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No meu Palato

No meu Palato

DOP - Chef Rui Paula | Nebulosa de memórias e outras histórias

"Não há nada como a respiração profunda depois de dar uma boa gargalhada. Nada no mundo se compara à barriga dolorida pelas razões certas."

 Stephen Chbosky.

DOP - Chef Rui PaulaNo seu (muito longo!!!) romance, Remembrance of Things Past, Marcel Proust apresenta-nos um homem que dá uma pequena dentada num queque mergulhado em chá. Nesse momento essa personagem é imediatamente transportado numa viagem através de uma memória longínqua, quase esquecida. É aqui que fica "patenteado" o “momento proustiano”, um vínculo bastante estreito entre palato e memória. Vínculo esse que não foi apenas uma criação literária da imaginação de Proust, pois, na verdade, existe uma ligação cientificamente comprovada entre as papilas gustativas e as nossas memórias.

DOP - Chef Rui PaulaUm estudo publicado em 2014 comprovou essa ligação directa entre a região do cérebro responsável pela memória gustativa e a área responsável por codificar a hora e o local em que experimentamos um determinado alimento. Além disso, ficou demonstrado que esse sabor fica tanto mais fortemente guardado na nossa memória quanto mais positivo for o acontecimento relacionado com esse sabor. É por isso que um simples pedaço de carne assada pode levar-nos de volta para os almoços de domingo da nossa infância: porque temos lembranças felizes associadas a essas refeições. 

DOP - Chef Rui PaulaDa mesma forma, um biscoito pode-nos transportar para o pote de biscoitos da nossa avó. Os exemplos empíricos desta relação entre sabor e memória são incontáveis. O modo como o nosso cérebro responde a essa estimulação sensorial é particularmente fascinante. Essa relação é ainda mais importante porque a medicina mostrou-nos recentemente que a estimulação sensorial (seja através de sons, de alimentos ou objectos do dia a dia), pode desencadear um resposta ou sentimento positivo através da memória, que por sua vez desempenha um papel significativo nos tratamentos mais inovadores para o Alzheimer ou a demência.

DOP - Chef Rui PaulaSe quisermos compreender plenamente a nossa ligação com a comida e a relação que esta tem com a nossa memória, temos forçosamente de recuar até às raízes do nosso passado. E nesse passado longínquo, com milhões e milhões de anos, encontrar comida não era propriamente fácil. Não haviam supermercados, feiras, mercearias ou restaurantes. Para piorar este cenário, as partes mais saborosas e nutritivas, a carne e o peixe, eram ainda mais difícil de obter. Como tal, começamos colectores, sobrevivendo a comer frutas, ervas e sementes. Nesse nosso início, tudo era sem graça, irracional, instintivo. 

DOP - Chef Rui PaulaNo cérebro dos nossos ancestrais estava presente sempre o mesmo mantra:  se não comeres morres!!! Então eles comeram e, felizmente, sobreviveram. Mas, assim como as nossas mentes e os nossos corpos começaram a evoluir, o mesmo aconteceu com a maneira como os nossos antepassados se relacionavam com a comida. Os humanos descobriram o sabor da carne há cerca de 2,6 milhões de anos. Curiosamente o cultivo de cereais surgiu há cerca de 12 mil anos, e é há apenas 10 mil anos que a agricultura entrou em cena.

DOP - Chef Rui PaulaToda esta evolução foi alimentada pela mente humana. Pela nossa curiosidade. Pela nossa criatividade. Pela nossa necessidade/vontade de estarmos juntos. Tudo isto porque há cerca de 10 mil anos, o nosso cérebro deixou de ver a comida apenas como uma necessidade básica e institiva. Para os seres humanos, o acto de comer deixou de ser apenas uma questão de sobrevivência, passou a significar preparar, criar, descobrir e compartilhar. Passou a ser sobre a alegria, sobre o amor e sobre a conexão com aqueles que mais queremos. E são exactamente essas ligações que influenciam o funcionamento da memória. 

DOP - Chef Rui PaulaNo seu livro The Omnivorous Mind, John Stuart Allen analisa antropologicamente essa poderosa ligação entre comida e memória. A certa parte do livro, Allen diz-nos que há uma região do cérebro, chamada hipocampo, que é crítica para a memória, pois tem fortes conexões com partes do cérebro que são importantes para a emoção e o olfacto. Assim, a comida está ligada tanto à emoção como ao cheiro, o que pode explicar porque a comida parece ser uma prioridade nas nossas memórias.

DOP - Chef Rui PaulaÉ por isso que quando nos deliciamos com uma bela feijoada, os aromas que emanam do nosso prato podem fazer-nos viajar no tempo para um jantar que estava engavetado no nosso hipocampo, mesmo que já não nos recordássemos dele conscientemente. Isto porque as memórias são mais fortes e mais fáceis de recordar quando estão ligadas a uma sensação física e fundamentadas numa experiência emocional positiva.

DOP - Chef Rui PaulaEsse fenómeno é ainda mais evidente quando falámos de doces. Isto porque o açúcar tende a activar os centros de recompensa dos nossos cérebros. Esses centros de recompensa, por sua vez, podem accionar o hipocampo e transformar uma memória feliz de curto prazo de, por exemplo, comer um gelado na praia, numa memória de longo prazo que surge toda a vez que nós saboreamos um gelado à beira-mar. Mas o que é que cientificamente conjuga sabor com memória?

DOP - Chef Rui PaulaOs estudos mais recentes dizem-nos que quando os sabores passam pelas nossas papilas gustativas, as suas terminações nervosas accionam uma espécie de interruptor que envia esse sinais para o tronco cerebral, que por sua vez reencaminha essa informação para o tálamo e para o córtex cerebral, que após comparar esses sinais com a nossa "biblioteca de sabores", nos torna conscientes do sabor amargo, azedo, doce ou salgado de determinado alimento.

DOP - Chef Rui Paula Essa biblioteca chama-se bulbo olfactivo e está localizada bastante próxima à amígdala e ao hipocampo. Porque é que essa localização é importante? Porque a amígdala e o hipocampo são responsáveis pelo processamento das emoções e pelo armazenamento da memória episódica. Tendo em conta tudo isto que vos disse, é importante que os restaurantes dos dias de hoje, tenham em conta essas memórias sensoriais que transportam os clientes para experiências do seu passado.

DOP - Chef Rui Paula Cada prato pode tornar-se, assim, num veículo que evoca lembranças e emoções, criando uma ligação emocional única entre Chef, restaurante e clientes. A comida, deste modo, transcende a mera nutrição e transforma-se numa jornada pessoal e sensorial que promove a partilha de emoções. A crítica de hoje é sobre um restaurante que evoca esse legado de modo inequívoco: o DOP, do Chef Rui Paula.

DOP - Chef Rui PaulaQual é o alimento que, na vossa opinião, remete para as memórias o maior número de pessoas no planeta? Provavelmente o pão. E talvez por isso, ou não, o primeiro momento da nossa última visita ao DOP tinha como protagonista o pão. Pão massa mãe | Azeite do Douro | Pasta de azeitona. O pão é muitas vezes visto como o "parente pobre" de um menu de degustação, mas nos restaurantes "a sério" este elemento tem cada vez mais destaque, pois é a única oportunidade que o restaurante tem para causar uma boa primeira impressão.

DOP - Chef Rui PaulaPara além disso no DOP o pão define o tom, dá o mote, estabelece a bitola e prepara o palato para o que se há-de suceder: identidade, sabor e partilha. Seguiu-se a Burrata | Tomate, com tomate coração de boi, tomate cherry amarelo infusionado em gaspacho, tomate tigrado em azeite de fumo, tomate cherry vermelho em calda de pickle, sorbet de tomate, pesto e creme de burrata. Criava um jogo engraçado entre a acidez dos tomates e a cremosidade da burrata, potenciada pelo azeite, pelo manjericão e pelo sal no ponto certo.

DOP - Chef Rui PaulaA Tagliatelle de lula | Carbonara, com a carbonara elaborada somente com os sucos de peixe, estava muito fresca, cítrica, untuosa e marítima. Remeteu-me para uma espécie de beurre blanc de marisco, em que nada era deixado ao acaso. Exemplos indeléveis disso, são a substituição do bacon (indispensável para a carbonara tradicional) pelo "bacon" de lula, e a inclusão de uma gema confitada super rica, que resultaram muito bem, dando uma espécie de irreverência e aristocracia ao conjunto.

DOP - Chef Rui PaulaO Polvo à Galega, com uma apresentação simples (e por vezes o simples dá trabalho), cuidada e original, vestia as mesmas cores, aromas e sabores do molusco servido na Galiza. Era quase como se a paprika que normalmente é polvilhada nas lâminas de polvo, se transformasse numa espécie de fluido, numa onda, que banhava o tentáculo de polvo. Estava assente no polvo grelhado, no savarin de batata, na espuma de pimento vermelho e no creme de alho negro. O tentáculo apresentou-se super macio, confitado e com toques de fumo. Teve o condão de me transportar para uma das marisqueiras à beira-mar, de Vigo.  

DOP - Chef Rui PaulaSeguiu-se, quanto a mim, o momento alto do menu: Corvina | Acelgas | Belgroegas | Champagne. A emulsão de Champagne estava fresca, rica e untuosa, mas ao mesmo tempo, equilibrada, fina e delicada. A esta obra de arte degustativa, era acrescentado o peixe de sabor suave, textura firme e notas levemente adocicadas; acelgas; beldroegas; e uma cobertura de azeitona e tomate seco no topo da corvina que lhe dava um fundo érvaceo/vegetal que colocava todo o prato a dançar ao mesmo ritmo. Tem tudo: sabor, identidade, apresentação, trabalho, equilíbrio e complexidade.

DOP - Chef Rui Paula

A Maracujá | Melancia (com chipotle fumadas, melancia assada e grelhada, e emulsão de maracujá), em forma de intermezzo, acídula, cítrica e refrescante, serviu para criar uma pausa, dando tempo ao palato para se preparar para a transição suave para sabores mais intensos.

 Na carne, um clássico, o Lombinho | kale | Brás de morcela, com lombinho de vitela, couve de folhas braseadas e jus de carne. 

DOP - Chef Rui PaulaEste "exagero organoléptico" tinha inúmeras camadas de sabores, desde a doçura salgada da carne até os sabores mais robustos da morcela, complementados pela textura, aroma e sabor da couve. Esta couve, aparentemente o elemento mais modesto do prato, acrescentava intensidade, surpresa, harmonia e irreverência ao prato. Este é daqueles para ser desfrutado com tempo, com calma e na companhia de um belo vinho, no caso o Filipa Pato Nossa Calcário Tinto 2019. Que bela harmonização!!!

DOP - Chef Rui PaulaDepois, uma refrescante e incisiva pré-sobremesa (chocolate branco cristalizado, lâminas de espargos brancos fermentados com mostarda, água e sal, sorbet de lima, pó de lima e telhas de glucose), antecedeu a zen Maçã | Côco | Miso com diferentes texturas de maçã, toffee de miso, gelado e creme de côco. Uma autêntica sinfonia de sabores e texturas, que combinava a versatilidade e acidez da maçã, com as nuances salgadas e profundas do miso, e a delicadeza e indulgência do côco. Era serena, fresca e acutilante. 

24.JPGA refeição terminou com café e petit fours (gomas de cereja e crocantes de chocolate e amendoim), em que mais uma vez nada é deixado ao acaso, desde o foco na qualidade do produto, à apresentação cuidada, passando pela coerência na sequenciação do menu. Percebemos que estamos num sítio onde a gastronomia é levada muito a sério, desde o pão até ao café. A experiência que nos eleva a patamares sensoriais superiores, apenas acaba quando saímos das portas do renovado DOP.  Essa renovação é perceptível no novo traje em tons de vermelho, na maior amplitude aparente que os reflexos nos espelho introduz e a presença da cabine do DJ ao lado do melhorado bar. 

DOP - Chef Rui PaulaCada detalhe das diferentes salas do DOP procura potenciar uma atmosfera de partilha e celebração, dividindo-se em recantos estrategicamente organizados (com mesas distribuídas pelos dois andares) que asseguram uma experiência mais íntima e reservada, seja para um jantar a dois ou em grupo. A cozinha, visível através de uma porta de vidro transparente, oferece uma perspectiva parcialmente exposta a partir da sala principal. Ao leme desta viagem às memórias esteve o Chef Sandro Teixeira, com a ajuda do sommelier Tiago Leal nos vinhos. Podia tecer muitos elogios à experiência gastronómica que o renovado DOP promove, mas se uma imagem vale por mil palavras, quatro sorrisos valem por mil imagens. Pois é no calor de um sorriso, seja do Chef que sabe que o serviço correu muito bem, seja do chefe de sala cuja meticulosa atenção aos detalhes potenciou uma atmosfera propicia para momentos de partilha, seja dos clientes com o seu palato em pé a bater palmas, que a verdadeira magia acontece. Pois esse sorriso transcende o paladar, o sabor ou a textura.

DOP - Chef Rui Paula Por tudo o que disse na introdução, é esse sorriso que conecta a experiência gastronómica a uma dimensão humana, transformando uma refeição soberba numa memória afectiva e duradoura. É o sorriso que ilumina, que personaliza,  que vinca, e que antevê que este DOP se pode transformar numa autêntica nebulosa. Quem perceber de (g)astronomia, sabe bem daquilo que estou a falar. Acho que é exactamente isso que o Chef Rui Paula quer para o "novo" DOP

Já por diversas vezes destaquei a excelência do que vai fazendo por todos os lugares por onde vai passando. Excelência essa assente no conhecimento, na destreza e na cozinha com memória e para as memórias. O que ele está a fazer no DOP (esta foi sem dúvida a melhor experiência gastronómica que lá tivemos) só vem reforçar o que já achava dele: que é um predestinado. A excelência é um acto que se cultiva diariamente, em qualquer local, situação, contexto ou etapa do menu de degustação. Neste, não falhou nada...