples e cinco grandes lóbulos de ovas. As ovas têm textura escorregadia, porém cremosa e amanteigada, com sabor fresco e salgado de frutos do mar, com um final limpo e subtil. Na Tasquinha da Linda usam-nas para fazer um arroz caldoso delicioso, que é, gastronomicamente, o mais próximo possível a darmos um mergulho no mar.
O rico e delicado Arroz de Ovas de Ouriço-do-Mar da Deolinda, encerra uma elegância, cuidado e intensidade de tal calibre que mereceram harmonização com um vinho de igual finesse e sofisticação, o Champagne Laurent Perrier Ultra Brut. Para já, leva o prémio de melhor harmonização do ano.
Para além deste Arroz de Ovas de Ouriço-do-Mar completamente assombroso, desfrutamos ainda da frescura de umas Amêijoas à Bulhão Pato (simples, marinhas, um pouco salgadas e ligeiramente adocicadas, cujo sabor era acentuado pelo alho e coentros, e equilibrado pelo limão: viciantes!!!) e de um Polvo à galega (saboroso, rico, untuoso e com uma textura incrível) como entradas e de uns deliciosos Chocolates Caseiros feitos pela Anaisa e harmonizados com um Sandeman 20 anos. Ainda assim, o Arroz de Ovas de Ouriço-do-Mar, roubou para si todo o merecido protagonismo. É daqueles pratos que justifica por si só uma viagem. Sabor, textura, tradição, saber, generosidade, requinte, intensidade e .... mar, muito mar. Eu pelo menos voltarei, com muita fome, para prestar homenagem aqueles que nos deram origem: os Homo ouriçapiens :P