Novas colheitas Churchill's | O guardador de pleonasmos: uma outra primeira vez
"Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la, porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez, e nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar." Alberto Caeiro
Dos quatro heterónimos principais (Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Alberto Caeiro), Caeiro é reconhecido pelos restantes, e também pelo próprio Pessoa, como o seu “mestre”. A sua principal obra é uma colecção de poemas intitulada “O Guardador de Rebanhos”. Nesses poemas, Alberto Caeiro expõe e explica a sua posição filosófica acerca de ele próprio ser um “sensacionista”. O sensacionismo enfatiza a importância da percepção sensorial e da experiência imediata do mundo, sob o intelectualismo abstracto. Como tal, Caeiro propõe uma descrição básica da natureza baseada apenas nas sensações, sem o recurso a metáforas ou metafísicas.
Esta abordagem pode ser entendida como uma variação da intelectualização, um mecanismo de defesa quer do isolamento do afecto, quer da tradução psicológica de questões emocionais em termos intelectuais. Paradoxalmente, nos versos iniciais do poema IX (Sou um guardador de rebanhos), Caeiro introduz a metáfora central do poema: o poeta como guardião de rebanhos, sendo o rebanho o seu próprio pensamento.
Esta metáfora sublinha a ideia de que os pensamentos de Caeiro, como um rebanho, são simples e naturais. Ele não se envolve em ponderações filosóficas complexas, mas, em vez disso, abraça o imediatismo da experiência sensorial. Caeiro sugere que a verdadeira compreensão vem de um envolvimento directo com o objecto ou ideia em questão. Concebe o acto de pensar numa flor através da visão e do cheiro. Esta abordagem sensorial, quase primitiva, do pensamento sublinha a rejeição do raciocínio abstracto e despegado.
Recorrendo a outro paradoxo, Caeiro sugere que embora a sua abordagem não produza necessariamente uma compreensão intelectualmente estruturada sobre um determinado assunto, permite-lhe compreendê-lo a um nível mais profundo e intuitivo. Nesse sentido, para Caeiro a complexidade parece emergir paulatinamente da repetição sensorial da simplicidade.
Curiosamente este confronto semântico entre simplicidade e complexidade também encontra eco no mundo dos vinhos. Como avaliaria Caeiro a complexidade de um vinho? Para responder a essa pergunta vamos ter de passar de Caeiro para Matt Kramer (um dos colaboradores mais afamados da revista americana "Wine Spectator" e um apaixonado pelos vinhos do Douro). Li há uns tempos no seu livro "How to taste wine", que a complexidade (segundo ele uma das seis palavras mais importantes no mundo vínico) é a capacidade que um vinho tem para nos transmitir uma sensação de dinamismo, de incerteza ou de surpresa sempre que regressámos ao copo para o provar.
O problema, porém, é que para não variar, esta definição não é consensual. Muitas vezes, em prova, a complexidade é erradamente (quanto a mim) associada com quantidade, com soma e com "mais": mais sabor, mais textura, mais aromas. Nesses casos a palavra "complexidade" parecia funcionar como um "conta-aromas" de coisas a provar, materializando-se numa longa lista de descritores, onde a surpresa, o dinamismo, ou a incerteza são simplesmente chutados para um canto.
Outro problema decorre da batalha semântica entre o simples e o complexo. Um vinho simples não necessita forçosamente de ser barato, fácil ou de qualidade inferior. Não tem de ser um adjectivo pejorativo, certo? Pode haver incerteza, intensidade e surpresa na simplicidade. Reparem nos exemplos que a arte nos oferece: na espiritualidade, infinito e eternidade do "Several Circles" de Kandinsky; no existencialismo humanista do "Man Pointing" de Alberto Giacometti ou a alegria, inocência e melódico-agressividade dos solos de guitarra de George Harrison.
É por isso que tal como na arte, nos vinhos a palavra “complexo” talvez não seja a melhor bitola para avaliar todos os grandes vinhos, pois existem alguns que também podem ser reconhecidos pela sua pureza, pelo seu dinamismo ou pela sua subtileza. Todas estas questões semânticas surgiram-me aquando da apresentação das novas colheitas dos vinhos Churchill´s Estate Grafite e Quinta da Gricha.
Estes são vinhos que para além de colocarem em "confronto" a simplicidade minimalista dos rótulos com a complexidade incerta, intensa e surpreendente dos seus vinhos, usam esse confronto interior/exterior para realçar a riqueza daquilo que produzem. John Graham fundou a Churchill's em 1981, tornando-a na primeira empresa de vinho do Porto a ser estabelecida em 50 anos. John Graham queria continuar a longa tradição nos vinhos do Porto da sua família, mas ao mesmo tempo criar o seu próprio estilo de vinhos.
Ao contrário do que possam pensar, Churchill’s não é uma homenagem ao primeiro-ministro britânico viciado em Champanhe, mas sim um tributo à história de amor que vive com a sua esposa, Caroline Churchill. A compra da Quinta da Gricha em 1999 foi um passo não só importante como também fundamental para levar a Churchill’s à produção de vinhos do Douro e a torná-los um caso de particular sucesso.
Enquanto as outras casas de vinho do Porto têm séculos de existência, a Churchill’s ainda tem o seu fundador ao comando e é hoje a última casa ‘produtora-exportadora’ britânica independente. Os vinhos do Douro da Churchill’s nasceram de uma longa parceria entre John e o enólogo Ricardo Pinto Nunes. São vinhos que privilegiam a fruta, a frescura, e o respeito pelo terroir.
A Quinta da Gricha é a casa da Churchill’s no Douro – uma propriedade de 50 hectares localizada no Cima Corgo, com 40 hectares de vinhas ‘letra A’ e lagares de granito onde vinhos do Porto são pisados a pé desde 1852. As vinhas mais antigas têm mais de 80 anos, com castas autóctones e os vinhos são produzidos com intervenção mínima e agricultura sustentável. Hoje, Zoe Graham (filha de John Graham) e o genro, Ben Himowitz, juntam-se ao fundador, na transição para a segunda geração.
A apresentação das novas colheitas, por parte do enólogo Ricardo Pinto Nunes e Zoe Graham, ocorreu no Manja Marvila e foi harmonizada pelas mãos do Chef Bruno Rocha (Chef Executivo do Bairro Alto Hotel em Lisboa). Falemos então dos vinhos. Para a elaboração do Churchill's Estates Grafite Branco 2022 (13.5 €, 88 pts.), as uvas foram cortadas para caixas pequenas (cerca de 20 Kg/ caixa) e transportadas para a adega onde foram submetidas a um processo de selecção muito cuidadoso. Após serem colhidas, as uvas foram arrefecidas a 5ºC durante a noite, sendo posteriormente esmagadas e sujeitas a maceração a frio por um período de 12 horas. Em seguida, o mosto foi prensado e transferido para uma cuba sendo então fermentado gentilmente durante duas semanas a temperaturas nunca superiores a 15ºC.
Após o final da fermentação, aproximadamente 20% do lote estagiou em barricas de carvalho francês, mantendo-se o restante em cubas de inox, de forma a combinar um perfil frutado com a complexidade do estágio em madeira. É um vinho de cor amarela-cítrica que passa para o nariz com maçã verde, toranja, acácia-lima e muita pedregosidade. Na boca mostra nervo e é tenso, fresco e suculento.
Para a elaboração do homónimo tinto 2 anos mais velho, o Churchill's Estates Grafite Tinto 2020 (13.5 €, 89 pts.), a escolha das áreas de vinha ou talhões dependeu das castas mais favorecidas pelas condições climáticas de 2020. As uvas foram cortadas para as tais caixas pequenas e transportadas para a adega onde foram submetidas a um processo de selecção muito cuidadoso, sendo posteriormente esmagadas. A vinificação ocorreu em cubas de inox, de pequena capacidade.
As uvas foram totalmente desengaçadas e posteriormente esmagadas. Após um período de 4 dias em maceração a frio, a fermentação ocorreu sob temperatura controlada, procedendo-se a suaves remontagens e macerações prolongadas, conseguindo-se desta forma uma boa extracção aromática e polifenólica. Cerca de 30% deste vinho estagiou 12 meses em cascos novos e velhos de carvalho francês. O restante foi guardado em cubas de inox para manter o seu carácter frutado aliado à complexidade do carvalho proveniente dos vinhos em cascos. Foi ligeiramente filtrado antes do engarrafamento. De porte rubi escuro-violeta, emana notas de ameixa preta, compota de cerejas, pimenta preta, resina e bosque. No palato mostra-se fresco, seco, elegante e aveludado.
Por sua vez o Quinta da Gricha Douro 2020 (45 €, 89 pts.) teve o mesmo cuidado na apanha e transporte que os anteriores, sendo as suas uvas posteriormente esmagadas. A vinificação foi dividida em duas fases: uma primeira no lagar com suaves remontagens e uma segunda em cascos de carvalho francês de 500 litros, onde ocorreu também a fermentação maloláctica. Todo o vinho estagiou cerca de 12 meses em barricas de carvalho francês. No copo surge violeta escuro, entrando no nariz com ameixa preta, amoras silvestres, cravo-da-Índia e pinheiro. Na boca é especiado, longo, untuoso e muito equilibrado.
Passando para um monocasta, no Churchill's Estates Grafite Touriga Nacional 2015 (17 €, 90 pts.) as uvas foram transportadas para a adega onde foram submetidas a um processo de selecção muito cuidadoso, sendo posteriormente esmagadas. A vinificação ocorreu em cubas de inox, de pequena capacidade. As uvas foram totalmente desengaçadas e posteriormente esmagadas. Após um período de 4 dias em maceração a frio, a fermentação ocorreu sob temperatura controlada, procedendo-se a suaves remontagens e macerações prolongadas, com vista a uma boa extração aromática e polifenólica. Todo o vinho estagiou 12 meses em barricas de carvalho francês de 2º e 3º ano, sendo colado e filtrado ligeiramente antes de ser engarrafado.
De cor rubi-violeta exibe agradáveis notas de hortelã-pimenta, esteva, pimento verde, mirtilos, eucalipto e algumas violetas escondidas. Na boca é aveludado, complexo, equilibrado, intenso e muito fresco. O Churchill's Estates Grafite Grande Reserva 2015 (38 €, 95 pts.) é um vinho enorme!!! As uvas passaram por um criterioso processo de selecção antes de serem esmagadas.
A vinificação ocorreu em cubas de inox, de pequena capacidade. As uvas oriundas de vinhas muito velhas foram totalmente desengaçadas e posteriormente esmagadas. Após um período de 4 dias em maceração a frio, a fermentação ocorreu sob temperatura controlada, procedendo-se a remontagens ligeiras e macerações prolongadas, conseguindo-se desta forma uma irrepreensível extracção.
O vinho estagiou 12 - 15 meses em barricas de carvalho francês, antes de ser colado e filtrado ligeiramente antes de ser engarrafado. De porte rubi-violeta cristalino, exibe orgulhosamente cereja madura, hortelã-pimenta, cassis, pimenta preta e sous-bois. No palato é aguerrido, largo, redondo, equilibrado, carnudo, viçoso, complexo e intensamente ponderado. É um vinho "cheio de si", um dos melhores que provei em 2023.
Passando para os Porto, o Churchill's Quinta da Gricha Vintage 2021 (65 €, 94 pts.) foi vinificado nos tradicionais lagares de granito. Para esse efeito, várias equipas de pisa a pé trabalharam durante o dia e inicio da noite nos lagares. Durante os primeiros seis meses, o vinho passou o inverno no Douro antes de ser transportado para as Caves em Vila Nova de Gaia, onde passou por período de envelhecimento de 18 meses em tonéis de madeira de grande capacidade antes do seu engarrafamento.
Exibe uma cor rubi escura, opaca, intrigante, com laivos violetas. No nariz surgem frutos silvestres, chocolate preto, mato, lavanda e casca de laranja cristalizada. Na boca é exuberante, intenso, puro e vibrante. A acidez deste vinho é de uma delicadeza impressionante!!! Seguiu-se um monstro: o Churchill´s Tawny 40 Anos (200 €, 97 pts.).
Tal como os outros vinhos do Porto da Churchill’s, as reservas de vinhos do Porto Vintage que entram neste Tawny foram vinificadas nos tradicionais lagares de granito. Após a fermentação, o vinho passou por um período de envelhecimento médio de aproximadamente 40 anos em casco. Antes de serem engarrafados, os vinhos foram combinados de forma a garantir que este Tawny 40 anos reflectisse o estilo da casa.
Possui uma cor cobre-esverdeada cintilante. No nariz, as notas surgem incertas, surpreendentes, uma após a outra: caixa de charutos, figos secos, ameixa seca, avelãs, mel, anis e casca de laranja. No palato é denso, opulento, elegante, voluptuoso e inacreditavelmente fresco.
Todos estes vinhos tinham no ADN a frescura duriense, uma mineralidade quente e o respeito pelas características das uvas, resultantes da simbiose entre a arte dos enólogos com as características especiais da Quinta da Gricha. No rótulo há minimalismo e sustentabilidade. No vinho há fruta, há frescura, há estrutura, há uma acidez natural vibrante e há respeito pelo terroir.
E como defende Johny Graham, todos eles sabem dizer-nos adeus. Isso acontece porque sabemos que sempre que os encontrarmos de novo é como se o fôssemos provar uma outra primeira vez. Tudo isto, repetido vinho após vinho, é como se fosse um pleonasmo que enfatiza a complexidade assente nos sentidos, aquela que Caeiro apreciava.
Bem, com tudo isto quase que me esquecia de responder à pergunta. O que acharia Caeiro destes vinhos?
Acho que a "cousa" a que ele se referia na citação que introduziu esta publicação, poderia muito bem ser um vinho da Churchill's Estates ;)