Stramuntana Gaia | O puro dom de olhar um estranho como irmão
"É destes que se tem de partir para chegar à trindade tradicional do reino: os presuntos, as alheiras e os salpicões... Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove… E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai, o perfume das graças dadas por alma daqueles que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou à Índia." Miguel Torga
Na aldeia de S. Martinho de Anta, localizada no concelho de Sabrosa, no distrito de Vila Real, nasceu em 1907 um dos maiores escritores portugueses: Adolfo Correia da Rocha. Dito assim, pode levar-vos a pensar que estou a exagerar nos elogios literários a um "ilustre desconhecido".
Nada mais errado. Para o mundo das letras, Adolfo Correia da Rocha ficou imortalizado como Miguel Torga. Médico de profissão, com consultório em Coimbra, foi um viajante insaciável, aquém e além-fronteiras, mas sem nunca perder a ligação ao seu berço.
Embora Torga seja mais conhecido pelas suas obras literárias, a sua origem transmontana está também intrinsecamente ligada à cultura e à gastronomia da região. Torga adorava a caça, muitas vezes degustando as delícias transmontanas nos montes da sua região, saboreando também o contacto com a terra e o povo que ali vivia.
O livro «Contos da Montanha» é o melhor exemplo dessa relação quase umbilical à terra e aos seus produtos regionais. É uma autêntica colecção de retratos pintados a letras, cujo foco era a vida do seu povo, as suas paixões, os seus dramas, as suas rivalidades e as lutas de uma gente arreigada, brava, mas também humilde, que batalha pela sustento a cada momento.
São crónicas pitorescas das vivências aldeãs, retirando-se delas o essencial das formas de viver e de sentir populares. Nesses contos há uma referência deliciosa a um arraial, onde a aldeia se juntava em peregrinação para degustar um farnel de emoções.
«Coisa rica! Pipas e pipas de vinho debaixo da carvalhada, e do melhor, que parece que todos capricham nisso, tascas de fritos, mesas de cavacas e de refrescos, medas de regueifas, carros de melancias, um louvar a Deus. Fartura de tudo para quem tiver conques».
Curiosamente, Torga parece fazer uma ligação metafórica entre essas gentes e a sua gastronomia. O "comer" revelava-se sempre substancial, em sintonia com a imponência austera das montanhas, com a vastidão dos horizontes transmontanos e com a árdua labuta agrícola.
O escritor convida-nos a encontrar uma relação quase directa entre o esforço físico despendido pelos trabalhadores que "cavam a vida inteira, e, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia" e a sabedoria acumulada pela experiência, que confirma que o "ar puro do campo - especialmente o das montanhas - estimula o apetite", justificando dessa forma, a presença em toda a região dos "pratos de resistência", notáveis tanto pela quantidade quanto pela variedade, pelo sabor e pela qualidade de seus ingredientes.
A gastronomia transmontana é-nos apresentada assim, fortemente influenciada pelo isolamento que Trás-os-Montes experimentou ao longo dos séculos, resultante da falta ou melhor adequação das vias de comunicação, bem como das duas marcantes barreiras naturais que a cercam: a Serra do Marão e o Rio Douro.
Os Transmontanos não apenas aceitaram estas limitações da sua terra, como também a respeitaram, ultrapassando as dificuldades inerentes à sua condição humana. Dessa forma, a partir de toda a severidade dessa terra, conseguiram, com um esforço hercúleo, extrair dela receitas extraordinárias cheias de sentimento de pertença. Hoje falo-vos de um restaurante que invoca todo esse legado: o Stramuntana Gaia.
Em Mirandês, uma das duas línguas oficiais em Portugal, Stramuntana significa "Transmontana". A Chefe Lídia Brás, natural de Estevais, uma aldeia de 40 habitantes no extremo nordeste do nosso país, é uma das cerca de 5.000 falantes nativas dessa língua. O pai é de Estevais, Mogadouro, e a mãe de Souto da Velha, em Torre de Moncorvo.
A Chefe Lídia utiliza o Mirandês nas redes socais para promover o restaurante que ela e o marido, Fernando Araújo, também natural do norte, administram. Fernando é bracarense e um apaixonado por Trás-os-Montes (e por uma transmontana em particular ;)). Trata dos vinhos de forma exemplar e pedagógica (a garrafeira é uma das mais valias do restaurante: diversificada, de qualidade e com referências de nicho) e comanda o grelhador.
Durante duas décadas, o casal foi proprietário e cozinhou em diversos restaurantes na zona do Porto, que serviam pratos de natureza mais rústica. Mas, de acordo com a Chefe Lídia, esses locais costumavam enfatizar a quantidade em vez da qualidade. Com o Stramuntana, aberto há quatro anos, o casal tem finalmente a oportunidade de apresentar a comida da sua região natal, bem como a sua língua e a sua cultura, de uma maneira mais genuína, refinada e subtil.
Na sala do piso inferior existe uma mercearia que disponibiliza alguns petiscos e também vende presuntos, enchidos, cogumelos e vinhos. É daí que surge o restante nome da casa: Soto, que atrás das montanhas, é sinónimo de mercearia.
O nosso almoço começou com um cesto com três tipos de pão que acompanhou as entradas: azeitonas; cenoura marinada; cebola com sal e vinho tinto; salada de bucho e orelha fumada; e manteiga de leite de cabra e mel. Remetem-nos imediatamente para a memória da gastronomia substancial, genuína e rústica de Torga.
No entanto, a Salada de bucho e orelha fumada surge de peito erguido, orgulhosa, com alcaparras verdes, pimentos vermelhos, malaguetas, tomates cereja e cebolas em conserva. Tudo isto acrescentou largura, acidez, texturas e cor. Seguiram-se uns Rojões de redenho de porco, voluptuosos, crocantes, intensos, saborosos, em que a salicórnia acrescentava um salgado vegetal muito engraçado.
O tradicional folar transmontano surgiu na sua versão Folarico, ao estilo "finger food", mas com todos os predicados da sua versão original: riqueza, untuosidade e sabor. O Piano (entrecosto) assado na grelha, na companhia de batatas rústicas (também assadas na grelha) é daqueles que nos faz "lamber os dedos" de satisfação. Possuía um sabor defumado, uma ligeira caramelização, suculência e o sal/tempero no ponto certo.
Seguiu-se, quanto a mim, o melhor prato: Javali com castanhas. A carne de javali tinha um sabor incisivo, intenso, robusto, quase selvagem. As castanhas adicionaram uma doçura natural ao prato e a sua textura macia contrastou com a carne mais firme do javali. Além disso, os temperos e ingredientes adicionados durante a confecção, como o alecrim, as especiarias, o vinho tinto e o azeite, contribuíram para a complexidade e o sabor final do prato. O resultado é uma combinação de sabores deliciosos e reconfortantes, típicos da culinária tradicional de Trás-os-Montes. Adorei!!!
O Bacalhau com crosta de alheira e batata a murro, cozinhado no forno, possuía uma camada de legumes escondidos entre o bacalhau e a crosta de alheira. Combina de modo magistral, quase presunçoso, a delicadeza do bacalhau com a robustez da alheira, a textura das batatas a murro e a generosidade de sabores e texturas dos legumes, resultando numa proposta reconfortante e muito saborosa.
Antes das sobremesas: Naco de entrecote com escolta de Batata rústica e Cuscus Transmontanos. A carne estava no ponto (na verdade com os três pontos de carne) e cheia de sabor; a batata era viciante, no entanto, o destaque foi para a pureza, o carácter e a riqueza dos Cuscus em estilo arroz malandrinho. Uma delicia!!! Só estes Cuscus já justificavam a viagem.
A primeira sobremesa foi Milhos doces. Simples mas cheios de aromas e memórias, sabores subtis e ricos, e uma textura macia e prazerosa. A Chefe Lídia deu-lhes um "fato" todo janota, que os tornaram cheios de si, porque afinal, os olhos também comem. Para finalizar o repasto. Pudim de grelos. Ao tradicional pudim de ovos doce é acrescentada a austeridade vegetal dos grelos que acaba por tornar a degustação mais rica, mais ampla e menos enfadonha. Neste prato a Chefe Lídia Brás mostra que para inovar não é necessário andar com reduções, espumas ou esferificações, o que importa mesmo, são os produtos que nos remetem para as tradições.
Neste caso os milhos transportam-nos para épocas festivas da aldeia, como o Natal, a Páscoa ou as festas de Verão, onde a mãe da Chefe utilizava esta receita: embrenhava-se pela casa o aroma do milho fervido, da canela e do limão. A travessa vasta e perfumada era pousada na mesa da sala para que os pequenotes pudessem encontrar o seu pedaço de céu. Voltando a Torga, parte dos seus livros (na poesia e na prosa) são a afirmação de um homem rural, que recusa a fatalidade da vida citadina, impondo-se como filho do campo que não mais aceita desligar-se das origens.
Nas suas obras estão presentes as serras e as fragas transmontanas, os pais, o professor e os colegas de escola e a demais gente da aldeia. As terras transmontanas e o valeroso povo que as habitam são, afinal, os grandes amores da sua vida, a eles dedicando o melhor da sua escrita. Esse mesmo amor pela terra pode também ser demonstrado através da gastronomia. A Chefe Lídia e o seu marido Fernando Araújo conseguiram criar uma bolha transmontana em Vila Nova de Gaia.
As paredes em pedra, as máscaras e os trajes, a lareira, os utensílios da faina, a louça nas paredes, o grelhador como elemento central da sala de refeições, o quintal nas traseiras, e a comida generosa e de conforto intercalada com conversa bem dispostas e sem pressas, têm o puro dom de transformar um "simples cliente estranho" num irmão bem-vindo. Foi, sem margem para dúvidas, uma das melhores experiências que tivemos em restaurantes!!!
Como defendia Miguel Torga, onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível, porque mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre-lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora. "Que há de fazer um filho, senão ser fiel à sua cepa?"